"Cada vez menos os eleitores confiam nas promessas feitas pelas pessoas que elegem para governar; amargamente descrentes por causa das promessas não cumpridas do passado, os eleitores não chegam a esperar que desta vez as promessas sejam cumpridas." Zygmunt Baumann |
Nexo, 04-08-2016, reproduz os seguintes trechos do livro.
Zygmunt Bauman
é o grande pensador da modernidade, a qual qualificou tão bem com o
célebre conceito de “liquidez”. Perspicaz analista dos atos cotidianos, o
sociólogo tem vasta obra sobre temas contemporâneos, com destaque para o
best-seller Amor líquido. Bauman nasceu na Polônia e
mora na Inglaterra desde 1971. Professor emérito das universidades de
Varsóvia e Leeds, tem mais de trinta livros publicados no Brasil pela
Zahar, com enorme sucesso de público.
Ezio Mauro
é jornalista e escritor. Nascido na Itália, trabalhou por mais de 40
anos nas principais redações de seu país, foi correspondente
internacional e dirigiu os importantes periódicos La Stampa e la Repubblica.
Eis os trechos do livro.
Ezio Mauro: Como um exército invasor num reino adormecido, a crise
marcha com facilidade desconcertante por sobre a totalidade do sistema
material, institucional e intelectual das estruturas democráticas que o
Ocidente erigiu depois da guerra: governos, parlamentos, órgãos
intermediários, sujeitos sociais, antagonismos, o Estado de bem-estar
social, partidos e movimentos nacionais, internacionais e continentais –
vale dizer, tudo o que criamos para desenvolver e aperfeiçoar o
mecanismo da democracia, tendo em vista nos proteger nas nossas vidas em conjunto.
Nós agora sabemos que esse mecanismo não é capaz, por si mesmo, de
nos proteger. Que a crise o penetra e deforma à medida que avança,
esvaziando-o. Na verdade, estamos descobrindo que acreditar nas formas e
instituições da democracia não é o bastante. A democracia não é autossuficiente.
Nós não temos alternativa, portanto, exceto nos perguntarmos até que ponto a crise atual
vai levar as transformações que ela ocasionou. Essa crise é econômica e
financeira, se olharmos para o que a desencadeou. No entanto, é também
política, institucional e, consequentemente, cultural, se avaliarmos seu
impacto cotidiano, que pode ser resumido da seguinte maneira: governos
democráticos são instáveis porque tudo está fora de controle.
Todos nós sabíamos desde o começo que não seria uma mera sacudidela, mas uma transformação profunda,
e que as transformações que se originaram em primeiro lugar na esfera
da economia financeira, depois naquelas da indústria e do emprego, logo
se tornariam dinâmica social e política cujas consequências afetariam o capitalismo
e a governança sistêmica tal como os conhecemos, as formas de
organização espontânea da sociedade, em outras palavras, a própria
democracia.
O que me impressiona hoje, porém, é outra coisa, algo para que eu gostaria de chamar sua atenção. Algo que denominarei autonomia da crise.
Vejamos. A crise é indiferente ao processo democrático, ela atua sob
sua linha de sombra projetada, por assim dizer, tirando vantagem das
fraquezas desse processo e exagerando-as.
Devemos reconhecer, portanto, que a crise é uma
força, mas uma força desprovida de todo e qualquer pensamento. Isso não
significa, claro, que não haja causas, interesses, culpas,
responsabilidades em sua origem e em seu desenvolvimento, e que não haja
quem colha seus benefícios até hoje. Todavia, assim como a bola de
demolição destrói tudo no fim de Ensaio de orquestra, de Fellini, o mesmo se dá com a crise: trata-se de uma força que afirma sua autonomia
sem qualquer teoria perceptível de si mesma e de sua ação, sem projeto,
mas com uma força de ação cujas consequências são dolorosamente
visíveis.
