Na mais recente contribuição à bibliografia
sobre o narcisismo, autora oferece um conselho para lidar com todo tipo
de superególatra: antes que seja tarde, fuja!
Eles estão por toda parte. Em lugares suspeitos e
insuspeitos. A qualquer hora são vistos, e é justamente isso o que eles
mais desejam. Nos Jogos Olímpicos, deram um show coletivo: de olho no
telão, aenando para as lentes da TV, “Ó, nós aqui!” Narciso se mirava
nas águas de um rio, nossos narcisistas não podem ver um espelho ou uma
câmera.
Sua vocação para papagaios de pirata é inexcedível. Se ninguém os
filma ou fotografa, uma selfie, essa cocaína especular, quebra o galho.
Suprassumo do onanismo fotográfico, a selfie foi o maior presente que a
era digital ofertou às pessoas mais carentes de atenção, reconhecimento
e adulação. Ególatras e exibicionistas, não resistem a um flagrante de
si mesmos, estejam onde estiverem, a sós ou acompanhados. Dane-se a
paisagem, dane-se o entorno, dane-se a Monalisa meio desfocada ao fundo.
“Ó, eu aqui!”
Não foi pelo simples prazer de brincar com as palavras que
neologismos como “selfish” e “narcistick” foram inventados. “Selfish” é
um amálgama perfeito de selfie com egoísta, em inglês; “narcistick”, uma
mistura de narcisista com stick, pau de selfie em inglês. A pandemia de
selfies veio confirmar uma suspeita: o espectro do narcisismo ronda o
planeta, germe de outro vocábulo recente – narcisfera, que é onde os
embeiçados pela própria imagem (não apenas no sentido icônico) gravitam
com mais intensidade e desfaçatez, a inundar as redes sociais de
inanidades verbais e irrelevâncias visuais que deveriam ser de consumo
restrito. E mais outro: narcifobia, que é a aversão que nos provocam os
autocentrados internautas do Facebook, do Instagram e do Twitter.
Como não ter medo de pessoas com excessiva (e invasiva)
autoestima? Medo e, em muitos casos, inveja. Pois se nem toda selfie
evidencia um “transtorno de personalidade narcisista” (para usar o termo
científico popularizado pelo psicanalista Heinz Kohut, meio século
atrás), nem toda autoestima excessiva faz mal à saúde psíquica; às vezes
pode ser saudável, estimulante, terapêutica, defende o doutor Craig
Malkin em Rethinking Narcissism (“Repensando o
Narcisismo”), provocante estudo sobre os malefícios e benefícios do
narcísico culto ao bem-estar, ao protagonismo e à soberba benigna.
Como estimar qual a taxa ideal de autoestima? A partir de que
ponto a autoestima torna-se destrutiva e autodestrutiva? Ao contrário da
febre, da hipertensão e dos terremotos, não existe um instrumento nem
uma escala para mensurar isso. Se algum cientista por ventura
inventá-la, não lhe faltarão nomes mais apropriados que o seu para
batizá-la: Escala Kim Kardashian, Escala Justin Bieber, Escala Donald
Trump, Escala Kenye West. Todos irreprocháveis.
Um analista político insinuou há tempos a emergência de um novo
sistema bipartidário na América, não mais opondo democratas e liberais a
republicanos e conservadores, mas narcisistas (sob a sigla PN) e seus
antípodas (do Partido da Baixa Estima). Por seu próprio jeito mercurial
de ser e por seu fetiche do excepcionalismo americano, Trump seria
filiado ao Partido Narcisista – o mais afinado, por sinal, com a maioria
dos políticos, bons (Franklin Roosevelt), maus (Collor) e ditadores
(Hitler, Stalin, Mao, Gadhafi). Por motivos óbvios, Bill Clinton seria
colega de legenda de Trump, até porque o impulso libidinal é elemento
destacado na caracterização do narcisista.
Ou foi, quando Freud enfiou sua colher no conceito colhido na
mitologia grega pelos clínicos ingleses Havelock Ellis e Paul Näcke,
ainda no século 19. Quatro anos antes de produzir seu estudo sobre o
narcisismo, em 1914, Freud já usava o termo para explicar “a escolha de
objetos nos homossexuais, que primeiro tomam-se a si mesmos como objeto
sexual (...) e procuram jovens que se pareçam com eles, e a quem possam
amar como a mãe os amou a eles”. Depois, sua análise embrenhou-se por
outras veredas, para alívio dos gays e das mulheres, ainda que muitas
delas, fiéis ao arquétipo delineado por Freud, não consigam passar por
uma vitrine (até de açougue serve) sem dar uma espiada de soslaio em sua
refletida silhueta.
