Certa vez Alberto Manguel viu-se perdido em uma selva escura. Não era
uma selva de verdade, mas aquela em que Dante Alighieri (1265-1321)
conta ter entrado, logo no começo da "Divina Comédia".
Desde então, o escritor argentino, 68, visita o inferno, o purgatório ou
o paraíso todas as manhãs. Foi dessa experiência que saiu seu novo
livro, "Uma História Natural da Curiosidade" (Companhia das Letras, 488
págs., R$ 74,90).
Manguel participa, nesta terça-feira (30), de um debate com o
historiador americano Robert Darnton. O evento inicia uma série de
encontros realizados em comemoração pelos 30 anos da Companhia das
Letras.
"[A 'Comédia'] parece um livro infinito. Minha cabeça estava cheia de
ideias surgidas com a leitura de Dante. Mas sou apenas um leitor comum
que ficou perdido nos três mundo dele", afirma.
Em cada um dos 17 capítulos da obra aparecem grandes questões –e os
insights de grandes livros do passado. Quem sou eu? O que é linguagem? O
que é verdade?
"Nós, seres humanos, somos seres questionadores. A curiosidade é um
instrumento de sobrevivência, que nos leva a fazer perguntas e usar a
imaginação para encenar a experiência que ainda não tivemos", diz
Manguel.
"Por isso toda religião e toda instituição política tem não só um dogma, mas usa também histórias."
Manguel, que na juventude lia para Jorge Luis Borges, quando o escritor
perdeu a visão, hoje é presidente da Biblioteca Nacional da Argentina
–mesmo posto ocupado pelo autor de "O Aleph".
Dono de uma coleção de 30 mil livros, Manguel sabe ser representante de
uma espécie em extinção: o homem de letras, aquele que parece uma
enciclopédia do saber humanístico. "O intelectual é uma espécie em
extinção. Vivemos em um mundo estruturado em torno da máquina
comercial".
Para Manguel, o mundo contemporâneo não quer indivíduos que reflitam,
por estar mais interessado em formar consumidores. "Há um vazio de
educação sobre a memória do passado comum, de nossos valores. Não diria
que já tivemos uma sociedade justa. Mas no passado havia um esforço para
questionar momentos injustos."
Ainda segundo ele, o mundo vive um impasse político em que apenas são
bradados slogans, repetindo a linguagem publicitária. E Manguel cita o
Brasil como exemplo.
"São corruptos acusando outros de corrupção. Nenhum vocabulário ético
definiu uma situação assim: uma disputa entre aqueles que cometeram
crimes e aqueles que cometeram crimes. Por isso [para algo assim
existir], é preciso uma sociedade que não pensa".
A imagem que vem à cabeça do autor é a do mundo imaginado por H. G.
Wells em "A Máquina do Tempo": uma sociedade de seres bestiais que
trabalham brutalmente e não pensam. Acima, uma classe desconectada da
realidade dos que vivem abaixo dela.
Acompanhando a política brasileira, Manguel brinca que vai incluir o
Brasil na próxima edição de seu "Dicionário de Lugares Imaginários", que
reúne locais da literatura onde ocorrem as coisas mais irreais.
Uma História Natural da Curiosidade |
Alberto Manguel |
Na programação de eventos pelos 30 anos da Companhia das Letras, no Rio e
em São Paulo, ainda haverá encontros com Mia Couto, Maria Bethânia,
David Grossman e Ian McEwan.
"Houve uma escolha afetiva dos autores que acompanharam a história da
editora", diz Luiz Schwarcz, presidente do grupo Companhia das Letras.
"Manguel e Darnton são homens que perseguem a biblioteca. Ou são
perseguidos por ela."
Além dos eventos, a editora prepara a edição das obras completas de Raduan Nassar, com três inéditos do autor.
--------------Reportagem por MAURÍCIO MEIRELES - DE SÃO PAULO
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2016/08/1808235-o-intelectual-esta-em-extincao-diz-escritor-alberto-manguel.shtml
Nenhum comentário:
Postar um comentário