quinta-feira, 4 de agosto de 2016

Muito longe do Olimpo: 'A Olimpíada, sem dúvida, vai prejudicar o Rio', diz escritor inglês

 

De um mergulho na história das Olimpíadas, de 1896 para cá, o escritor inglês David Goldblatt emergiu com a convicção de que os Jogos refletem muito mais as tensões de nosso tempo do que ideais de paz. Ao chegar a vez de o Brasil sediar o evento, por que seria diferente? “Do que trata o movimento olímpico hoje? De direitos humanos? De sustentabilidade? Olhe para o Rio e veja o oposto acontecendo”

Quando se pensa em pompa e Olimpíada, a primeira evocação histórica joga uma sombra sinistra sobre a memória: as imagens da extraordinária cineasta Leni Riefenstahl convidada por Hitler para filmar os jogos de Berlim, em 1936. O resultado, o filme Olympia, se tornou um marco do cinema, da representação de esportes e também da propaganda nazista. 

Mas a mistura de espetáculo e Jogos Olímpicos não foi inaugurada pelo Terceiro Reich. Quatro anos antes, dois organizadores de Berlim anotavam furiosamente tudo o que viam em Los Angeles, inclusive o voo de milhares de pombas sobre o Coliseu. Sim, Hollywood inventou o espetáculo olímpico hollywoodiano. O comitê organizador era integrado pelo tirano diretor de estúdio Louis M. Meyer e, toda dia, estrelas como os Irmãos Marx, Mary Pickford e Gary Cooper se revezavam no Coliseu e em festas para atletas. 

Esta e outras histórias são contadas por David Goldblatt em seu recém-lançado The Games: A Global History of the Olympics (Os Jogos: Uma História Global das Olimpíadas), uma crônica fascinante e desmistificadora da Olimpíada moderna. Goldblatt é um prolífico historiador de futebol, autor do best-seller The Ball is Round: A Global History of Soccer (A Bola é Redonda: Uma História Global do Futebol), de 2006, e de Futebol Nation (Nação do Futebol), lançado em 2014, uma história do Brasil por meio do esporte. 

Em 1896, um aristocrata e ex-seminarista francês, o Barão Pierre de Coubertin, montou a primeira Olimpíada na Grécia como um culto neo-helênico, o que Goldblatt chama de esporte como religião secular. Era um evento inspirado na cultura esportiva britânica e norte-americana do século 19, uma exibição de intrepidez e virtude da elite branca. 

Ao longo dos 100 anos seguintes, com as duas guerras mundiais e a Guerra Fria, os Jogos sempre foram eventos politizados e refletiram as tensões do século 20 muito mais do que os ideais de paz e neutralidade. 

Goldblatt acha que o futuro da Olimpíada enfrenta planos do próprio Comitê Olímpico Internacional, que, sob a presidência de Thomas Bach, quer implementar a chamada agenda 2020. “O problema da Agenda 2020 é se concentrar em como facilitar a candidatura das sedes,” diz Goldblatt, falando ao Aliás de sua casa em Bristol, na Inglaterra. “Mas o esporte global está numa crise moral marcada por casos de corrupção. A Agenda não toca na questão sobre o que é o movimento olímpico. É sobre direitos humanos? Sustentabilidade? Um legado social? Olhe para o Rio e veja o oposto acontecendo.” A seguir, trechos da conversa com Goldblatt. 

Por que diz que o sucesso de Barcelona não deve ser repetido?
Barcelona se tornou um exemplo que todas as cidades candidatas quiseram imitar. Na verdade, o sucesso foi tanto que a cidade hoje está tentando limitar o número de eventos, conferências internacionais, tal a sua atração para turistas. Mas o que aconteceu em Barcelona não pode ser repetido porque a Olimpíada lá não foi catalisadora e sim a coroação de esforços que começaram 20 anos antes, com investimentos que transformaram a cidade. E não gastaram pouco nos Jogos. Calculo que, em valores atuais, a cidade gastou US$ 8 bilhões. O fato é que Barcelona era uma pérola a ser redescoberta, a cidade sofreu durante a ditadura de Franco e era o momento de reaparecer. E que outras cidades, certamente não Atlanta, podem se orgulhar de abrigar um museu de Pablo Picasso e a Fundação Joan Miró?
 