De tanto ouvir falar numa “epidemia de narcisismo” (segunda no
ranking de expressões prêt-à-porter, a primeira ainda é “banalidade do
mal”) e de ler a respeito de NPD (a sigla em inglês de Transtorno de
Personalidade Narcisista), Kristin Dombek resolveu investigar a
procedência da metástase narcísica e a transformação de um problema
psíquico individual em fenômeno cultural, de resto, retratado (por Tom
Wolfe) e analisado (por Christopher Lasch) em seu primeiro apogeu, na
década de 1970, adrede rotulada de “Me decade”.
Admirada por seus conselhos de alta (repito: alta) ajuda nas revistas The Paris Review e n+1, Dombek escreveu um rico e sombriamente engraçado ensaio de 140 páginas, The Selfishness of Others
(“O Egoísmo dos Outros”, a US$ 10 na versão kindle), com ênfase na
narcifobia e como o temor aos que fazem do mundo um espelho pode
distorcer nossas relações interpessoais. É a mais recente contribuição
teórica à colossal narcisobibliografia.
Assim como existem narcisistas de variada espécie e
periculosidade – inofensivos (a turma do selfie e da autopromoção nas
redes sociais), vaidosos, gabolas delirantes (“eu já transei com mais de
20 garotas da Playboy”), agressivos, fálicos, corporativos (vulgo
bozós), farisaicos, oniscientes – existem livros que nos ensinam a
farejá-los à distância (pelos mimos maternos, pelas postagens na
internet), a distingui-los de perto (pelo mau comportamento social:
loquazes, autorreferentes, espalhafatosos, arrogantes), e a lidar com
cada um deles, seja para evitá-los, desmascará-los e combatê-los de
igual para igual.
Como se defender de um narcisista extremado? Joseph Burgo, autor de The Narcissist You Know
(“O Narcisista que Você Conhece”), tem as dicas necessárias. Como se
vingar de um narcisista e usar contra ele as técnicas secretas da
manipulação emocional por ele utilizadas? Leyla Loric e Richard Grannon
ensinam em How to Take Revenge On a Narcissist (“Como se Vingar de um Narcisista”).
Dombek, de quem já lera observações inteligentes sobre sexo,
aborto e descrença religiosa, navega pela mitologia grega, a literatura
clássica (o inevitável Ovídio), a teoria psicanalítica (Freud, Alice
Miller, Donald Winnicott, Otto Kernberg), por reality shows, pela
autoajuda online, pela psicosociologia pop. Ela faz questão de
distinguir bem os narcisistas prosaicos daqueles que postam mensagens
superególatras nas redes sociais, pegam em armas e invadem shoppings,
escolas e cinemas, para extravasar seu instinto homicida. Seu único
conselho: fuja antes que seja tarde. Dos dois.
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Reportagem por Sérgio Augusto,
Fonte: O Estado de S.Paulo -
Fonte: O Estado de S.Paulo -
http://alias.estadao.com.br/noticias/geral,olha-eu-aqui-autora-indica-como-lidar-com-narcisistas-ao-se-deparar-com-um-deles-fuja,10000072358
Foto: ROBERT PRATTA | REUTERS
DO BLOG:
O que é narcisismo?
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O que é narcisismo?
Com base nas ressonâncias desse termo, Freud desenvolveu um dos conceitos mais importantes de sua teoria | |||||||
Muitas vezes a palavra “narcisismo” é utilizada no senso comum de maneira pejorativa, para designar um excesso de apreço por si mesmo. Para a psicanálise, trata se de um aspecto fundamental para a constituição do sujeito. Um tanto de amor por si é necessário para confirmar e sustentar a autoestima, mas o exagero é sinal de fixação numa identificação vivida na infância. A ilusão infantil de que o mundo gira ao nosso redor é decisiva nessa fase, mas para o desenvolvimento saudável é necessário que se dissipe, conforme deparamos com frustrações e descobrimos que não ser o centro do universo tem suas vantagens. Afinal, ser “tudo” para alguém (como acreditamos, ainda bem pequenos, ser para nossa mãe) é um fardo pesado demais para qualquer pessoa. Alguns, no entanto, se iludem com o fascínio do papel e passam sua vida almejando o modelo inatingível de perfeição. Diz o mito grego que Narciso era uma criança tão linda e admirada que sua mãe, Liríope, preocupada com esse excesso, levou-o até o sábio Tirésias. Ele lhe disse que o menino só teria uma vida longa se jamais visse a própria imagem. Por muito tempo essas palavras pareceram destituídas de sentido, mas os acontecimentos que se desenrolaram mostraram seu acerto. Na adolescência, Narciso era um jovem belíssimo, mas muito soberbo. Ao passear certo dia pelo campo, a jovem Eco o viu e se apaixonou por ele, mas o rapaz a repeliu. Um dia, cansado, Narciso dirigiu-se a uma fonte de águas límpidas. Eis