Paulo Lima*
Pior que se sentir um analfabeto digital é, de fato, ser um. Eu
descobri isso da pior maneira: sendo. O bê-á-bá é o seguinte… Duas da
madruga, meu vizinho que deveria estar dormindo faz tempo acorda meio
mundo aos gritos: “Peguei mais um! Peguei mais um!”. Pra complicar, o
filho dele se revelou ainda mais escandaloso: “Eu também! Um Pikachu!”.
Era um sábado e eu só queria chegar até as oito da manhã babando no
travesseiro. Mas a gritaria continuou lá fora, agora acrescida de novas
vozes desenfreadas. Sim, era isso: o mundo que eu conhecia tinha virado
de cabeça pra baixo.
Olhos vermelhos e roxo de raiva, no café da manhã ouvi uma explicação
da patroa sobre do que se tratava: um fenômeno em forma de jogo virtual
que acabara de chegar no Brasil. Não entendi nada, claro. Hora então de
pedir ajuda aos universitários, ou melhor, a uma criança do ensino
fundamental: minha filha de dez anos, uma nerdinha cujo smartphone já
parecia ser uma extensão das próprias mãos. A contragosto, me deu aquela
aulinha básica e bem humilhante para um sujeito nascido nos anos 1960,
cansado de guerra, mal dormido e mal-humorado. “Pokémon Go é um game em
forma de aplicativo, para celulares com sistemas Android e iOS, baseado
numa tecnologia chamada realidade aumentada. Por meio de geolocalização,
usando o GPS, usuários mobile saem capturando monstrinhos pela cidade,
em todo o tipo de lugar: calçadas, restaurantes, praças, lojas, pontos
de ônibus, repartições públicas, etc.” Saquei que aquela sequência de
orações foram decoradas só pra me sacanear. A abusada ainda falou coisas
do tipo Niantic, Pokémon Company, Nintendo. E o sabichão só repetindo:
Ã-hã…
Muito pra minha cabeça… Senti minha realidade diminuída com tantas
definições boiando naquela sopa de letrinhas, e embaralhei tudo.
Imaginei um androide — quer dizer, um robô — passando gel no meu calção
enquanto eu ia de ônibus tentar capturar meu FGTS numa repartição
pública onde um monstrinho desinteressado me atendia ao mesmo tempo em
que usava o celular; aí eu saí pelas ruas e calçadas pedindo SOS pra
pagar a conta do restaurante, etc. Eu precisava retornar o quanto antes
ao planeta Terra…
Pedi um tempo para ir ao banheiro. Estratégia! Para não parecer tão
perdido, fui pesquisar na internet. Fiquei besta, mais do que aquele
substantivo que minha esposa vivia me jogando na cara — sempre
acompanhando de um “sua” antes e um “quadrada” depois. As notícias
pipocavam. Antes de me dar tamanha dor de cabeça, o game já tinha virado
febre. Sintomas que, somados ao transtorno de personalidade coletivo,
levariam uma cidade inteira ao postinho mais próximo do SUS, meu próximo
destino. Olha só: na Nova Zelândia, um homem decidiu largar o emprego
para realizar seu sonho de capturar todos os pokémons disponíveis, acho
que uns 150, e uma professora britânica foi pelo mesmo caminho e se
tornou uma jogadora em tempo integral. Um adolescente com autismo, que
passou os últimos cinco anos em casa, comendo e respirando Minecraft
(argh! outro jogo), não conseguia ficar muito tempo na rua. Tremia e
passava mal com dores de estômago, apenas por estar entre pessoas e todo
o barulho que elas fazem. Me identifiquei! O jogo estimulou o garoto a
botar os pés pra fora do portão e a interagir com pessoas desconhecidas,
inclusive com os familiares. Calma lá…
O game começou a influenciar até na escolha de nomes de bebês. Dá um
frio na barriga só de pensar no próximo membro da família sendo batizado
de Rattata, Zubat, Snorlax, Bulbasaur, Charmander ou Squirtle. O
horror! Zés, Joões e Paulos, assim como as Marias, Anas e Isabelas, pelo
visto serão raridade nas futuras certidões de nascimento. Em tempo:
esses nomes estranhos, coisa de japonês, tinham origem nos episódios do
desenho animado veiculado nos anos 1990. É, acho que perdi também essa
parte…
E havia mais: meliantes atraindo ingênuos caçadores para roubar seus
celulares, pessoas caindo de penhascos, atropelamentos por desatenção,
gente exposta ao sol escaldante por horas seguidas. Ei!, não contaram
para esse povo que tanta exposição causa câncer de pele? Ah, e um homem
capturou um pokémon durante o parto da esposa: apareceu um Pidgey (nome
de um monstrinho, não confundir com um Ricardinho) na cama da patroa.
Ele prendeu o bicho enquanto seu filho nascia, e antes que sua
paternidade fosse questionada.
Neuras à solta. Teorias da conspiração também já devidamente
publicadas: “o sistema rastreia o usuário e controla todos os seus
passos, como um Big Brother planetário”, “rouba seus dados para usá-los
contra você num futuro não tão distante”, “o governo mundial (hã?) está
preparando o espírito humano para uma invasão alienígena”. A besta, o
anticristo, o Apocalipse!
