De um mergulho na história das Olimpíadas, de 1896 para cá, o escritor inglês David Goldblatt emergiu com a convicção de que os Jogos refletem muito mais as tensões de nosso tempo do que ideais de paz. Ao chegar a vez de o Brasil sediar o evento, por que seria diferente? “Do que trata o movimento olímpico hoje? De direitos humanos? De sustentabilidade? Olhe para o Rio e veja o oposto acontecendo”
Quando se pensa em pompa e Olimpíada, a primeira evocação
histórica joga uma sombra sinistra sobre a memória: as imagens da
extraordinária cineasta Leni Riefenstahl convidada por Hitler para
filmar os jogos de Berlim, em 1936. O resultado, o filme Olympia, se tornou um marco do cinema, da representação de esportes e também da propaganda nazista.
Mas a mistura de espetáculo e Jogos Olímpicos não foi inaugurada
pelo Terceiro Reich. Quatro anos antes, dois organizadores de Berlim
anotavam furiosamente tudo o que viam em Los Angeles, inclusive o voo de
milhares de pombas sobre o Coliseu. Sim, Hollywood inventou o
espetáculo olímpico hollywoodiano. O comitê organizador era integrado
pelo tirano diretor de estúdio Louis M. Meyer e, toda dia, estrelas como
os Irmãos Marx, Mary Pickford e Gary Cooper se revezavam no Coliseu e
em festas para atletas.
Esta e outras histórias são contadas por David Goldblatt em seu recém-lançado The Games: A Global History of the Olympics (Os
Jogos: Uma História Global das Olimpíadas), uma crônica fascinante e
desmistificadora da Olimpíada moderna. Goldblatt é um prolífico
historiador de futebol, autor do best-seller The Ball is Round: A Global History of Soccer (A Bola é Redonda: Uma História Global do Futebol), de 2006, e de Futebol Nation (Nação do Futebol), lançado em 2014, uma história do Brasil por meio do esporte.
Em 1896, um aristocrata e ex-seminarista francês, o Barão
Pierre de Coubertin, montou a primeira Olimpíada na Grécia como um culto
neo-helênico, o que Goldblatt chama de esporte como religião secular.
Era um evento inspirado na cultura esportiva britânica e norte-americana
do século 19, uma exibição de intrepidez e virtude da elite branca.
Ao longo dos 100 anos seguintes, com as duas guerras mundiais e a
Guerra Fria, os Jogos sempre foram eventos politizados e refletiram as
tensões do século 20 muito mais do que os ideais de paz e neutralidade.
Goldblatt acha que o futuro da Olimpíada enfrenta planos do
próprio Comitê Olímpico Internacional, que, sob a presidência de Thomas
Bach, quer implementar a chamada agenda 2020. “O problema da Agenda 2020
é se concentrar em como facilitar a candidatura das sedes,” diz
Goldblatt, falando ao Aliás de sua casa em
Bristol, na Inglaterra. “Mas o esporte global está numa crise moral
marcada por casos de corrupção. A Agenda não toca na questão sobre o que
é o movimento olímpico. É sobre direitos humanos? Sustentabilidade? Um
legado social? Olhe para o Rio e veja o oposto acontecendo.” A seguir,
trechos da conversa com Goldblatt.
Por que diz que o sucesso de Barcelona não deve ser repetido?
Barcelona se tornou um exemplo que todas as
cidades candidatas quiseram imitar. Na verdade, o sucesso foi tanto que a
cidade hoje está tentando limitar o número de eventos, conferências
internacionais, tal a sua atração para turistas. Mas o que aconteceu em
Barcelona não pode ser repetido porque a Olimpíada lá não foi
catalisadora e sim a coroação de esforços que começaram 20 anos antes,
com investimentos que transformaram a cidade. E não gastaram pouco nos
Jogos. Calculo que, em valores atuais, a cidade gastou US$ 8 bilhões. O
fato é que Barcelona era uma pérola a ser redescoberta, a cidade sofreu
durante a ditadura de Franco e era o momento de reaparecer. E que outras
cidades, certamente não Atlanta, podem se orgulhar de abrigar um museu
de Pablo Picasso e a Fundação Joan Miró?