E Atenas seria o exemplo que não deve ser imitado?
Pobre e querida Atenas. A cidade precisava de um impulso. Estava enfrentando um aumento de população sem infraestrutura. A Olimpíada deixou umas linhas de metrô, renovou a área do Partenon e ficou ao menos um aeroporto decente. Mas a Olimpíada lá foi um desastre completo em termos de custos e acredito que ninguém é capaz de apurar quanto custou – desconfio que mais do que US$ 16 bilhões. Foi uma confluência de corrupção, péssima gestão e megalomania. Construíram demais, planejaram mal e ficaram com elefantes brancos. A Vila Olímpica não contava com acesso apropriado, virou um gueto de residentes pobres.
 
O seu livro é crítico da alegação de que Jogos Olímpicos deixam um legado social.
Sim. E não me refiro apenas a cidades que enfrentavam problemas graves, como é o caso do Rio. A ideia de moradia subsidiada foi virtualmente abandonada nos Jogos de Vancouver em 2010 e de Londres em 2012. A Vila Olímpica do Rio vai basicamente virar um condomínio fechado para quem pode pagar os preços daqueles apartamentos. Num aspecto mais básico, uma Olimpíada deveria inspirar crianças e a população em geral a fazer esportes e se tornar mais saudável. Londres levou isso mais a sério do que nunca. Mas pesquisas revelam que os britânicos estão se exercitando menos. Já o crescimento econômico na forma de novos turistas não se revelou expressivo para cidades-sede desde Barcelona. Olimpíadas têm beneficiado empresários da indústria imobiliária, esse foi o caso em Atlanta. E há os extremos como Socchi, na Rússia, onde o estádio basicamente construído para abrir e fechar os Jogos está sendo convertido em arena de futebol para a próxima Copa. Mas o time de casa em Socchi é tão fraco que o estádio não vai ter público depois da Copa de 2018.
Foto: AP
 

Por falar na Rússia, e com o controverso Qatar anfitrião da Copa em 2022, como é, a seu ver, a questão de países autoritários como sede de grandes eventos esportivos?
Este parece ser o caso em relação à Fifa. O fato é que o autoritarismo não é determinante, mas sim a disposição de pagar propina. Vemos agora que as escolhas das Copas de 2006 e 2010 estão sendo investigadas. Um executivo alemão ligado a 2006 foi banido do futebol. A Fifa é realmente um caso lamentável. Mas há outros esportes com má governança, como o handebol. Quem acredita em coincidência na escolha, sem candidatura, da cidade de Eugene, no Oregon, para sediar o Campeonato Mundial de Atletismo de 2021? Eugene é onde fica a sede de uma pequena companhia chamada Nike. Apesar da minha paixão por futebol, eu considero seriamente um boicote à Copa no Qatar por causa das condições de trabalho escravo que são denunciadas.
 
Em seu livro, aponta que, independentemente dos escândalos olímpicos passados, o público mundial não se afasta dos Jogos, a audiência continua a crescer.
O mais grave, para mim, é a venda de resultado de jogos e apostas ilegais. Isso acaba com o entusiasmo e o carinho do público por times. O problema do doping, a meu ver, ainda não destruiu o apetite do público pela Olimpíada. Eu acho que o público não é ingênuo, sabia muito bem que o ciclista Lance Armstrong estava vitaminado. O mesmo aconteceu no beisebol norte-americano, não acredito que houve choque sincero quando explodiu o escândalo dos esteroides em 2009. Mas eu me pergunto se algo vai mudar, agora que ficou claro que o doping dos atletas russos foi uma política de Estado. Eu considero a decisão do COI autorizando a participação de atletas russos na Olimpíada um gesto de covardia injustificável.
 
