"Esperemos que o Pokémon-Go nos tire de casa, mas principalmente que ele nos tire de dentro de
nossas próprias Pokébolas."
Por Christian Ingo Lenz Dunker.*
A literatura de China Miéville, da qual falei na minha última coluna,
trabalha sobre uma duplicidade constitutiva de nossa experiência
contemporânea: estamos em um território, mas ele se duplica em espaços
de experiência que não se sobrepõem a ele. É a experiência banal de um
jantar em família no qual todos estão ao celular. Isso não é apenas a
réplica da experiência de Pascal, que nos falava daqueles que participam
do rito religioso, mas em silêncio estão a dizer blasfêmias e
impropérios. Qualquer professor consegue reconhecer aqueles alunos que
estão em sua sala de aula apenas de corpo presente, alguns com a alma
liberta a navegar por territórios imaginativos nunca antes
experimentados. Hegel diria que essa atitude exprime uma espécie de
resistência interna dos vencidos, típica dos estoicos: “por fora me
comporto como um escravo, mas por dentro sou livre e senhor de mim
mesmo”.
Até os anos
1990 a principal expressão imaginária dessa divisão eram os super-heróis
e seu universo bífido: Clark Kent, o covarde repórter, tornava-se o
Super-Homem; Peter Parker, com seu crônico sentimento de rejeição,
virava o descolado Homem-Aranha; o rico solitário Bruce Wayne
transformava-se em Batman. Por meio deles, as gerações do pós-guerra
podiam formar um tipo de fantasia onde o lado B de cada um de nós era
uma parte decisiva e necessária para suportar a mediocridade ordinária
do lado A. A própria ideia de termos dois lados remonta aos discos de
vinil que tinham a cada vez que ser invertidos depois de escutados.
Prazer e lazer, dia de semana e fim de semana, trabalho e férias
organizam nossa vida ao modo desse dualismo elementar.
Os primeiros heróis consagrados pela vida digital tinham outra compleição. Lançado em 1996 o Pokémon
é um ótimo exemplo disso. Ash Ketchum é um menino sem superpoderes, os
quais adquire através dos Pokémons que captura e treina. Seu processo é
pedagógico: ele treina os monstros portáteis supervisionado pelo
Professor Carvalho. As aventuras de Ash, Brock e Misty, são uma saga
contemporânea. Assim como Yu-Gi-Oh, Isa TKM, Jonas Brothers ou High School Musical,
o tema é a passagem adolescente, a vida entre batalhas e conflitos
baseados no princípio do aperfeiçoamento e da continuidade. Eles
trabalham com uma série evolutiva na qual um problema inicialmente
simples torna-se incrivelmente complexo, elevando a capacidade de pensar
combinatoriamente elementos, habilidades, sorte e senso de perspectiva.
Sua ética é a da honra e da vergonha, com um senso sincero de
hierarquia. Ash, assim como Naruto, o hospedeiro da “Raposa de Nove
Caudas”, é um empreendedor, que precisa fazer escolhas e tomar decisões
sem contar com poderes massivos a seu favor. Muitas vezes ele perde e
deve reconhecer a existência de forças mais elevadas. Também não existem
vilões fixos tomados por uma monomania persecutória. Um dos traços que
fizeram a força de sua franquia são seus desdobramentos em jogos de cards, filmes, seriados. Essa multiplicação dos meios de linguagem foi fundamental para a produção da eficácia de Pokémon, pois foi assim que ele deixou de ser apenas uma narrativa envolvente e passou a ser um discurso.
Por que,
então, esse retrato é tão radicalmente diferente da imagem que fazemos
de nossos adolescentes? Horror pela hierarquia natural, desprezo por
processos evolutivos, dificuldades trágicas para lidar com derrotas e
atitude esquiva em situações de conflito real. É que esse mundo de ponta-cabeça
não é apenas o contrário do anterior, mas seu contrário deslocado.
Agora não é mais preciso sonhar que existe uma essência interior que um
dia será descoberta e de onde emergirá o Super-Homem ou a Super-Mulher:
já somos assim especiais, excepcionalmente cheios de habilidades,
meninos azuis, que aprendem como mutantes X-Men – por isso sonhamos com
uma vida pacata na qual havia alguma ordem e autoridade, originada em um
mundo distante como o oriental ou o medieval. Além de uma nova
narrativa há uma mudança na experiência de realidade, primeiro
interativa, depois compartilhada e finalmente capaz de misturar o
virtual e o real em plena luz do dia. O elemento novo aqui não acontece
sem a subtração de um ingrediente fundamental: o conflito real. Não
tenho mais de me retirar para uma vida interior onde serei livre. Posso
reduzir a espessura do conflito a uma série de acumulações e me tornar,
assim, o senhor de meu próprio universo. Os monstros que tenho de
enfrentar são apenas meus monstros. A divisão muda de forma: agora ela
se dá entre a extensão do mundo em que você quer viver e o tamanho do eu
que você pode pagar.
