Zygmunt Bauman
"Os vínculos se despedaçam, o espírito de solidariedade enfraquece, a separação e o isolamento tomam o lugar do diálogo e da cooperação"
Entrevista.
Professor Bauman, passaram-se 10 anos desde que o senhor escreveu "Medo líquido" (Ed. Laterza). O que mudou desde então?
O medo ainda é o sentimento predominante do nosso tempo. Mas, acima
de tudo, é preciso que nos entendamos sobre que tipo de medo se trata.
Muito semelhante à ansiedade, a uma incessante e generalizada sensação
de alerta, é um medo multiforme, exagerado na sua imprecisão. É um medo
difícil de se captar e, por isso, difícil de combater, que pode arranhar
até os momentos mais insignificantes da vida cotidiana e afeta quase
todas as camadas da convivência.
Para o filósofo e psicanalista argentino Miguel Benasayag, a
nossa época é a das "paixões tristes." O que acontece quando o medo
abraça a desconfiança?
Acontece que os laços humanos se despedaçam, que o espírito de
solidariedade enfraquece, que a separação e o isolamento tomam o lugar
do diálogo e da cooperação. Da família à vizinhança, do local de
trabalho à cidade, não há ambiente que permaneça hospitaleiro.
Instaura-se uma atmosfera sombria, em que cada um alimenta suspeitas
sobre quem está ao seu lado e é, por sua vez, vítima das suspeitas
alheias. Nesse clima de desconfiança exagerada, basta pouco para que o
outro seja percebido como um potencial inimigo: será considerado culpado
até que se prove o contrário.
Contudo, a Europa já conheceu e derrotou a hostilidade e o
terror: o político das Brigadas Vermelhas na Itália e da RAF na
Alemanha, o étnico-nacionalista do ETA na Espanha e do IRA na Irlanda. O
nosso passado ainda pode nos ensinar algo, ou o perigo de hoje é
incomparável?
Os precedentes certamente existem. No entanto, poucos mas decisivos
aspectos tornam as atuais formas de terrorismo muito diferentes dos
casos que você lembrava. Estes últimos se aproximavam a uma revolução
(visando, como as Brigadas Vermelhas ou a RAF, a uma subversão do regime político) ou a uma guerra civil (apontando, como o ETA ou o IRA,
à autonomia étnica ou à libertação nacional), mas sempre se tratava de
fenômenos essencialmente domésticos. Pois bem, os atos terroristas
atuais não pertencem a nenhuma dessas duas situações: a sua matriz, de
fato, é completamente diferente.
Qual é a peculiaridade do terrorismo atual?
A sua força deriva da capacidade de corresponder às novas tendências da sociedade contemporânea: a globalização, por um lado, e a individualização,
por outro. Por um lado, as estruturas que promovem o terrorismo se
globalizam muito além das capacidades de controle dos Estados
territoriais. Por outro lado, o comércio de armas e o princípio de
emulação alimentado pela mídia global fazem com que quem empreenda ações
de natureza terrorista sejam indivíduos isolados, movidos talvez por
vinganças pessoais ou desesperados por um destino infeliz. A situação
que brota da combinação desses dois fatores torna quase totalmente
invencível a guerra contra o terrorismo. E é bastante improvável que ele
abdique de dinâmicas já autopropulsivas. Em suma, repropõe-se, sob
novas formas, o mítico problema do nó górdio, que ninguém sabe desfazer:
e são muitos os chamados herdeiros de Alexandre Magno, que, enganando, juram que as suas espadas conseguiriam cortá-lo.
Para muitos políticos e muitos comentaristas, as raízes do
terrorismo devem ser buscadas no aumento descontrolado dos fluxos
migratórios. Quais são, na sua opinião, as principais razões da
violência contemporânea?
Como é evidente, os ganhos eleitorais que são obtidos estabelecendo
um nexo de causa-efeito entre imigração e terrorismo são muito
alentadores para que os concorrentes no jogo de poder renunciem a eles.
