Terry Eagleton (Salfold, Reino Unido, 1943) não deixou um minuto em paz tanto conforto pós-moderno. Antes que Zizek ou Badiou
se transformassem em inevitável moda contracultural, ele se dedicou, a
partir da literatura, sua principal especialidade, a apontar um por um
os lugares comuns dos bem-pensantes da vez. Sucessor do crítico
literário e cultural marxista Raymond Williams, uniu a
essa não conformidade militante uma sólida educação católica que as
leituras e os anos, em vez de aplacar, aprofundaram. “Como diz o Novo
Testamento, reconhecerás Deus quando vires os pobres se encherem de
coisas boas e os ricos sendo despachados sem nada”, conta por correio
eletrônico. “O cristianismo e o marxismo têm um vínculo óbvio em que os
dois querem ver os pobres conquistarem o poder. A diferença é que isto,
para a fé cristã, é um assunto escatológico, ou seja, que vai além da
história, enquanto que o marxismo espera vê-lo realizar-se dentro da
história da humanidade”.
A reportagem é de Rafael Gumucio, publicada por El País, 11-08-2016.
Esta adesão dupla à mudança social e à fé católica o levou a polemizar muito com um estranho ser que ele chama de Ditchkens, que não é outra coisa que a mescla perfeita do biólogo Richard Dawkins com o falecido polemista Christopher Hitchens, porta-vozes do novo ateísmo militante e da intervenção norte-americana no Iraque.
Esse tipo de jogo de palavras é a surpresa perpétua de quem se aventura em livros tão conscienciosos e desapiedados como Marx Estava Certo, Ideologia ou Depois da Teoria. Para não falar de suas imprescindíveis memórias, The Gatekeeper: A Memoir
(O Porteiro: Memórias) emocionantes e hilárias. “O humor para mim está
intimamente ligado ao sem sentido”, diz. “As atividades mais valiosas
não têm nenhum propósito ou função além de si mesmas: tocar música,
fazer amor, tomar vinho, brincar com os filhos. O mesmo se poderia dizer
das piadas. É compartilhar a vida porque sim”.
Mas o normalmente sarcástico e implacável Eagleton,
para surpresa de todos, incluindo ele mesmo, parece querer passar da
crítica à proposta. Não se trata de otimismo, explica várias vezes em
seu último livro – intitulado justamente Hope Without Optimism
(Esperança sem Otimismo) —, porque o otimismo é para ele “uma forma de
desespero”, mas de uma velha virtude teologal reativada pelo historiador
marxista Ernst Bloch: a esperança: “A esperança é um
tipo de desejo, mas um que o vincula com um tipo de expectativa. A
esperança tem que ser, de alguma forma, viável; tem que ser possível de
ser realizada, enquanto o desejo pode não ser. Você pode desejar ser Mick Jagger, mas não pode esperar sê-lo”.
Mas, que podemos esperar da esperança em uma Europa em crise que só parece estar de acordo em estar em desacordo?
“Continuamos esperando conseguir as coisas que tradicionalmente
quisemos: justiça, igualdade, fraternidade, ausência de pobreza e de
violência, etcétera. É pouco provável que exista alguma vez uma
sociedade de seres humanos sem violência ou injustiça de algum tipo,
mas, dados os recursos globais que possuímos, está totalmente dentro de
nossas possibilidades acabar com a pobreza. Nosso sistema de propriedade é o que impede que isso aconteça, e claramente poderia ser mudado”.
Soa então inevitável a palavra revolução, que não é de todo estranha nesse tenaz militante do Partido Socialista dos Trabalhadores.
“Quando as pessoas escutam a palavra revolução pensam imediatamente em
sangue e barricadas. Mas houve revoluções de veludo, como também
revoluções violentas. A revolução bolchevique esteve
bastante livre de violência. Alguns processos de reforma foram muito
mais sangrentos que algumas revoluções. De todo modo, as revoluções não
ocorrem de um dia para o outro. As revoluções que deram lugar às
sociedades modernas de classe média levaram séculos em sua evolução. Marx enaltece as classes médias
como a força mais revolucionária jamais vista na história da
humanidade. Suponho que um revolucionário seja alguém que acredita que
não é possível ter o tipo de justiça e bem-estar que necessitamos sem
uma transformação completa. Isso, para mim, seria um ponto de vista
realista, não extremista. A queda do apartheid na África do Sul
também foi uma revolução (política, não econômica) e ninguém considera
fanático ou extremista tê-la apoiado. Todo aquele que acredita que foi
correto que os Estados Unidos deixassem de ser uma colônia é um defensor da revolução. Ou seja, mais ou menos todo o mundo é”.
