terça-feira, 9 de agosto de 2016

A VITÓRIA PRESA NA GARGANTA

Paulo Ghiraldelli*
 rafaela
As Olimpíadas antigas eram festa religiosa. As Olimpíadas modernas nasceram como uma das formas de substituição da religião. Em Du mußt dein Leben ändern (Suhrkamp, 2013) Peter Sloterdijk notou isso ao ver que a prática ascética é maior que a religião e a engloba, e não o inverso como Nietzsche afirmou. Sendo o lugar máximo da prática como visível antropotécnica, o esporte olímpico transitou, enfim, para o que se esperava dele no mundo pós-paradigma do trabalho, que ele se tornasse um entretenimento-trabalho e um trabalho-entretenimento. Torno-se show e se integrou na lógica contemporânea.

Nessa lógica, pode cumprir algumas funções de destino. Para leitores de Debord, nada é senão mais um elemento do mundo como espetáculo gerado pela caráter espectaculoso da mercadoria. Para nós, slorterdijkianos, isso não o incompatibiliza em ser também um entretenimento. A sociedade da leveza, como Sloterdijk a descreve no volume III das Esferas, é aquela no qual todos nós temos mais tempo livre e uma vida mais suave, e é então necessário que se reintroduza nela um novo tipo de esforço e martírio de modo que a vida ainda continue real. Num campo de suavidade e mimo, e numa era em que tudo é virtual, devemos criar algum peso ontológico ainda, para não estourarmos como balões estratosféricos. O suor e a auto-superação esportiva reintroduzem esse peso ontológico para que não ocorra conosco o que ocorreu com Ícaro.

Mas exatamente no momento em que a auto-superação se põe como o elemento central desse show necessário, ou seja, exatamente no momento que o time de futebol não vale mais nada porque tem altos salários e não tem raça e, em contrapartida, as meninas do futebol e todas as outras mulheres campeãs são louvadas, o lado bom-e-perverso de nossa era se expõe ao máximo. É que precisamos louvar o esforço e, então, procuramos nos pobres e desgraçados que conseguiram se tornar macaquitos para nosso entretenimento e perdão, a nossa própria salvação e, às vezes, também a salvação da própria nação, até da Humanidade. E lá vamos nós, de história em história, para as narrativas dos que saíram da favela e que não podiam vencer senão pelas escolinhas esportivas. Sem elas, as escolinhas, nenhum horizonte existiria. Essa verdade é nosso orgulho e nossa desgraça, pois sabemos que o ideal possível seria aquele em que cada um pudesse ter suas perspectivas, e não uma válvula de escape de um destino macabro.

Rafaela no pódio não é uma moça ganhadora de medalha, é a “mulher negra, da favela, sofrida”, ou ainda, “aquela que foi chamada de macaca”. É disso que falo: temos de dizer isso. Se não dizemos isso ficamos engasgados. Mas, ao mesmo tempo que dizemos isso, estamos como que aceitando a favela, aceitando que ela se chame comunidade, dizendo para nós mesmos que nossas escolinhas não são esportivas, são zoológicos para salvar pobres. Estamos dizendo para nós mesmos o quanto é bom imaginar que há saída que não a mais drástica, que seria não ter o zoológico. E logo em seguida disso, depois que fazemos essa reflexão, voltamos para nós mesmos e concluímos: mas, então, não temos que agradecer aos que fazem essas escolinhas andar? Afinal, nós filósofos que prezamos a filosofia, muitas vezes não fazemos o mesmo com educação em geral?

Os tempos contemporâneos são a época do entretenimento que impõe essas narrativas aporéticas. De modo que nenhuma vitória se põe como vitória completa, mas, como catarse e culpa, como redenção que logo se mostra meia-redenção e meio pecado. Cada medalha se torna uma pequena cruz para servir no Terço que a velhinha carola usa para a sua oração ou que cai bem na gargantilha com a qual garota fica mais sexy na balada.
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*Paulo Ghiraldelli, 58, filósofo. São Paulo, 08/08/2016.
Fonte:  http://ghiraldelli.pro.br/sociologia/vitoria.html

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