Ladislau Dowbor*
Saídas para evitar um colapso civilizatório são evidentes – mas
nunca estiveram tão bloqueadas.
A questão crucial: teremos tempo para
chegar a um Plano B?
Difícil deixar de pensar que estamos vivendo num circo gigante.
Quando sentamos no sofá depois de um dia bizarro de trabalho e horas de
transporte, as novelas surreais na TV nos dão uma visão geral do jogo
global: tantas bombas sobre a Síria, mais refugiados nas fronteiras, os
problemas das grandes finanças, os últimos gols de Neimar. Ah sim, e
quem, depois da Hungria, a Grécia, a Polônia e o Reino Unido está
ameaçando deixar a União Europeia em nome de ideais nacionais
superiores.
É um jogo e tanto. Relatórios do Crédit Suisse e da Oxfam mostram a
grande divisão entre os donos do jogo e os espectadores: 62 bilionários
têm mais riqueza do que os 50% mais pobres da população mundial. Eles
produziram tudo isso? Evidentemente, tudo depende de que papel você
desempenha no jogo. Em São Paulo, os muito ricos que habitam o
condomínio de Alphaville estão murados em segurança, enquanto os pobres
que vivem na vizinhança se autodenominam Alphavella. Alguém precisa
cortar a grama e entregar as compras.
De acordo com o relatório global da WWF sobre a destruição da vida
selvagem, 52% das populações de animais não-domesticados desapareceram,
durante os 40 anos que vão de 1970 a 2010. Muitas fontes de água estão
contaminadas ou secando. Os oceanos estão gritando por socorro, o ar
condicionado prospera. As florestas estão sendo derrubadas na Indonésia,
que substituiu a Amazônia como a região número um do mundo em
desmatamento. A Europa precisa ter energia renovável, de carne barata e
da beleza do mogno.
A Rede de Justiça Fiscal revelou que cerca de 30 trilhões de dólares –
comparados a um PIB mundial de US$ 73 trilhões – eram mantidos em
paraísos fiscais em 2012. O Banco de Compensações Internacionais da
Basileia mostra que o mercado de derivativos, o sistema especulativo das
principais commodities, alcançou 630 trilhões de dólares,
gerando o efeito iôiô nos preços das matérias-primas econômicas básicas.
O maior jogo do planeta envolve grãos, minerais ferrosos e não
ferrosos, energia. Essas commodities estão nas mãos de 16 corporações
basicamente, a maior parte delas sediadas em Genebra, como revelou Jean
Ziegler em “A Suiça lava mais branco”. Não há árbitro neste jogo,
estamos num ambiente vigiado. Os franceses têm uma excelente descrição
para os nossos tempos: vivemos une époque formidable!
Fizemos um trabalho perfeito em 2015: a avaliação global sobre como
financiar o desenvolvimento em Adis Abeba, as metas do desenvolvimento
sustentável para 2030 em Nova York e a cúpula sobre mudanças climáticas
em Paris. Os desafios, soluções e custos foram claramente expostos.
Nossa equação global é suficientemente simples para ser executada: os
trilhões em especulação financeira precisam ser redirecionados para
financiar inclusão social e para promover a mudança de paradigma
tecnológico que nos permitirá salvar o planeta. E a nós mesmos, claro.
Mas são os lobos de Wall Street que traçaram o código moral para este esporte: Ganância é Ótima!
Afogando em números
Estamos nos afogando em estatísticas. O Banco Mundial sugere que deveríamos fazer algo a respeito dos news four biliion – referindo-se
aos quatro bilhões de seres humanos “que não têm acesso aos benefícios
da globalização” – uma hábil referência aos pobres. Temos também os
bilhões que vivem com menos de 1,25 dólar por dia. A FAO nos mostra em
detalhes onde estão localizadas as 800 milhões de pessoas famintas do
mundo. A Unicef conta aproximadamente 5 milhões de crianças que morrem
anualmente em razão do acesso insuficiente a comida e água limpa. Isso
significa quatro World Trade Centers por dia, mas elas morrem
silenciosamente em lugares pobres, e seus pais são desvalidos.
As coisas estão melhorando, com certeza, mas o problema é que temos
80 milhões de pessoas a mais todo ano – a população do Egito,
aproximadamente – e este número está crescendo. Um lembrete ajuda, pois
ninguém entende de fato o que significa um bilhão: quando meu pai
nasceu, em 1900, éramos 1,5 bilhão; agora somos 7,2 bilhões. Não falo da
história antiga, falo do meu pai. E já que não é da nossa experiência
diária entender o que é um bilionário, vai aqui uma nova imagem: se você
investe um bilhão de dólares em algum fundo que paga miseráveis 5% de
juros ao ano, ganha 137.000 dólares por dia. Não há como gastar isso,
então você alimenta mais circuitos financeiros, tornando-se ainda mais
fabulosamente rico e alimentando mais operadores financeiros.