Esse novo
tipo de divisão subjetiva não posiciona alguém entre duas dimensões, a
pública e a privada, mas cria uma espécie de “condomínio interior
ampliado”. Todos que acompanharam filhos crescendo nessa primeira
geração inteiramente conectada e totalmente inscrita na lógica do video game
sabem o que significam as sete gerações de Pokémons, as evoluções de
Bulbassauro, Squirtle e Charmander. Eles criavam, como todo universo
imaginário socialmente compartilhado, uma referência comum sobre como
devemos fantasiar: acumulando potencialidades, aprimorando talentos e
trabalhando em equipe. O efeito colateral, dos quais muitos pais se
queixam, é o embotamento da vida reduzida ao sofá. A conversa
interminável que exige uma semântica específica, da qual os adultos
podem entender os princípios, mas não propriamente fruir da satisfação
específica que decorre da prática. Perfeito, portanto, para essa função
de separação entre mundos que se estreitaram perigosamente nos últimos
tempos, com os adultos se tornando mais e mais adolescentes.
Diante dessa preocupação, Pokémon Go
é o jogo certo para uma geração que deve sair do sofá e ir para a rua. O
objetivo é coletar Pokémons, que aparecem em lugares os mais diversos
da cidade e concentram-se em portais e ginásios onde os monstrinhos
podem ser equipados e qualificados. Munida de um celular, a pessoa
literalmente “vê” a presença dos Pokémons, boiando na rua, que podem
então ser capturados. Por isso as pessoas saem caçando espécimes,
inclusive raros, que só brotam em certos continentes específicos, e
adquirindo Pokébolas onde os monstrinhos são guardados. Contudo, o “core”
do jogo original, que era o confronto entre os treinadores de Pokémons,
não acontece. É um jogo de acumulação, sem interação real entre os
participantes, a não ser quando se trata de tomar posse de um ginásio ou
de estabelecer um portal. Bares e restaurantes podem investir dinheiro
para sediar o ponto de encontro virtual. A moral permanece a mesma: quem
se apossa e acumula capital simbólico está em condição de controlar o
tamanho de seu mundo e fazer-se senhor em sua própria morada.
Harry Potter, O Senhor dos Anéis e Star Wars não são apenas a repetição da mesma coisa, como os games casuais do tipo Candy Crush
ou aqueles com objetivos predefinidos como os de luta ou tiro. Essa
lógica formou uma geração para consumir séries, não mais filmes
isolados, bandas ou atores de sucesso do “star system”. O
potencial de resgate imaginário que tais sagas trouxeram para a
capacidade de criar outros mundos e pensar racionalidades altamente
complexas com narrativas criativas é notável. Mas isso parece ter um
preço em termos da relação entre a racionalidade administrativa,
necessária para ser bem-sucedido no jogo, e a capacidade de transpor e
adaptar o risco simulado ao risco real, necessária para operar relações
transformativas na vida efetiva. Por exemplo: já se chamou a atenção
para o fato de que, apesar de os bichinhos se apresentarem em inúmeras
variantes (psíquicos, voadores, elétricos, de água, fogo, terra etc.), e
apesar de evoluírem de suas 150 formas iniciais para tipos mais e mais
avançados, eles jamais acasalam. Há muitos gêneros, mas nenhum sexo.
Nesse mundo, gerado pelo crescimento dos amorfossexuais Teletubbies,
não há relações amorosas ou sexuais aludidas, apenas amizades e
fidelidades, como a que reina entre Pikachu e Ash. Isso antecipa o
fenômeno dos jovens de tão pouca experiência e interesse em relações
amorosas mais extensas, “em estrutura de saga”, e sua dramática
dificuldade em expor-se a conflitos reais. Ainda que isso pareça estar
mudando rapidamente para a geração subsequente (dos ocupadores de
escolas), talvez tenhamos evoluído de uma forma de vida na qual os
super-heróis masculinos tinham amantes impossíveis para uma época na
qual amar alguém tornou-se uma atividade para colecionistas.
A distribuição dos Pokémons obedece a um mapa formado a partir de dados obtidos em um jogo anterior, o Ingram,
cujo fracasso foi atribuído ao fato de exigir um celular muito avançado
para a época. Isso explica porque a avenida Paulista é um dos pontos de
maior concentração mundial de Pokémons, enquanto o Capão Redondo
permanece uma zona de rarefação. Muitos poderiam dizer que o jogo é
ótimo, pois faz as pessoas andarem pela cidade, saírem de casa,
descobrirem lugares novos e encontrarem-se no espaço público. É verdade,
e tomara que isso aconteça. Mas o caso exemplifica por que o espaço
público não é sinônimo de território aberto da cidade. Ele é público em
função das relações que efetivamente travamos, não do tipo de circulação
física que fazemos. Certo, nem toda relação se dá por palavras e a
maior parte dela ocorre tendo a fantasia como mediação e condição de
possibilidade dos encontros desejantes. Nesse nível, é preciso observar
que, ao excluir a interação entre jogadores e a prática das batalhas, Pokémon Go individualiza ainda mais nossa experiência comum, agora fora de nossa casa. Esperemos que o Pokémon Go nos tire de casa, mas principalmente que ele nos tire de dentro de nossas próprias Pokébolas.
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*Psicanalista, professor Livre-Docente do Instituto de Psicologia da USP,
Analista Membro do Fórum Lacaniano, fundador do Laboratório de Teoria
Social, Filosofia e Psicanálise da USP, autor de "Estrutura e
Constituição da Clínica Psicanalítica" (AnnaBlume, 2011) prêmio Jabuti
de melhor livro em Psicologia e Psicanálise em 2012. Desde 2008
coordena, junto com Vladimir Safatle e Nelson da Silva Junior, o projeto
de pesquisa Patologias do Social: crítica da razão diagnóstica em
psicanálise. Colabora com o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.
Fonte: https://blogdaboitempo.com.br/2016/08/16/pokemon-go-este-jeito-de-viver/
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