Como a tecnologia digital afetou a experiência da Olimpíada ao vivo?
Quando era só a televisão, havia a ânsia de assistir aos grandes momentos ao vivo. Mas agora temos a fragmentação de audiência entre múltiplos gadgets. É verdade que os Jogos não estão dando os números em TV que vimos nos anos 1960-70. Mas ainda é uma audiência extraordinária e agora redistribuída. Se os Jogos perderam no compartilhamento ao vivo, ganharam com uma interação muito mais complexa, permitida pela rede social. O mundo raramente se concentra numa mesma coisa ao mesmo tempo, mas a humanidade é uma espécie complexa no que se refere a networking. Antigamente, um espectro mais estreito de vozes controlava a experiência dos Jogos. Mas parte da experiência olímpica é como se forma a narrativa. Agora, muitos mais podem participar, e isso é bom.
 
O quanto tem acompanhado o noticiário sobre os Jogos no Rio?
Eu vivo grudado na tela, acompanho tudo. A cidade está sob um escrutínio devastador. E, do jeito que os brasileiros são viciados em mídia social, tudo é exposto. Desculpe falar assim, mas ninguém esperava que o Rio não ia ser uma bagunça. Mas que desastre, hein? Não tenho dúvida de que a Olimpíada vai prejudicar o Rio. E quantas oportunidades perdidas de melhorar a cidade para os cariocas. A quem serve uma linha de metrô para a Barra da Tijuca? Uma metrópole tão disfuncional e violenta, com tanta falta de infraestrutura básica, investir na Olimpíada. Estou convencido de que vai ser uma experiência negativa para a população mais carente de investimento.
 
Como vê, da Inglaterra, a preocupação com terrorismo nos Jogos?
Não conheço ninguém que tenha cancelado a viagem por medo disso. Além de esperar, é claro, que nada aconteça, penso no medo que tivemos antes da Eurocopa 2016. A França temia que fosse uma oportunidade de atacar multidões. Nada aconteceu. E agora vemos a série de ataques na Alemanha e na França, em locais onde não se espera. É possível inundar o Rio com forças de segurança e devemos assistir à Olimpíada mais guardada da história. Desconfio que terroristas hoje preferem o fator surpresa.
 
Com a globalização e a revisão de períodos históricos que países não querem exibir, é mais difícil montar um espetáculo de abertura dos Jogos?
Sim, mas quando soube que tinham colocado Fernando Meirelles e Andrucha Waddington na direção, adorei. Cineastas brasileiros como os dois, quando acertam, acertam em cheio. Eu fui crítico do espetáculo de Londres dirigido pelo Danny Boyle. Sei que, de fora, é mais difícil notar, mas foi uma cerimônia mais inglesa do que britânica, passou ao largo da noção de império que tanto nos definiu. Mas isso é um pouco inevitável. Quando criticaram o glamour da abertura em Pequim, dirigida por Zhang Yimou, um jornalista americano comentou, com razão: “Vocês estavam esperando o quê? Os grandes expurgos comunistas?” Londres, ao menos, usou um certo humor depreciativo, e o que nós mais gostamos foi o tributo ao sistema nacional de saúde, um tesouro nosso. O Brasil tem tanta música sensacional, estou torcendo para o espetáculo de abertura não ser nostálgico e mostrar artistas contemporâneos mais arriscados.
-------------
Reportagem por  Lúcia Guimarães,
Fonte: http://alias.estadao.com.br/noticias/geral,muito-longe-do-olimpo-a-olimpiada-sem-duvida-vai-prejudicar-o-rio-diz-escritor-ingles,10000065869

Nenhum comentário:

Postar um comentário