Investir em produtos financeiros paga mais do que investir na
produção de bens e serviços – como fizeram os bons, velhos e úteis
capitalistas – de modo que não tem como o acesso ao dinheiro ficar
estável, muito menos gotejar para baixo. O dinheiro é naturalmente
atraído para onde ele mais se multiplica, é parte da sua natureza, e da
natureza dos bancos. Dinheiro nas mãos da base da pirâmide gera consumo,
investimento produtivo, produtos e empregos. Dinheiro no topo gera
fabulosos ricos degenerados que comprarão clubes de futebol, antes de
finalmente pensar na velhice e fundar uma ONG – por via das dúvidas.
Um suborno global
Muita gente percebe que as regras do jogo são manipuladas. Os tempos
são de fraude global, quando pessoas fabulosamente ricas doam a
políticos e promovem a aprovação de leis para acomodar suas crescentes
necessidades, fazendo da especulação, da evasão fiscal e da
instabilidade geral um processo estrutural e legal. Lester Brown fez
suas somatórias ambientais e escreveu Plano B [“Plan B”],
mostrando claramente que o atual Plano A está morto. Gus Speth, Gar
Alperovitz, Jeffrey Sachs e muitos outros estão trabalhando no Próximo Sistema [“Next System”], mostrando, implicitamente, que nosso sistema foi além de seus próprios limites.
Joseph Stiglitz e um punhado de economistas lançaram Uma Agenda para a Prosperidade Compartilhada,
rejeitando “os velhos modelos econômicos”. De acordo com sua visão,
“igualdade e desempenho econômico constituem na realidade forças
complementares, e não opostas”. A França criou seu movimento de
Alternativas Econômicas; temos a Fundação da Nova Economia no Reino
Unido; e estudantes da economia tradicional estão boicotando seus
estudos em Harvard e outras universidades de elite. Mehr licht! [Mais
luz!]
E os pobres estão claramente fartos desse jogo. Sobram muito poucos
camponeses isolados e ignorantes prontos a se satisfazer com sua parte,
seja ela qual for. As pessoas pobres de todo o mundo estão
crescentemente conscientes de que poderiam ter uma boa escola para seus
filhos e um hospital decente onde pudessem nascer. E além disso veem na
TV como tudo pode funcionar: 97% das donas de casa brasileiras têm
aparelho de TV, mesmo quando não têm saneamento básico decente.
Como podemos esperar ter paz em torno do lago que alguns chamam de
Mediterrâneo, se 70% dos empregos são informais e o desemprego da
juventude está acima de 40%? E eles estão assistindo na TV o lazer e a
prosperidade existentes logo ali, cruzando o mar, em Nice? A Europa
bombardeia-os com estilos de vida que estão fora do seu alcance
econômico. Nada disso faz sentido e, num planeta que encolhe, é
explosivo. Estamos condenados a viver juntos, o mundo é plano, os
desafios estão colocados para todos nós, e a iniciativa deve vir dos
mais prósperos. E, felizmente, os pobres não são mais quem eram.
Cultura e convivialidade
Sempre tive uma visão muito mais ampla de cultura do que o
tradicional “Ach! disse Bach”. Penso que ela inclui desfrutar de alegria
com os outros, enquanto se constrói ou se escreve alguma coisa, ou
simplesmente se brinca por aí. Convivialidade. Recentemente passei algum
tempo em Varsóvia. Nos fins de semana de verão, os parques e praças
ficavam cheios de gente e havia atividades culturais para todo lado.
Ao ar livre, com um monte de gente sentada no chão ou em simples
cadeiras de plástico, uma trupe de teatro fazia uma paródia do modo como
tratamos os idosos. Pouco dinheiro, muita diversão. Logo adiante, em
outras partes do parque Lazienki, vários grupos tocavam jazz ou música
clássica, e as pessoas estavam sentadas na grama ou assentos
improvisados, as crianças brincando por perto.
No Brasil, com Gilberto Gil no ministério da Cultura, foi criada uma
nova política, os Pontos de Cultura. Isso significou que qualquer grupo
de jovens que desejassem formar uma banda poderiam solicitar apoio,
receber instrumentos musicais ou o que fosse necessário, e organizar
shows ou produzir online. Milhares de grupos surgiram – estimular a
criatividade requer não mais que um pequeno empurrão, parece que os
jovens trazem isso na própria pele.
A política foi fortemente atacada pela indústria da música, sob o
argumento de que estávamos tirando o pão da boca de artistas
profissionais. Eles não querem cultura, querem indústria de
entretenimento, e negócios. Por sorte, isso está vindo abaixo. Ou pelo
menos a vida cultural está florescendo novamente. Os negócios têm uma
capacidade impressionante para ser estraga-prazeres.
