terça-feira, 16 de agosto de 2016

Pokémon Go: este jeito de viver

christian dunker pokemon
"Esperemos que o Pokémon-Go nos tire de casa, mas principalmente que ele nos tire de dentro de 
nossas próprias Pokébolas."

Por Christian Ingo Lenz Dunker.*

A literatura de China Miéville, da qual falei na minha última coluna, trabalha sobre uma duplicidade constitutiva de nossa experiência contemporânea: estamos em um território, mas ele se duplica em espaços de experiência que não se sobrepõem a ele. É a experiência banal de um jantar em família no qual todos estão ao celular. Isso não é apenas a réplica da experiência de Pascal, que nos falava daqueles que participam do rito religioso, mas em silêncio estão a dizer blasfêmias e impropérios. Qualquer professor consegue reconhecer aqueles alunos que estão em sua sala de aula apenas de corpo presente, alguns com a alma liberta a navegar por territórios imaginativos nunca antes experimentados. Hegel diria que essa atitude exprime uma espécie de resistência interna dos vencidos, típica dos estoicos: “por fora me comporto como um escravo, mas por dentro sou livre e senhor de mim mesmo”.

Até os anos 1990 a principal expressão imaginária dessa divisão eram os super-heróis e seu universo bífido: Clark Kent, o covarde repórter, tornava-se o Super-Homem; Peter Parker, com seu crônico sentimento de rejeição, virava o descolado Homem-Aranha; o rico solitário Bruce Wayne transformava-se em Batman. Por meio deles, as gerações do pós-guerra podiam formar um tipo de fantasia onde o lado B de cada um de nós era uma parte decisiva e necessária para suportar a mediocridade ordinária do lado A. A própria ideia de termos dois lados remonta aos discos de vinil que tinham a cada vez que ser invertidos depois de escutados. Prazer e lazer, dia de semana e fim de semana, trabalho e férias organizam nossa vida ao modo desse dualismo elementar.

Os primeiros heróis consagrados pela vida digital tinham outra compleição. Lançado em 1996 o Pokémon é um ótimo exemplo disso. Ash Ketchum é um menino sem superpoderes, os quais adquire através dos Pokémons que captura e treina. Seu processo é pedagógico: ele treina os monstros portáteis supervisionado pelo Professor Carvalho. As aventuras de Ash, Brock e Misty, são uma saga contemporânea. Assim como Yu-Gi-Oh, Isa TKM, Jonas Brothers ou High School Musical, o tema é a passagem adolescente, a vida entre batalhas e conflitos baseados no princípio do aperfeiçoamento e da continuidade. Eles trabalham com uma série evolutiva na qual um problema inicialmente simples torna-se incrivelmente complexo, elevando a capacidade de pensar combinatoriamente elementos, habilidades, sorte e senso de perspectiva. Sua ética é a da honra e da vergonha, com um senso sincero de hierarquia. Ash, assim como Naruto, o hospedeiro da “Raposa de Nove Caudas”, é um empreendedor, que precisa fazer escolhas e tomar decisões sem contar com poderes massivos a seu favor. Muitas vezes ele perde e deve reconhecer a existência de forças mais elevadas. Também não existem vilões fixos tomados por uma monomania persecutória. Um dos traços que fizeram a força de sua franquia são seus desdobramentos em jogos de cards, filmes, seriados. Essa multiplicação dos meios de linguagem foi fundamental para a produção da eficácia de Pokémon, pois foi assim que ele deixou de ser apenas uma narrativa envolvente e passou a ser um discurso.

Por que, então, esse retrato é tão radicalmente diferente da imagem que fazemos de nossos adolescentes? Horror pela hierarquia natural, desprezo por processos evolutivos, dificuldades trágicas para lidar com derrotas e atitude esquiva em situações de conflito real. É que esse mundo de ponta-cabeça não é apenas o contrário do anterior, mas seu contrário deslocado. Agora não é mais preciso sonhar que existe uma essência interior que um dia será descoberta e de onde emergirá o Super-Homem ou a Super-Mulher: já somos assim especiais, excepcionalmente cheios de habilidades, meninos azuis, que aprendem como mutantes X-Men – por isso sonhamos com uma vida pacata na qual havia alguma ordem e autoridade, originada em um mundo distante como o oriental ou o medieval. Além de uma nova narrativa há uma mudança na experiência de realidade, primeiro interativa, depois compartilhada e finalmente capaz de misturar o virtual e o real em plena luz do dia. O elemento novo aqui não acontece sem a subtração de um ingrediente fundamental: o conflito real. Não tenho mais de me retirar para uma vida interior onde serei livre. Posso reduzir a espessura do conflito a uma série de acumulações e me tornar, assim, o senhor de meu próprio universo. Os monstros que tenho de enfrentar são apenas meus monstros. A divisão muda de forma: agora ela se dá entre a extensão do mundo em que você quer viver e o tamanho do eu que você pode pagar.

