ENTREVISTA | MARIO SERGIO CORTELLA - Filósofo e escritor
Não muito tempo atrás, sair de casa todos os dias para enfrentar longas horas de trabalho era uma tarefa motivada essencialmente, quando não exclusivamente, pelo dinheiro que cairia na conta no fim do mês. A vida parecia ser menos complexa – e ter um emprego era sinônimo de garantir recursos para sustentar uma família e construir um patrimônio que pudesse ser deixado de herança.Pode ser que, à mente de muitos, ainda seja este o pensamento que vem quando chega a segunda-feira e mais uma semana se inicia. Para o filósofo e escritor Mario Sergio Cortella, no entanto, esta visão sobre o trabalho faz cada vez menos sentido. No livro “Por que fazemos o que fazemos?”, lançado em julho, o especialista em educação afirma que os profissionais que hoje ocupam postos em diversas áreas estão mais do que nunca questionando os seus propósitos: eles querem reconhecer o esforço diário como útil e, mais, serem valorizados por ele. O que está em jogo é a realização, sobretudo para os jovens que chegam agora ao mercado de trabalho – aos quais Cortella deixa uma alfinetada:
– A nova geração é mal- educada. Está acostumada a ser quem subordina os adultos em casa.
No início deste mês, Cortella esteve em Porto Alegre para lançar o livro e falar sobre gestão do conhecimento em tempos de excesso de informação, em palestra realizada no Colégio Farroupilha, onde recebeu Zero Hora.
O senhor fala que a gestão do conhecimento é um desafio urgente. Por quê?
Muita gente diz que estamos vivendo a era do conhecimento, quando na verdade estamos vivendo a era da informação veloz. O conhecimento sempre existiu. Se não fosse assim, não estaríamos vivos. O ser humano é um ser que conhece, não nasce pronto. Quando falamos sobre a questão da gestão do conhecimento, hoje, estamos diante de um desafio urgente para que a gente não caia em uma armadilha. Primeiro, não se pode confundir informação com conhecimento. Informação é cumulativo, conhecimento é seletivo. O conhecimento vem quando damos à informação uma objetividade relacionada ao interesse, que é de cada um. Só que nossos alunos são do século 21, nossos professores são do século 20, e uma parte da metodologia é do século 19. Temos, portanto, uma colisão intersecular que precisa ser ultrapassada, na medida em que nos preparamos melhor, utilizando o mundo que está à nossa volta, mas sem se subordinar a ele. O conhecimento sempre esteve na história humana. A diferença agora é que a gente tem uma fartura de informação para fazer com que ele possa ir a tona como deve vir.
O seu novo livro trata das aflições comuns em relação ao trabalho, à carreira e às expectativas que temos para a vida. Quais são estas aflições?
A primeira delas, que acaba englobando quase todas as outras, tem a ver com o fato de as pessoas viverem com pressa em relação às nossas próprias coisas. Elas perderam um pouco da referência em relação ao sentido daquilo que fazem. É preciso ter uma vida que não seja automática, robótica, que não seja banal. É preciso que a gente, vez ou outra, não entre em angústia ao se perguntar “por que estou fazendo isso?” ou “onde estou com a cabeça?” ou sentenciar “se eu pudesse, eu largava tudo”. Estas expressões são sintomas de uma doença, que não é a depressão, enquanto patologia, mas uma certa desorientação em relação ao sentido daquilo que faz. Esta aflição é fortíssima. As pessoas dizem muito hoje: “Um dia vou ser feliz”. Como se isso se situasse no futuro e não fosse uma condição que pudesse ser vivenciada no tempo presente, em meio às turbulências que nós temos. Esta é uma aflição grande. A outra (aflição) é a ausência de reconhecimento que existe em muitos locais de trabalho. Como cada vez mais trabalhamos em grandes grupos, coletivamente, a autoria, a capacidade da “mão do artista”, fica muito diluída. A minha marca como jornalista, como gestor, como funcionário, desaparece, se dilui. As pessoas vêm se sentido um pouco, e com toda a razão, desprestigiadas.
Se hoje buscamos mais o reconhecimento e questionamos mais nossas posições e o que fazemos, não é porque temos mais opções? Porque podemos escolher o que fazer e corrigir escolhas erradas?
O nosso país ganhou muita condição econômica nos últimos 50 anos. Nós nos tornamos um país muito mais rico. Éramos a 35ª nação do planeta em termos de economia no início dos anos 1960, e agora somos a sétima. Isso significa que a economia dá uma condição melhor do que existia antes. Isso tem influência direta na formação das crianças. Mas tem um outro lado. Os pais, em nome da capacidade de proteção acabam desprotegendo e enfraquecendo seus filhos. É curioso quando os pais falam “poxa, eu não quero que meu filho passe pelo o que eu passei”. Eu fico imaginando: o que esse pai e essa mãe passaram? Tiveram de fazer comida? Limpar a casa? Cortar lenha, como foi o meu caso? Qual é o nível de sofrimento destas tarefas? Ao meu ver, pelo contrário, elas faziam parte da partilha de tarefas de casa. Hoje não mais. Durante muito tempo a geração adulta cuidava de si mesma e dos filhos. Quando os filhos cresciam, os pais diziam: “Bom, agora você vai e cuida da sua vida”. A atual geração de adultos cuida de si mesma. Se tiver filhos, cuida dos filhos. Às vezes, cuida também dos pais, com plano de saúde, atendimento. E, eventualmente, no caso de alguns, até dos netos. A atual geração que tem entre 35 e 40 anos cuida de três gerações. Ela está estafada, cansada, vive em estado de sonolência e deseja, de maneira repetida, libertar-se disso. Só há uma maneira de fazer isso: a procura contínua pela partilha das tarefas. Neste sentido, a educação escolar é uma parte que ajuda nesta questão. Mas ela depende também do coletivo, não apenas da escola. As novas gerações não podem crescer como adultos em férias, que vão ao cinema, passeiam, comem foram... Só não trabalham. Essa condição é malévola. Pode ser até gostoso poder oferecer isso aos filhos, em determinado momento, mas produz um enfraquecimento da capacidade do esforço mais adiante. Portanto, não é fazer os filhos sofrer, mas viver de uma maneira mais partilhada o desgaste e o esforço.