O carnaval de 2016 em São Paulo foi incrível. Fechando o círculo, o
carnaval de rua e a criatividade improvisada estão de volta às ruas,
depois de ter sido domados e disciplinados, encarecidos pela comunicação
magnata da Rede Globo. As pessoas saíram improvisando centenas de
eventos pela cidade, era de novo um caos popular, como nunca deixou de
ser em Salvador, Recife e outras regiões mais pobres do país. O
entretenimento do carnaval está lá, é claro, e os turistas pagam para
sentar e assistir ao show rico e deslumbrante, mas a verdadeira
brincadeira está em outro lugar, onde o direito de todo mundo dançar e
cantar foi novamente conquistado.
Um caso de consumo
Eu costumava jogar futebol bastante bem, e ia com meu pai ver o
Corinthians jogar no tradicional estádio do Pacaembu, em São Paulo.
Momentos mágicos, memórias para a vida inteira. Mas principalmente
brincávamos entre nós, onde e quando podíamos, com bolas improvisadas ou
reais. Isso não é nostalgia dos velhos e bons tempos, mas um sentimento
confuso de que quando o esporte foi reduzido a ver grandes caras
fazendo grandes coisas na TV, enquanto a gente mastiga alguma coisa e
bebe uma cerveja, não é o esporte – mas a cultura no seu sentido mais
amplo – que se transformou numa questão de produção e consumo, não em
alguma coisa que nós próprios criamos.
Em Toronto, fiquei pasmo ao ver tanta gente brincando em tantos
lugares, crianças e gente idosa, porque espaços públicos ao ar livre
podem ser encontrados em todo canto. Aparentemente, por certo nos
esportes, eles sobrevivem divertindo-se juntos. Mas isso não é o
mainstream, obviamente. A indústria de entretenimento penetrou em cada
moradia do mundo, em todo computador, todo telefone celular, sala de
espera, ônibus. Somos um terminal, um nó na extensão de uma espécie de
estranho e gigante bate-papo global.
Esse bate-papo global, com evidentes exceções, é financiado pela
publicidade. A enorme indústria de publicidade é por sua vez financiada
por uma meia dúzia de corporações gigantes cuja estratégia de
sobrevivência e expansão é baseada na transformação das pessoas em
consumidores. O sistema funciona porque adotamos, docilmente,
comportamentos consumistas obsessivos, ao invés de fazer música, pintar
uma paisagem, cantar com um grupo de amigos, jogar futebol ou nadar numa
piscina com nossas crianças.
Um punhado de otários consumistas
Que monte de idiotas consumistas nós somos, com nossos apartamentos
de dois ou três quartos, sofá, TV, computador e telefone celular,
assistindo o que outras pessoas fazem.
Quem precisa de uma família? No Brasil o casamento dura 14 anos e
está diminuindo, nossa média é de 3,1 pessoas por moradia. A Europa está
na frente de nós, 2,4 por casa. Nos EUA apenas 25% das moradias têm um
casal com crianças. O mesmo na Suécia. A obesidade está prosperando,
graças ao sofá, a geladeira, o aparelho de TV e as guloseimas. Prosperam
também as cirurgias infantis de obesidade, um tributo ao consumismo. E
você pode comprar um relógio de pulso que pode dizer quão rápido seu
coração está batendo depois de andar dois quarteirões. E uma mensagem já
foi enviada ao seu médico.
O que tudo isso significa? Entendo cultura como a maneira pela qual
organizamos nossas vidas. Família, trabalho, esportes, música, dança,
tudo o que torna minha vida digna de ser vivida. Leio livros, e tiro um
cochilo depois do almoço, como todo ser humano deveria fazer. Todos os
mamíferos dormem depois de comer, somos os únicos ridículos bípedes que
correm para o trabalho. Claro, há esse terrível negócio do PIB. Todas as
coisas prazerosas que mencionei não aumentam o PIB – muito menos minha
sesta na rede. Elas apenas melhoram nossa qualidade de vida. E o PIB é
tão importante que o Reino Unido incluiu estimativas sobre prostituição e
venda de drogas para aumentar as taxas de crescimento. Considerando o
tipo de vida que estamos construindo, eles talvez estejam certos.
Necessitamos de um choque de realidade. A desventura da terra não vai
desaparecer, levantar paredes e cercas não vai resolver nada, o
desastre climático não vai ser interrompido (a não ser se alterarmos
nosso mix de tecnologia e energia), o dinheiro não vai fluir aonde
deveria (a não ser que o regulemos), as pessoas não criarão uma força
política forte o suficiente para apoiar as mudanças necessárias (a não
ser que estejam efetivamente informadas sobre nossos desafios
estruturais). Enquanto isso, as Olimpíadas e MSN (Messi, Suarez, Neymar
para os analfabetos) nos mantêm ocupados em nossos sofás. Como ficará,
com toda a franqueza, o autor destas linhas. Sursum corda.
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* Ladislau Dowbor é professor de economia nas pós-graduações em
economia e em administração da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo (PUC-SP), e consultor de várias agências das Nações Unidas. Seus
artigos estão disponíveis online em http://dowbor.org
Tradução: Inês Castilho | Imagem: Banksy
Fonte: http://outraspalavras.net/capa/cronica-em-meio-a-grande-crise-global/
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