Para quem decide, é fácil e conveniente participar de um leilão sobre o
meio mais eficaz para abolir a chaga da precariedade existencial,
propondo soluções falsas, como fortificar as fronteiras, parar as ondas
migratórias, ser inflexível com os requerentes de asilo... E, para a
mídia, é igualmente fácil dar visibilidade à polícia que invade os
campos de refugiados ou difundir as imagens fixas e detalhadas de um ou
dois homens-bomba em ação. A verdade é que é malditamente complicado
tocar com a mão as raízes autênticas de uma violência que cresce em todo
o mundo, em volume e em intensidade. E, dia após dia, torna-se ainda
mais difícil, senão precisamente impossível, demonstrar que os governos
identificaram aquelas raízes e estão trabalhando realmente para
erradicá-las.
Isso significa que os políticos ocidentais também utilizam o medo como instrumento política?
Exatamente. Assim como as leis do marketing impõem que os
comerciantes proclamem incessantemente que o seu objetivo é a satisfação
das necessidades dos consumidores – embora estando eles plenamente
conscientes de que, ao contrário, a insatisfação é o verdadeiro motor da
economia consumista –, assim também os empresários políticos dos nossos
dias declaram, sim, que o seu objetivo é garantir a segurança da
população, mas, ao mesmo tempo, fazer todo o possível, e até mais, para
fomentar a sensação de perigo iminente. O núcleo da atual estratégia de
dominação, portanto, consiste em acender e em manter viva a centelha de
insegurança...
E qual seria o propósito dessa estratégia?
Se há algo que muitos líderes políticos não viam a hora de aprender, é
o estratagema de transformar as calamidades em vantagens: reacender a
chama da guerra é uma receita infalível para desviar a atenção dos
problemas sociais, como a desigualdade, a injustiça, a degradação e a
exclusão, e fortalecer o paco de comando-obediência entre os governantes
e a sua nação. A nova estratégia de dominação, fundamentada no
deliberado impulso à ansiedade, permite que as autoridades estabelecidas
não cumpram a promessa de garantir coletivamente a segurança
existencial. Deveremos nos contentar com uma segurança privada, pessoal,
física.
O senhor acredita que, desse modo, as instituições correm o risco de perder o caráter democrático?
Certamente, a constante sensação de alerta afeta a ideia de
cidadania, além das tarefas a ela ligadas, que acabam sendo liquidadas
ou remodeladas. O medo é um recurso muito convidativo para substituir a
demagogia com a argumentação e a política autoritária com a democracia. E
os apelos cada vez mais insistentes à necessidade de um Estado de
exceção vão nessa direção.
O Papa Francisco parece ser o único líder disposto a desfazer
aquilo que o senhor, em outro lugar, chamou de "o demônio do medo".
O paradoxo é que é precisamente aquele que os católicos reconheçam
como o porta-voz de Deus na terra que nos diz que o destino de salvação
está nas nossas mãos. A estrada é um diálogo voltado a uma melhor
compreensão recíproca, em uma atmosfera de respeito mútuo, em que
estejamos dispostos a aprender uns com os outros.
Escutamos Francisco muito pouco, mas a sua
estratégia, embora de longo prazo, é a única capaz de resolver uma
situação que se assemelha cada vez mais a um campo minado, saturado de
explosivos materiais e espirituais, salvaguardados pelos governos para
manter a tensão em alta. Enquanto as relações humanas não tomarem o
caminho indicado por Francisco, é mínima a esperança de
limpar um terreno que produzirá novas explosões, mesmo que não saibamos
prever com exatidão as coordenadas.
----------------------
FONTE: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/558640-qcuidado-com-os-politicos-que-fazem-dos-nossos-sentimentos-um-instrumento-de-poderq-entrevista-com-zygmunt-bauman 06/08/2016
Imagem da Internet
Nenhum comentário:
Postar um comentário