Slavoj Žižek*
Julian
Assange está certo em sua cruzada contra Hillary,
e os liberais que o criticam
por atacar
a única figura que pode nos salvar
de Trump estão errados.
O alvo a
ser atacado e solapado
agora é precisamente esse consenso
democrático contra o
“vilão”.
Alfred
Hitchock disse certa vez que um filme é tão bom quanto seu vilão. Isso quer
dizer que as atuais eleições nos EUA serão boas já que o “malvado” (Donald
Trump) é quase um vilão ideal? Sim, mas num sentido muito problemático… Para a
maioria liberal, as eleições de 2016 nos apresentam diante uma escolha bem
clara e definida. A figura de Trump
é evidentemente um excesso ridículo, uma figura vulgar que explora nossos
piores preconceitos racistas e sexistas, um porco chauvinista sem um mínimo de
decência. Até grandes nomes Republicanos estão o abandonando aos montes. Se
Trump de fato permanecer o candidato Republicano, ficaremos com umas eleições
de levantar o ânimo: a sensação será de que, apensar de nossos problemas e
disputas internas, onde há uma verdadeira ameaça, temos a capacidade de todos
nos unir em defesa de nossos valores democráticos básicos…
como
a França fez após os ataques terroristas.
No
entanto, é exatamente esse confortável consenso democrático que deveria nos
preocupar. Devemos dar um passo atrás e voltar o olhar para nós
mesmos. Afinal, qual é mesmo a coloração dessa ampla unidade democrática?
Todo mundo está lá, dos partidários de Wall Street aos apoiadores de Sanders
junto com o que sobrou do movimento Occupy, das grandes corporações aos
sindicatos, dos veteranos do exército aos militantes LGBT+, de ecologistas
horrorizados pela negação de Trump do aquecimento global a feministas
felizes com a perspectiva de uma primeira presidenta mulher nos EUA passando
pelas figuras “decentes” do establishment Republicano espantadas
pelas inconsistências de Trump e suas irresponsáveis propostas “demagógicas”.
Mas o que
desaparece nesse conglomerado que aparenta englobar a tudo e a todos? É preciso
lembrar que a raiva popular que deu origem ao fenômeno Trump também produziu
Sanders. Apesar de ambos expressarem o descontentamento social e político
generalizado, eles o fazem em sentidos opostos. Um através do populismo
direitista e outro optando pelo grito esquerdista por justiça. E aqui está o
truque: o clamor da esquerda por justiça se associa a lutas pelos direitos das
mulheres, das minorias, da população LGBT+, por multiculturalismo e contra o
racismo, etc. O objetivo estratégico do consenso de Clinton é claramente o de
buscar dissociar todas essas pautas do horizonte esquerdista de justiça. É por isso
que o emblema vivo desse consenso é Tim Cook, o CEO da Apple que orgulhosamente
assinou a carta pro-LGBT e que agora pode facilmente ignorar as centenas de
milhares de trabalhadores da Foxconn sendo esfolados em condições análogas à da
escravidão na linha de montagem da Apple na China – seu grande gesto de
solidariedade para com os “não-privilegiados” se limitou à exigência da
abolição à segregação de gênero… Como geralmente costuma acontecer, as grandes
empresas se colocam em profundo alinhamento com a teoria politicamente correta.
Essa
mesma postura foi levada ao extremo com Madeleine Albright, uma grade apoiadora
“feminista” de Clinton. No programa 60 Minutes do canal CBS (12/5/1996,
assista aqui), a
jornalista a questiona sobre a Guerra no Iraque: “Ouvimos que meio milhão
de crianças morreu. Quer dizer, isso é maior do que o número de crianças que
morreu em Hiroshima. E, enfim, será que o custo de uma guerra como essa
compensa?.” Albright responde prontamente: “Acho que é uma escolha muito
difícil, mas o custo – nós consideramos que vale a pena arcar com ele.”