"Quando ouvimos a palavra revolução, pensamos em sangue; mas algumas reformas foram mais sangrentas"
Eagleton se defende ao
longo do livro de ser um otimista, mas está muito longe de ser um
pessimista. Quando se pergunta a ele se o mundo está pior ou melhor que
há 50 anos, não duvida em responder que melhorou em aspectos
fundamentais. Sua querela com o otimismo como ideologia se baseia
justamente em sua falta de fé em que o mundo ainda poderia melhorar
muito mais: “A pergunta é se é viável empreender mudanças que poderiam
modificar nosso mundo de modo significativo. E a resposta realista a
esta pergunta é, sem dúvida, sim. Nesse sentido, os realistas são
aqueles que acreditam na possibilidade de tal transformação, e os que
têm a cabeça nas nuvens são os que pensam que as coisas sempre
continuarão mais ou menos como sempre foram. Por volta do ano 2000, os
teóricos falavam da suposta morte da história. Segundo eles, a história,
efetivamente, estava acabada, o capitalismo era a única opção a nosso
alcance, e nada dramático poderia acontecer. Logo depois dois aviões se
espatifaram contra o World Trade Center. Daí tivemos a suposta guerra contra o terror, depois um dos maiores colapsos da história do capitalismo, depois as primaveras árabes, a crise da imigração, etcétera”.
"O fundamentalismo é um equívoco
quanto à natureza da leitura, que não existe sem a interpretação. É a
outra face do pós-modernismo"
O auge do fundamentalismo está ligado, para Eagleton, a uma outra de suas obsessões: como ler ou como não ler ficção ou poesia? “O fundamentalismo,
de qualquer tipo, é essencialmente um equívoco que se comete quanto à
natureza da leitura. Ele imagina que o significado dos signos se fixa
imutavelmente ao longo dos tempos. Mas a verdade é que um sinal cujo
significado não pudesse se alterar entre um contexto e outro
simplesmente não seria um signo. Os signos devem ser, por definição,
portáteis: podem ser transportados de uma situação e acumular novos
significados na interação com os signos que os cercam. Por isso, não
pode haver leitura sem interpretação.
Para Eagleton, “o fundamentalismo
tem suas raízes não no ódio, mas no medo, o medo de um mundo moderno e
mutante, em que tudo está em movimento, onde a realidade é transitória e
com um final não definido, onde as certezas e os pilares mais sólidos
parecem ter desaparecido. Nesse sentido, é a outra face do
pós-modernismo”.
O poder das palavras
“Começos”, “O personagem”, “Narrativa”, “Interpretação” e “Valor” – esses são os cinco capítulos em que se divide Como ler literatura. A seguir, três trechos do livro de Terry Eagleton:
Linguagem
“No Coração das Trevas”, de Conrad,
nos conta que o rosto de uma mulher tinha ‘um aspecto trágico e feroz
em que se misturavam um enorme pesar e uma dor surda com o temor diante
de uma decisão não totalmente formulada que lutava para abrir caminho”.
Essa expressão facial impossível só existe no nível da linguagem. Duvido
que uma atriz, por mais talentosa que seja, seja capaz de parecer
feroz, trágica, pesarosa, ferida, amedrontada e decidida ao mesmo tempo.
Um Oscar seria pouco para premiar uma atuação dessas”.
Doutrina
“As mudanças das circunstâncias
históricas podem ter como consequência que algumas obras deixem de ser
apreciadas. Para os nazistas, não havia nenhum texto escrito por algum
judeu que fosse valioso. Uma mudança generalizada de sensibilidade tem
feito com que não gostemos mais dos textos didáticos, embora o sermão
tenha sido um gênero nobre em outros tempos. No entanto, não há razão
alguma para supor, como costumam fazer os leitores modernos, que a
literatura que tenta nos ensinar alguma coisa tenha de ser chata. Nos
tempos modernos, tendemos a mostrar uma certa aversão à literatura
‘doutrinária’, mas a Divina Comédia é exatamente isso. A exigência doutrinária não tem por que ser dogmática”.
Público e privado
“Um dos trunfos do grande romance realista europeu, desde Stendhal e Balzac até Tolstói e Thomas Mann, consiste em ilustrar a interação entre personagem e contexto. Nas palavras de George Eliot, não existe vida privada que não tenha sido influenciada por uma vida pública muito mais ampla”.
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Fonte: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/558900-o-fundamentalismo-nao-e-odio-e-medo-diz-terry-eagleton
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