Por essa razão, eu fico me perguntando se meu país – e com toda probabilidade também o seu –, se esse grande país que a Europa
é hoje seria capaz de pensar a si mesmo (se com “pensar a si mesmo”
queremos dizer refletir em conjunto sobre seu futuro, atentos ao passado
e esquadrinhando os horizontes em busca de alguma perspectiva, agora
que toda grande Esperança se dissipou num ocaso). É como se agora, sem
as ideologias que felizmente enterramos e deixamos para trás, nós já não
fôssemos mais capazes de examinar em conjunto nossos corações e cuidar
do que está à frente. No próprio momento em que tudo aquilo que nos
ajudou a criar este “juntos” desabou – os partidos, a grande cultura
política, os modos de expressão –, o espaço para o debate e a reflexão
encolheu subitamente, e o discurso público vigente se atrofiou. Talvez
já não sejamos mais capazes de formar uma opinião pública,
mesmo que tenhamos a liberdade de apregoar livremente as opiniões
privadas, reduzidas a pílulas e lançadas globo afora em milhares de
tuítes diários; e mesmo que estejamos até o pescoço num mar de
comentários e estilhaços de percepções urdidos em brincadeiras,
trocadilhos, invectivas e aforismos.
Você testemunhou o desmoronamento de tudo o que deveria dar forma e
substância a pensamentos genuínos e bem organizados que se agregam e
desenvolvem pelo debate. Você deu um nome a esse fenômeno. Agora, temos
que nos fazer a pergunta conclusiva radical: devemos nos perguntar se o
próprio pensamento que se encarregou de pensar o mundo líquido não acabará desmoronando.
Depois, temos de indagar como seremos capazes de viver sob a ameaça
de ondas persistentes, sem qualquer ponto ou instrumento para medir o
peso e a distância das coisas, completamente sós, em mar aberto. Como a
democracia está sob ataque – pois esta é a questão em jogo hoje –, nós
devemos indagar se ela ainda é capaz de pensar sobre si mesma, se ainda é
capaz de se repensar, de modo a imaginar de novo e recuperar o poder de
governar de fato.
Zygmunt Bauman: Você acertou na mosca destacando que a presente crise,
que afeta todos os aspectos da nossa condição, atinge profundamente
“tudo o que criamos para desenvolver e aperfeiçoar o mecanismo da
democracia, tendo em vista nos proteger nas nossas vidas em conjunto”.
Na verdade, atinge. De súbito, todos nós nos sentimos vulneráveis –
individual, grave e simultaneamente, como nação ou como espécie humana.
No entanto, como Thomas Paine advertiu nossos ancestrais em Senso comum
(1776), um dos documentos mais seminais da era moderna, quando
sofremos, ou somos expostos por um governo às mesmas misérias que
poderíamos esperar de um país sem governo, nossa calamidade é ampliada
pela reflexão de que nós mesmos suprimos os meios pelos quais sofremos.
Governos, como o vestuário, são o emblema da inocência perdida; os
palácios dos reis são construídos sobre as ruínas das choupanas do
paraíso. Fossem os impulsos da consciência obedecidos de modo claro,
uniforme e irresistível, o homem não precisaria de nenhum outro
legislador. Mas, como esse não é o caso, ele julga necessário ceder uma
parte de sua propriedade a fim de prover os meios para a proteção dos
demais; e é induzido a fazê-lo pela mesma prudência que, em todos os
demais casos, o aconselha, dentre dois males, a escolher o menor.
Consequentemente, sendo a segurança o verdadeiro propósito e fim do
governo, decorre irretorquivelmente que qualquer forma de governo que
nos pareça mais capaz de garanti-la, com o mínimo de aventura e o máximo
de benefício, é preferível a todas as demais.
