Paulo Ghiraldelli*
As Olimpíadas antigas eram festa religiosa. As Olimpíadas modernas nasceram como uma das formas de substituição da religião. Em Du mußt dein Leben ändern
(Suhrkamp, 2013) Peter Sloterdijk notou isso ao ver que a prática
ascética é maior que a religião e a engloba, e não o inverso como
Nietzsche afirmou. Sendo o lugar máximo da prática como visível
antropotécnica, o esporte olímpico transitou, enfim, para o que se
esperava dele no mundo pós-paradigma do trabalho, que ele se tornasse um
entretenimento-trabalho e um trabalho-entretenimento. Torno-se show e
se integrou na lógica contemporânea.
Nessa lógica, pode cumprir algumas
funções de destino. Para leitores de Debord, nada é senão mais um
elemento do mundo como espetáculo gerado pela caráter espectaculoso da
mercadoria. Para nós, slorterdijkianos, isso não o incompatibiliza em
ser também um entretenimento. A sociedade da leveza, como Sloterdijk a
descreve no volume III das Esferas, é aquela no qual todos nós
temos mais tempo livre e uma vida mais suave, e é então necessário que
se reintroduza nela um novo tipo de esforço e martírio de modo que a
vida ainda continue real. Num campo de suavidade e mimo, e numa era em
que tudo é virtual, devemos criar algum peso ontológico ainda, para não
estourarmos como balões estratosféricos. O suor e a auto-superação
esportiva reintroduzem esse peso ontológico para que não ocorra conosco o
que ocorreu com Ícaro.
Mas exatamente no momento em que a
auto-superação se põe como o elemento central desse show necessário, ou
seja, exatamente no momento que o time de futebol não vale mais nada
porque tem altos salários e não tem raça e, em contrapartida, as meninas
do futebol e todas as outras mulheres campeãs são louvadas, o lado
bom-e-perverso de nossa era se expõe ao máximo. É que precisamos louvar o
esforço e, então, procuramos nos pobres e desgraçados que conseguiram
se tornar macaquitos para nosso entretenimento e perdão, a nossa própria
salvação e, às vezes, também a salvação da própria nação, até da
Humanidade. E lá vamos nós, de história em história, para as narrativas
dos que saíram da favela e que não podiam vencer senão pelas escolinhas
esportivas. Sem elas, as escolinhas, nenhum horizonte existiria. Essa
verdade é nosso orgulho e nossa desgraça, pois sabemos que o ideal
possível seria aquele em que cada um pudesse ter suas perspectivas, e
não uma válvula de escape de um destino macabro.
Rafaela no pódio não é uma moça
ganhadora de medalha, é a “mulher negra, da favela, sofrida”, ou ainda,
“aquela que foi chamada de macaca”. É disso que falo: temos de dizer
isso. Se não dizemos isso ficamos engasgados. Mas, ao mesmo tempo que
dizemos isso, estamos como que aceitando a favela, aceitando que ela se
chame comunidade, dizendo para nós mesmos que nossas escolinhas não são
esportivas, são zoológicos para salvar pobres. Estamos dizendo para nós
mesmos o quanto é bom imaginar que há saída que não a mais drástica, que
seria não ter o zoológico. E logo em seguida disso, depois que fazemos
essa reflexão, voltamos para nós mesmos e concluímos: mas, então, não
temos que agradecer aos que fazem essas escolinhas andar? Afinal, nós
filósofos que prezamos a filosofia, muitas vezes não fazemos o mesmo com
educação em geral?
Os tempos contemporâneos são a época do
entretenimento que impõe essas narrativas aporéticas. De modo que
nenhuma vitória se põe como vitória completa, mas, como catarse e culpa,
como redenção que logo se mostra meia-redenção e meio pecado. Cada
medalha se torna uma pequena cruz para servir no Terço que a velhinha
carola usa para a sua oração ou que cai bem na gargantilha com a qual
garota fica mais sexy na balada.
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*Paulo Ghiraldelli, 58, filósofo. São Paulo, 08/08/2016.
Fonte: http://ghiraldelli.pro.br/sociologia/vitoria.html
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