Luiz Felipe Ponde*
"Você quer comer manteiga?
Você quer um vestido bonito?
Você quer viver deliciosamente?
Você quer conhecer o mundo?"
O que vocês acham dessas propostas como forma de sedução, meninas?
Quem viu o excelente filme "A Bruxa", de Robert Eggers, sabe do que
estou falando. O filme é um show do gênero terror para quem gosta de
terror sofisticado e não desse lixo previsível que anda por aí, do qual
até o Demônio (sim, com letra maiúscula) fica envergonhado.
A própria imagem da boca da jovem Tomasin (personagem principal do
filme) melada de manteiga já pode nos dar a dimensão da consistência do
Demônio neste filme: o que você colocaria na boca lambuzada de manteiga
da jovem Tomasin? E a pergunta essencial: o que ela pediria para você
colocar na boca lambuzada de manteiga dela?
Antes, um reparo: que nenhum inteligentinho imagine que estou
"demonizando o sexo", tá? Normalmente inteligentinhos não entendem nada
de sexo, e muito menos de mulher. Porque são "do bem".
Sim, Nelson Rodrigues dizia que teríamos saudade do canalha honesto um
dia, eu digo que já estamos com saudade do Demônio honesto hoje em dia. O
Demônio do filme "A Bruxa" é um Demônio honesto. Já explico por quê.
Conheço alguns satanistas por força do meu trabalho com pesquisa em
religião. Todos que conheço são quase veganos. O máximo que pregam é o
"combate" à Igreja Católica (coisa que qualquer criança no jardim da
infância aprende nos últimos cem anos). Nem sabem o que foi o calvinismo
(denominação protestante do filme). Os calvinistas eram gente de fibra,
criaram os Estados Unidos. O mundo que legaremos para o futuro será um
misto de praça de alimentação de shopping e gente tosca pedindo coisas
de graça.
Nada como medir forças com o pecado e o Demônio (do tipo do filme) para criar músculos. Um Demônio honesto merece uma missa.
Os satanistas de hoje estão preocupados com o aquecimento global. Nada
entendem do que um satanista decente entenderia. Você está se
perguntando sobre o que um satanista decente entenderia? Preste atenção.
Mas deixe de lado qualquer presunção de bondade que você tenha sobre si
mesmo. Você quer mesmo conhecer o mundo?
Essas perguntas que abrem essa coluna são feitas pelo Demônio à jovem
Tomasin na sequencia final do filme "A Bruxa". Ele pede a ela que assine
seu livro (significando o pacto com ele), ao que ela responde,
prontamente: "O que você tem para me oferecer em troca?". Aí, ele faz
essas perguntas para ela. O que ele tem a oferecer para ela em troca é
manteiga, beleza, delícia e o mundo inteiro.
Não vou contar mais nada. A pergunta dela para o Demônio indica que estamos diante de uma mulher sincera e de verdade.
O filme é construído a partir de textos do século 16. Textos de
tribunais calvinistas (puritanos ingleses) em que manifestações do
Demônio eram descritas. Almas superficiais veriam nisso apenas
"patriarcalismo", "repressão", "abuso religioso", ou seja, tudo o que
inteligentinhos veem em toda parte por conta de sua crassa pobreza de
espírito.
A verdade é que o Demônio no filme é um especialista em natureza humana
(sei que inteligentinhos ficam nervosos com essa termo, "natureza
humana", mas quem liga para eles?). O Diabo é um humanista. Sempre foi.
No filme, ele está preocupado em fazer Tomasin gozar. E o gozo, como bem
sabia a psicanálise (não sabe mais), é "coisa de mulher que conversa
com Deus e o Diabo".
A honestidade do Demônio está no fato dele saber que um pacto com ele
significa o vício no gozo. E quem é viciado no gozo sabe que não há
muita saída. Uma vez dentro da sua beleza e sua delícia ("Você quer um
vestido bonito? Você quer uma vida deliciosa?"), fazemos qualquer
negócio para permanecer gozando. Até morrer de gozar.
Outro dia, numa conversa, confessei que se fosse me dada apenas a
possibilidade de ser um autor de livros de autoajuda, um palestrante
motivacional ou um assassino profissional, eu escolheria esta última
opção, por ser a mais sincera.
O mundo contemporâneo está a ponto de provar o que o Demônio nunca conseguiu fazê-lo: que o "bem" é idiota.
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* Filósofo, escritor e ensaísta, pós-doutorado em epistemologia pela
Universidade de Tel Aviv, discute temas como comportamento, religião,
ciência. Escreve às segundas.
Imagem: Ricardo Cammarota/Editoria de Arte/Folhapress
fonte: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/luizfelipeponde/2016/08/1805497-o-mundo-moderno-esta-a-ponto-de-provar-que-o-bem-e-idiota.shtml
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