Recentemente, em uma entrevista, o senhor disse que os jovens estão chegando ao mercado de trabalho altamente competentes, porém mal-educados.
A nova geração não tem problema de formação. Ela é ligada à conectividade. Tem um nível de escolaridade que, mesmo que fragilizado, ainda consegue ser ultrapassado. Mas ela chega mal-educada no mundo do trabalho, sem percepção de hierarquia. Ela está acostumada a ser quem subordina os adultos em casa, tanto que há pais e mães que vivem em função dos filhos. Ao mesmo tempo, esta geração não tem necessariamente compromisso com meta e prazo. Abandona coisas com muita facilidade. É muito comum ouvir falar hoje de jovem que começa uma faculdade e passa para outra. Ele descobre que não é o que quer, aí vai estudar mecânica, depois vai para a metalurgia, e passa para a alta gastronomia. Isso não é excesso de opção, isso é confusão mental. É ausência de clareza de onde se quer chegar. E esta mesma geração é absolutamente rica e exuberante naquilo que consegue, que é a criatividade. Se você observar as startups, são inéditas. Mas de quem são? Daqueles que vão fazer um esforço. As coisas não são automáticas, elas não acontecem sozinhas. Há um esforço imenso a ser feito para que as coisas tenham concretização. E a gente observa que o jovem muitas vezes chega até uma nova empresa e supõe que a chefia dele é como um pai e uma mãe, que tem que resolver as coisas para ele. Há pais e mães que saem pelo caminho colocando almofadas para que, a cada tropeço, o filho caia em um lugar macio. Há uma diferença entre proteção e desqualificação. Por isso há uma expressão que precisa ser lembrada: o amor verdadeiro é aquele que não aceita tudo. A frase “o amor aceita tudo” é absolutamente acovardada. Não podemos deixar de modo algum que esta nova geração acredite em uma coisa, que é muito perigosa para a vida coletiva: confundir desejos com direitos.
Até que ponto o mercado de trabalho não tem uma dinâmica obsoleta, ultrapassada para as relações atuais?
Sim, claro. Imagine que a tecnologia nos últimos 20 anos se alterou com uma velocidade imensa, e o mundo do trabalho acompanhou no campo da mecânica, mas não acompanhou no campo dos processos formativos. A internet está fazendo 20 anos. É algo de agora. Não deu tempo para o mundo do trabalho mudar muito, exceto aquelas empresas que atuam no campo do mundo digital. Se você observar, as grandes empresas desta área ligada à internet tentaram a formação diferenciada e elas agregam o jovem que terá de ser disciplinado de outro modo. Embora ele possa trabalhar descalço, ir de bicicleta, levar o cachorro para dentro da empresa, como acontece em várias delas, ele ainda tem compromisso com o grupo, ele precisa se esforçar para que aquilo aconteça. Ele precisa ser disciplinado para entender que o trabalho não é algo que ele senta na cadeira e, de maneira misteriosa, a fada do dente vem e entrega tudo pronto, como um presente.
Como o senhor imagina o cenário futuro, quando a maior parte dos cargos de trabalho, políticos e posições sociais importantes será ocupada pela geração dos atuais jovens?
Haverá um choque de realidades muito forte. Afinal de contas, aquilo que é um grande segredo hoje, do mundo das organizações, é a convivência intergeracional. Por exemplo, um jovem tem percepção de senso de urgência, instantaneidade, mobilidade, conectividade. Mas ele não tem paciência, não tem percepção estratégica. Isso significa que ele tem algumas coisas que são vantajosas, e outras que não. A nova geração não é um encargo. Assim como a anterior, ela é um patrimônio, desde que a gente junte as forças. Por isso, haverá um momento em que esta nova geração, ao galgar alguns dos cargos, ela precisará ter sido formada para fazer algo que não seja um desastre. Afinal, pessoas com mais idade já fizeram muitos desastres, muitas empresas quebraram nos últimos 30, 40 anos. Só não podemos esquecer que a história humana é marcada também por gente muito jovem fazendo muita coisa. Dom Pedro tinha 22 anos quando proclamou a independência. Jesus começou a encantar pessoas com 30 anos. Charles Darwin tinha 19 anos quando foi até a Patagônia. Existe uma presença do mundo jovem muito forte que se ausentou em grande medida no século 20, porque uma parte dos jovens do mundo ocidental morreu nas guerras. Na primeira, 9 milhões de pessoas, na segunda, 55 milhões – e boa parte delas eram jovens entregues ao mundo para a morte. Não é fora de propósito que a geração pós-guerra tenha se dedicado à dança, ao rock, à música, ao fluir da vida. Fazia parte de um impulso movido pelo pós-guerra, em uma sociedade que se amargurou por ter mandado os filhos para morrer nos campos de batalha. E, a partir daí, passaram a deixá-los mais livres. Isso não vale hoje, não estamos mais vivendo em 1946.
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bruna.scirea@zerohora.com.br
REPORTAGEM POR BRUNA SCIREA
FONTE: http://www.clicrbs.com.br/zerohora/jsp/default2.jsp?uf=1&local=1&source=a7328251.xml&template=3898.dwt&edition=29585§ion=3593
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