Esse novo tipo de divisão subjetiva não posiciona alguém entre duas dimensões, a pública e a privada, mas cria uma espécie de “condomínio interior ampliado”. Todos que acompanharam filhos crescendo nessa primeira geração inteiramente conectada e totalmente inscrita na lógica do video game sabem o que significam as sete gerações de Pokémons, as evoluções de Bulbassauro, Squirtle e Charmander. Eles criavam, como todo universo imaginário socialmente compartilhado, uma referência comum sobre como devemos fantasiar: acumulando potencialidades, aprimorando talentos e trabalhando em equipe. O efeito colateral, dos quais muitos pais se queixam, é o embotamento da vida reduzida ao sofá. A conversa interminável que exige uma semântica específica, da qual os adultos podem entender os princípios, mas não propriamente fruir da satisfação específica que decorre da prática. Perfeito, portanto, para essa função de separação entre mundos que se estreitaram perigosamente nos últimos tempos, com os adultos se tornando mais e mais adolescentes.

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Ilustração de Ben Jennings

Diante dessa preocupação, Pokémon Go é o jogo certo para uma geração que deve sair do sofá e ir para a rua. O objetivo é coletar Pokémons, que aparecem em lugares os mais diversos da cidade e concentram-se em portais e ginásios onde os monstrinhos podem ser equipados e qualificados. Munida de um celular, a pessoa literalmente “vê” a presença dos Pokémons, boiando na rua, que podem então ser capturados. Por isso as pessoas saem caçando espécimes, inclusive raros, que só brotam em certos continentes específicos, e adquirindo Pokébolas onde os monstrinhos são guardados. Contudo, o “core” do jogo original, que era o confronto entre os treinadores de Pokémons, não acontece. É um jogo de acumulação, sem interação real entre os participantes, a não ser quando se trata de tomar posse de um ginásio ou de estabelecer um portal. Bares e restaurantes podem investir dinheiro para sediar o ponto de encontro virtual. A moral permanece a mesma: quem se apossa e acumula capital simbólico está em condição de controlar o tamanho de seu mundo e fazer-se senhor em sua própria morada.

Harry Potter, O Senhor dos Anéis e Star Wars não são apenas a repetição da mesma coisa, como os games casuais do tipo Candy Crush ou aqueles com objetivos predefinidos como os de luta ou tiro. Essa lógica formou uma geração para consumir séries, não mais filmes isolados, bandas ou atores de sucesso do “star system”. O potencial de resgate imaginário que tais sagas trouxeram para a capacidade de criar outros mundos e pensar racionalidades altamente complexas com narrativas criativas é notável. Mas isso parece ter um preço em termos da relação entre a racionalidade administrativa, necessária para ser bem-sucedido no jogo, e a capacidade de transpor e adaptar o risco simulado ao risco real, necessária para operar relações transformativas na vida efetiva. Por exemplo: já se chamou a atenção para o fato de que, apesar de os bichinhos se apresentarem em inúmeras variantes (psíquicos, voadores, elétricos, de água, fogo, terra etc.), e apesar de evoluírem de suas 150 formas iniciais para tipos mais e mais avançados, eles jamais acasalam. Há muitos gêneros, mas nenhum sexo. Nesse mundo, gerado pelo crescimento dos amorfossexuais Teletubbies, não há relações amorosas ou sexuais aludidas, apenas amizades e fidelidades, como a que reina entre Pikachu e Ash. Isso antecipa o fenômeno dos jovens de tão pouca experiência e interesse em relações amorosas mais extensas, “em estrutura de saga”, e sua dramática dificuldade em expor-se a conflitos reais. Ainda que isso pareça estar mudando rapidamente para a geração subsequente (dos ocupadores de escolas), talvez tenhamos evoluído de uma forma de vida na qual os super-heróis masculinos tinham amantes impossíveis para uma época na qual amar alguém tornou-se uma atividade para colecionistas.

A distribuição dos Pokémons obedece a um mapa formado a partir de dados obtidos em um jogo anterior, o Ingram, cujo fracasso foi atribuído ao fato de exigir um celular muito avançado para a época. Isso explica porque a avenida Paulista é um dos pontos de maior concentração mundial de Pokémons, enquanto o Capão Redondo permanece uma zona de rarefação. Muitos poderiam dizer que o jogo é ótimo, pois faz as pessoas andarem pela cidade, saírem de casa, descobrirem lugares novos e encontrarem-se no espaço público. É verdade, e tomara que isso aconteça. Mas o caso exemplifica por que o espaço público não é sinônimo de território aberto da cidade. Ele é público em função das relações que efetivamente travamos, não do tipo de circulação física que fazemos. Certo, nem toda relação se dá por palavras e a maior parte dela ocorre tendo a fantasia como mediação e condição de possibilidade dos encontros desejantes. Nesse nível, é preciso observar que, ao excluir a interação entre jogadores e a prática das batalhas, Pokémon Go individualiza ainda mais nossa experiência comum, agora fora de nossa casa. Esperemos que o Pokémon Go nos tire de casa, mas principalmente que ele nos tire de dentro de nossas próprias Pokébolas.
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*Psicanalista, professor Livre-Docente do Instituto de Psicologia da USP, Analista Membro do Fórum Lacaniano, fundador do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP, autor de "Estrutura e Constituição da Clínica Psicanalítica" (AnnaBlume, 2011) prêmio Jabuti de melhor livro em Psicologia e Psicanálise em 2012. Desde 2008 coordena, junto com Vladimir Safatle e Nelson da Silva Junior, o projeto de pesquisa Patologias do Social: crítica da razão diagnóstica em psicanálise. Colabora com o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.
Fonte:  https://blogdaboitempo.com.br/2016/08/16/pokemon-go-este-jeito-de-viver/

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