E Atenas seria o exemplo que não deve ser imitado?
Pobre e querida Atenas. A cidade precisava de
um impulso. Estava enfrentando um aumento de população sem
infraestrutura. A Olimpíada deixou umas linhas de metrô, renovou a área
do Partenon e ficou ao menos um aeroporto decente. Mas a Olimpíada lá
foi um desastre completo em termos de custos e acredito que ninguém é
capaz de apurar quanto custou – desconfio que mais do que US$ 16
bilhões. Foi uma confluência de corrupção, péssima gestão e megalomania.
Construíram demais, planejaram mal e ficaram com elefantes brancos. A
Vila Olímpica não contava com acesso apropriado, virou um gueto de
residentes pobres.
O seu livro é crítico da alegação de que Jogos Olímpicos deixam um legado social.
Sim. E não me refiro apenas a cidades que
enfrentavam problemas graves, como é o caso do Rio. A ideia de moradia
subsidiada foi virtualmente abandonada nos Jogos de Vancouver em 2010 e
de Londres em 2012. A Vila Olímpica do Rio vai basicamente virar um
condomínio fechado para quem pode pagar os preços daqueles apartamentos.
Num aspecto mais básico, uma Olimpíada deveria inspirar crianças e a
população em geral a fazer esportes e se tornar mais saudável. Londres
levou isso mais a sério do que nunca. Mas pesquisas revelam que os
britânicos estão se exercitando menos. Já o crescimento econômico na
forma de novos turistas não se revelou expressivo para cidades-sede
desde Barcelona. Olimpíadas têm beneficiado empresários da indústria
imobiliária, esse foi o caso em Atlanta. E há os extremos como Socchi,
na Rússia, onde o estádio basicamente construído para abrir e fechar os
Jogos está sendo convertido em arena de futebol para a próxima Copa. Mas
o time de casa em Socchi é tão fraco que o estádio não vai ter público
depois da Copa de 2018.
Por falar na Rússia, e com o
controverso Qatar anfitrião da Copa em 2022, como é, a seu ver, a
questão de países autoritários como sede de grandes eventos esportivos?
Este parece ser o caso em relação à Fifa. O
fato é que o autoritarismo não é determinante, mas sim a disposição de
pagar propina. Vemos agora que as escolhas das Copas de 2006 e 2010
estão sendo investigadas. Um executivo alemão ligado a 2006 foi banido
do futebol. A Fifa é realmente um caso lamentável. Mas há outros
esportes com má governança, como o handebol. Quem acredita em
coincidência na escolha, sem candidatura, da cidade de Eugene, no
Oregon, para sediar o Campeonato Mundial de Atletismo de 2021? Eugene é
onde fica a sede de uma pequena companhia chamada Nike. Apesar da minha
paixão por futebol, eu considero seriamente um boicote à Copa no Qatar
por causa das condições de trabalho escravo que são denunciadas.
Em seu livro, aponta que,
independentemente dos escândalos olímpicos passados, o público mundial
não se afasta dos Jogos, a audiência continua a crescer.
O mais grave, para mim, é a venda de resultado
de jogos e apostas ilegais. Isso acaba com o entusiasmo e o carinho do
público por times. O problema do doping, a meu ver, ainda não destruiu o
apetite do público pela Olimpíada. Eu acho que o público não é ingênuo,
sabia muito bem que o ciclista Lance Armstrong estava vitaminado. O
mesmo aconteceu no beisebol norte-americano, não acredito que houve
choque sincero quando explodiu o escândalo dos esteroides em 2009. Mas
eu me pergunto se algo vai mudar, agora que ficou claro que o doping dos
atletas russos foi uma política de Estado. Eu considero a decisão do
COI autorizando a participação de atletas russos na Olimpíada um gesto
de covardia injustificável.