Ignoremos as inúmeras questões que essa resposta levanta (incluindo o
interessante deslocamento do “eu” para o “nós”: eu considero uma questão
difícil, mas nós avaliamos que compensa), e foquemos apenas no
seguinte aspecto: imagine só o descalabro que não seria se o mesmo
comentário saísse da boca de alguém como Putin, ou o Presidente
Chinês Xi, ou o Presidente do Irã! Será que eles não seriam imediatamente
bombardeados por todas as nossas manchetes os condenando como
monstros frios, bárbaros e sem pudor? Durante a campanha para Hillary, Albright
ainda disse: “Há um lugar especial no inferno para mulheres que não ajudam umas
às outras!” (Leia-se: que vão votar em Sanders e não em Clinton.) Talvez
devamos corrigir essa afirmação: há um lugar especial no inferno para
mulheres (e homens) que pensam que meio milhão de crianças mortas é um preço razoável
a se pagar por uma intervenção militar que arruína um país, e que ao mesmo
tempo calorosamente apoiam os direitos das mulheres e das minorias em casa…
Trump não
é a água suja que devemos jogar for a para preservar o bebê saudável da
democracia estadunidense. Ele é o próprio bebê sujo que deve ser despejado para
obnubilar a verdadeira água suja das relações sociais que sustentam o consenso
Hillary. A mensagem que e consenso passa à esquerda é o seguinte: “você pode
ficar com o que quiser, nós só queremos o essencial, o livre funcionamento do
capitalismo global”. O “Sim, nós podemos!” do Presidente Obama adquire agora um
novo significado: “sim, nós podemos ceder a todas as suas demandas culturais…
contanto que a economia global de mercado não seja comprometida – então não há
motivo algum para medidas econômicas radicais”. Ou, como Todd McGowan colocou
(em uma comunicação privada): “O consenso das ‘pessoas que pensam direito’ em
oposição a Trump é assustador. É como se seu excesso autorizasse o verdadeiro
consenso global capitalista a emergir e a se autocongratular a respeito de seus
valores de abertura.”
É por
isso que Julian Assange está certo em sua cruzada contra Hillary, e os liberais
que o criticam por atacar a única figura que pode nos salvar de Trump estão
errados: o alvo a ser atacado e solapado agora é precisamente esse consenso
liberal-democrático forjado de cima para baixo para combater o vilão ideal.”
E o pobre
Bernie Sanders? Infelizmente, Trump acertou em cheio quando comparou seu apoio
a Hillary com um integrante do movimento Occupy apoiando os Lehman Brothers.
Ele deveria ter simplesmente se retirado e ter permanecido na dignidade do
silêncio para que sua ausência pesasse fortemente sobre as celebrações de
Hillary, nos lembrando do que ficou de fora nessa festa de consenso e, dessa
forma, preservando o espaço para alternativas futuras mais radicais.
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*Nasceu na cidade de Liubliana, Eslovênia, em 1949. É filósofo,
psicanalista e um dos principais teóricos contemporâneos. Transita por
diversas áreas do conhecimento e, sob influência principalmente de Karl
Marx e Jacques Lacan, efetua uma inovadora crítica cultural e política
da pós-modernidade. Professor da European Graduate School e do Instituto
de Sociologia da Universidade de Liubliana, Žižek preside a Society for
Theoretical Psychoanalysis, de Liubliana, e é um dos diretores do
centro de humanidades da University of London. Dele, a Boitempo publicou
Bem-vindo ao deserto do Real! (2003), Às portas da revolução (escritos
de Lenin de 1917) (2005), A visão em paralaxe (2008), Lacrimae rerum
(2009), Em defesa das causas perdidas, Primeiro como tragédia, depois
como farsa (ambos de 2011) e o mais recente, Vivendo no fim dos tempos
(2012). Colabora com o Blog da Boitempo esporadicamente.
* Texto enviado pelo
autor diretamente ao Blog
da Boitempo. A tradução é de Artur Renzo.
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