Voltei do banheiro pra retomar a conversa com a mocinha. “Então, como
se joga isso mesmo?” Ela respondeu de pronto: “Temos que sair de casa!”
Entendi. O desafio estava lançado. E bem ao estilo
manifestante-coxinha-batedor-de-panela, ou mesmo
militante-antigolpe-de-camiseta-vermelha, fiz a única coisa que um
cidadão-de-bem-revoltado-contra-vizinhos-escandalosos-e-fulaninhos-virtuais
poderia fazer: fui pra rua!
Foi assustador o que vi. Ninguém escapava. Todas as idades estavam
ali representadas: crianças, adolescentes, adultos e velhinhos da
terceira à ultima idade (não existe quarta, certo?), suficientemente
ocupados. Gente andando em círculos, tirando fotos do nada em qualquer
lugar. Fiquei sabendo que um mendigo foi desalojado do seu banquinho na
praça, só porque dois pokémons lhe faziam companhia e o coitado virou
alvo da mira de excitados celulares, numa patente invasão de
privacidade. Pior: vi uma senhora de saia curta com a bunda pra cima e
metade do corpo dentro de um bueiro. Achei surreal, mas fiquei calado,
pois ainda que eu não estivesse na posição em que Napoleão perdeu a
dignidade, eu estava à procura das mesmas coisas que ela: monstrengos em
miniatura. Como explicar isso?
Minha “Ponyta” (escolhi esse nome de uma lista que vi num site,
porque tinha um pônei amarelo estampado na camiseta da minha guria, mas
ela não gostou) explicou que as coisinhas aparecem aleatoriamente pelo
mapa. E descobri que todo estabelecimento queria virar “PokéStop”, um
ponto turístico que aparece em destaque no mapa, na telinha do
aparelhinho, para ali encontrarmos itens essenciais ao jogo. Ela me
ensinou a usar a pokébola, um compartimento em forma esférica criado
para armazenar pokémons. Encontrou um novo pokémon? Pressione, segure e
arraste a pokébola até que ela comece a girar e brilhar, lance-a sobre o
bichinho e… Crau! Bola curva com faíscas eram as melhores, segundo ela.
Interessante… Aquelas bolinhas me lembravam de coisas de uma infância
distante.
O joguinho é complexo. Às vezes a gente ganha ovos em pokéstops e
esse ovo deve ser colocado para chocar, e com isso podemos dobrar os
pontos obtidos. Outra dica: o incenso. Não, não é aquele pauzinho
colorido que a gente coloca pra queimar, mas um recurso do game que
serve para atrair os personagens para perto de você. E crau!, de novo.
Naquele ritmo frenético, logo, logo eu me tornaria um “Mestre Pokémon”.
Dê um Google que ele te explica.
E assim fomos jogando… E fomos longe: de carro próprio e depois a pé,
correndo de vez em quando. Andamos uns dez quilômetros colecionando
bichinhos. Afinal, quanto maior a caminhada, mais raro o personagem. A
garota se divertiu como nunca e eu mais ainda. Paramos aqui e ali para
almoçar, tomar sorvete, fazer selfies. Ao longo das conversas, descobri
coisas interessantíssimas: os nomes dos melhores amigos dela, seus
planos de um dia tornar-se veterinária (cuidando de bichos reais,
claro), sua dificuldade de se concentrar nas aulinhas chatas de inglês,
sua comida preferida (pizza) e muito mais. E ela ficou sabendo pela
primeira vez e ao vivo que, quando menino, eu brincava de bolinha de
gude e pique-esconde, e sonhava ser astronauta. “Tá explicado por que
você vive no mundo da lua, né pai?” Rimos muito com isso também.
Voltamos ao final do dia com disposição para contar tudo para minha
digníssima e passar uma noite sossegada, sem aquela vontade de brigar
com a vizinhança barulhenta, não mais me sentindo a besta da vez. O
domingo prometia.
Com tantas lembranças, demorei pra pegar no sono. Me lembrei que um
dia perguntei a um nerdinho pra que servia a tal da internet. Um
absurdo, eu sei, mas esse foi apenas um da minha coleção de absurdos,
muito maior do que a de criaturas disponíveis para captura no
smartphone. E agora posso dizer, sem medo: Eu amo pokémons e quando
descobrir pra que eles servem, vou amar mais ainda. Minto. Eu já sei pra
que servem: passei um dia inteiro com minha filha, coisa que não fazia
há anos, e conheci uma outra filha que, por eu viver no mundo da lua,
não conseguia ver. Paixão à primeira vista.
Então, pensando bem, embora tenha seu lado ruim, essa nova febre pode
ser uma coisa boa. Depende do uso que se faz da tecnologia e — por que
não? — de com qual monstro queremos interagir. O que eu descobri é que
não mais consigo viver sem ela. Estou falando da minha Ponyta, cujo
coração de pokébola capturou minha atenção com aquele brilho que só o
olhar e o sorriso de uma menina conseguem. Finalmente eu aterrissei na
Terra, me sentindo o pai mais feliz do mundo.
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* Colunista da revista Bula.
Fonte: http://www.revistabula.com/7098-eu-odeio-pokemons-e-quando-descobrir-para-que-eles-servem-vou-odiar-mais-ainda/
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