Essas palavras foram rabiscadas por Paine mais de um século depois de Thomas Hobbes ter proclamado – em seu Leviatã,
outro documento fundador da modernidade – que a garantia e o provimento
de segurança são a razão primordial, a tarefa suprema e a obrigação
inegável do Estado, portanto, sua raison d’être. Nós não
podemos viver sem governos adequadamente armados de meios de coerção,
sugeriu Hobbes, pois na ausência de tais governos as pessoas sofreriam
de “medo contínuo”; e a vida do homem seria “solitária, pobre, torpe,
bestial e curta”. O propósito de ter governo é estar seguro. Como
observou Sigmund Freud, em nome de maior segurança, nós
tendemos a estar prontos para sacrificar e ceder grande parte de outro
valor que exaltamos, a liberdade. Contudo, como esses dois valores não
são na prática plenamente conciliáveis (para qualquer aumento da
segurança é preciso pagar com uma parte de liberdade, e vice-versa!), a
vida humana está fadada a continuar um compromisso lamentado mas
inevitável entre segurança para sempre incompleta e liberdade para
sempre incompleta. É da natureza desse compromisso, por conseguinte, que
ele não seja plenamente satisfatório; qualquer arranjo específico induz
os dois lados a negociar ou a impor um equilíbrio diferente de ganhos e
perdas.
De maneira pendular, nós vamos da ânsia por mais liberdade à angústia por mais segurança.
Mas não podemos ter ambos em quantidade suficiente. Como a sabedoria
popular inglesa conclui tristemente, “Não dá para ter o bolo e comê-lo
também”. Conforme nos preveniu Paine, hoje nós estamos
“expostos por um governo às mesmas misérias que esperaríamos de um país
sem governo”. Essa miséria angustiante, que entregamos ao cuidado dos
governos para nos aliviar, mas que hoje nos assombra pela iniciativa dos
governos, com a assistência ativa ou a indiferença resignada dos
mesmos, está na essência do sentido existencial da insegurança.
Como você corretamente enfatiza, é pelo sistema democrático
como tal, essa densa rede de instituições que nossos pais projetaram
com engenho e teceram com lavor, que um grande número de seus sucessores
e nossos contemporâneos se sentem traídos e desapontados.
A mais horrenda manifestação dessa frustração é a distância crescente
entre os que votam e os que são postos no poder pelo seu voto. Cada vez
menos os eleitores confiam nas promessas feitas pelas
pessoas que elegem para governar; amargamente descrentes por causa das
promessas não cumpridas do passado, os eleitores não chegam a esperar
que desta vez as promessas sejam cumpridas.
Com frequência cada vez maior, os eleitores apenas procedem
mecanicamente – mais guiados por seus hábitos adquiridos que por alguma
esperança de mudança para melhor ensejada pelo seu voto. Na melhor das
hipóteses, eles vão às cabines eleitorais para escolher males menores. A
ampla maioria dos cidadãos raramente acredita, se é que acredita, que a
perspectiva de mudar o curso dos acontecimentos na direção certa –
possibilidade que no passado tornava a democracia tão atraente e a
participação ativa nos procedimentos democráticos tão desejável – está
hoje entre as cartas do baralho e ao alcance da mão. Como observou J.M. Coetzee em seu Diário de um ano ruim:
Confrontada à escolha entre A e B, considerando o tipo de A e o tipo
de B que geralmente consegue colocar seus nomes na cédula eleitoral, a
maior parte das pessoas, das pessoas comuns, se inclina no fundo a não
escolher nenhum. Mas trata-se apenas de uma propensão, e o Estado não
lida com propensões. ... O Estado balança a cabeça. Você tem de
escolher, diz o Estado: A ou B.
Hoje nós testemunhamos que a escolha tradicional entre “servidão plácida, por um lado, e revolta contra a servidão,
por outro”, está caindo em desuso, deixando de compreender a atitude
atual da maior parte do eleitorado em relação àqueles que elege para
governar.
Uma terceira atitude cresce rapidamente em popularidade e agora é
“adotada por milhões de pessoas todos os dias” – postura que Coetzee
descreve como marcada por “quietismo, obscuridade voluntária ou
emigração interior”. Colapso da comunicação entre a elite política e os demais?
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Fonte: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/558537-qbabel-entre-a-incerteza-e-a-esperancaq-zygmunt-bauman-e-ezio-mauro
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