então que a profecia se realiza: ao ver-se refletido no espelho das águas, enlouqueceu de amor pelo próprio reflexo. Embevecido, não tinha olhos nem ouvidos para mais nada: não comia ou dormia. Em vão, Eco suplicava seu olhar. Mas Narciso só olhava para si. Apaixonado, ensimesmado, busca para aplacar sua dor um outro que, sendo ele mesmo, não lhe responde. Realizase, então, seu destino: mergulha no espelho e desaparece no encontro impossível. Sem a possibilidade de reconhecimento do que é a própria imagem e do que é o outro, o corpo de Narciso tornou-se pura miragem e desfez-se nas águas... E Eco, que só a Narciso perseguia, só por ele clamava, só nele vivia, petrificou-se e perdeu o poder de sua própria palavra. Narciso não cria laços; não partilha seu encanto. Perde-se na imagem de si. Eco também se perde e, no desencontro, entrega-se à repetição compulsiva, sem poder se separar da miragem idealizada. Com base nas ressonâncias desse mito Freud desenvolverá um dos conceitos mais importantes de sua teoria – o narcisismo. Mencionado pela primeira vez em seus escritos em 1909, é apresentado como uma fase própria do desenvolvimento humano, quando se realiza a passagem do autoerotismo, do prazer centrado no próprio corpo, para o reconhecimento e a busca do amor em outros objetos – diferentes de si. Passagem importante e cheia de inquietações já que implica a saída da gratificação por aquilo que é efeito apenas da própria imagem – “Narciso só reconhece o que é espelho” – para a realização de uma das conquistas mais importantes da cultura: a possibilidade de viver, aceitar e trabalhar com a alteridade e, portanto, com as diferenças. Freud aborda explicitamente esse conceito – efeito do confronto vivido por ele mesmo ao deparar com argumentos de Adler e Jung, que questionavam suas teorias acerca do lugar ocupado pela sexualidade na constituição da subjetividade e na compreensão das patologias. A legitimidade do conceito justificouse a partir da experiência freudiana com a clínica, naquilo que reconheceu como resistência dos pacientes em abandonar suas posições amorosas, nas manifestações da onipotência infantil e do pensamento mágico, nas doenças orgânicas e na hipocondria – quando toda a libido se volta para o corpo doente – e nos delírios de grandeza das psicoses. Em O mal-estar na civilização, de 1930, Freud diz que um dos grandes obstáculos do homem em sua busca pela felicidade, e que lhe traz maiores dificuldades, é o sofrimento resultante das relações humanas, pois elas nos colocam em confronto com aquilo que, não sendo espelho, nos solicita novos posicionamentos. Toda criança, ao nascer, é banhada por vários olhares e desejos. Quando se contemplar no espelho, não verá o simples reflexo físico de uma imagem, mas tudo o que esses olhares depositaram no seu corpo. É um momento fulgurante de “sua majestade, o bebê!”. Júbilo para a criança e para os pais, que veem renascer das cinzas sua própria imagem idealizada e todos os seus anseios irrealizados. Instante de narcisismo primário – constitutivo e alienante. O bebê será um herói, vencerá todos os perigos; trata-se de um momento necessário, mas cheio de riscos. Se não ocorre, a imagem de si pode não se constituir, pode se fragilizar, parecendo insuficiente. Se for excessivo, torna-se aprisionante, comprometendo o futuro, a possibilidade de construção de projetos e os ideais. Se tudo corer bem, a criança se desligará desse olhar primordial e escapará do destino fatal de Narciso – embeber-se, afogado, na tentativa de perpetuar o encontro com a imagem que as águas lhe devolviam. Os desdobramentos do narcisismo são de fundamental importância para a análise do mundo em que vivemos. A valorização da imagem e do sucesso a qualquer custo reduz a tolerância das mínimas divergências – o que Freud chamou de narcisismo das pequenas diferenças – e acirra os conflitos, seja nas pequenas discordâncias do cotidiano ou nos grandes conflitos bélicos. Se o outro não me satisfaz, se não é espelho daquilo que almejo, se tenta opor se às minhas vontades e ameaça minha autoestima, eu o aniquilo. O terreno é propício para preconceitos, fanatismos e violência. A tragédia vivida por Narciso não nos abandona. Deixa sempre restos que nos fazem seguir pela vida tentando reencontrar o olhar mágico que nos enlevava e nos dizia tudo que éramos. Busca incessante de certezas, de entrega passiva às ilusões... | |||||||
FONTE:http://www2.uol.com.br/vivermente/artigos/o_que_e_narcisismo_.html |
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