Como a tecnologia digital afetou a experiência da Olimpíada ao vivo?
Quando era só a televisão, havia a ânsia de
assistir aos grandes momentos ao vivo. Mas agora temos a fragmentação de
audiência entre múltiplos gadgets. É verdade que os Jogos não estão
dando os números em TV que vimos nos anos 1960-70. Mas ainda é uma
audiência extraordinária e agora redistribuída. Se os Jogos perderam no
compartilhamento ao vivo, ganharam com uma interação muito mais
complexa, permitida pela rede social. O mundo raramente se concentra
numa mesma coisa ao mesmo tempo, mas a humanidade é uma espécie complexa
no que se refere a networking. Antigamente, um espectro mais estreito
de vozes controlava a experiência dos Jogos. Mas parte da experiência
olímpica é como se forma a narrativa. Agora, muitos mais podem
participar, e isso é bom.
O quanto tem acompanhado o noticiário sobre os Jogos no Rio?
Eu vivo grudado na tela, acompanho tudo. A
cidade está sob um escrutínio devastador. E, do jeito que os brasileiros
são viciados em mídia social, tudo é exposto. Desculpe falar assim, mas
ninguém esperava que o Rio não ia ser uma bagunça. Mas que desastre,
hein? Não tenho dúvida de que a Olimpíada vai prejudicar o Rio. E
quantas oportunidades perdidas de melhorar a cidade para os cariocas. A
quem serve uma linha de metrô para a Barra da Tijuca? Uma metrópole tão
disfuncional e violenta, com tanta falta de infraestrutura básica,
investir na Olimpíada. Estou convencido de que vai ser uma experiência
negativa para a população mais carente de investimento.
Como vê, da Inglaterra, a preocupação com terrorismo nos Jogos?
Não conheço ninguém que tenha cancelado a
viagem por medo disso. Além de esperar, é claro, que nada aconteça,
penso no medo que tivemos antes da Eurocopa 2016. A França temia que
fosse uma oportunidade de atacar multidões. Nada aconteceu. E agora
vemos a série de ataques na Alemanha e na França, em locais onde não se
espera. É possível inundar o Rio com forças de segurança e devemos
assistir à Olimpíada mais guardada da história. Desconfio que
terroristas hoje preferem o fator surpresa.
Com a globalização e a revisão de
períodos históricos que países não querem exibir, é mais difícil montar
um espetáculo de abertura dos Jogos?
Sim, mas quando soube que tinham colocado
Fernando Meirelles e Andrucha Waddington na direção, adorei. Cineastas
brasileiros como os dois, quando acertam, acertam em cheio. Eu fui
crítico do espetáculo de Londres dirigido pelo Danny Boyle. Sei que, de
fora, é mais difícil notar, mas foi uma cerimônia mais inglesa do que
britânica, passou ao largo da noção de império que tanto nos definiu.
Mas isso é um pouco inevitável. Quando criticaram o glamour da abertura
em Pequim, dirigida por Zhang Yimou, um jornalista americano comentou,
com razão: “Vocês estavam esperando o quê? Os grandes expurgos
comunistas?” Londres, ao menos, usou um certo humor depreciativo, e o
que nós mais gostamos foi o tributo ao sistema nacional de saúde, um
tesouro nosso. O Brasil tem tanta música sensacional, estou torcendo
para o espetáculo de abertura não ser nostálgico e mostrar artistas
contemporâneos mais arriscados.
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Reportagem por Lúcia Guimarães,
Fonte: http://alias.estadao.com.br/noticias/geral,muito-longe-do-olimpo-a-olimpiada-sem-duvida-vai-prejudicar-o-rio-diz-escritor-ingles,10000065869
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