Segunda-feira, seis da manhã. O despertador toca e você não quer sair da cama. Está cansado? Ou não vê sentido no que faz?
Na introdução de seu novo livro, o filósofo e escritor Mario Sergio Cortella
coloca em poucas palavras o questionamento central da obra, "Por que
fazemos o que fazemos?". Lançada em julho, ela trata da busca por um
propósito no trabalho, uma das maiores aflições contemporâneas.
A entrevista é de Ingrid Fagundez, publicada por BBC Brasil, 02-08-2016.
Em entrevista à BBC Brasil, Cortella,
também doutor em Educação e professor, fala como um mundo com muitas
possibilidades levou as pessoas a negar que sejam apenas mais uma peça
na engrenagem. E explica como a combinação de um cenário imediatista,
anos de bonança e pais protetores fez com que a "busca por propósito"
dos jovens seja muitas vezes incompatível com a realidade.
"No dia a dia, a pessoa se coloca como alguém que vai ter um grande
legado, mas fica imaginando o legado como algo imediato", diz.
Essa visão "idílica", diz o filósofo, torna escritórios e salas de aula em palcos de confronto de gerações.
"Parte da nova geração chega nas empresas mal-educada. Ela não chega
mal-escolarizada, chega mal-educada. Não tem noção de hierarquia, de
metas e prazos e acha que você é o pai dela."
Leia os principais trechos da entrevista abaixo:
O que desencadeou a volta da busca pelo propósito?
A primeira coisa que desencadeou foi um tsunami tecnológico, que nos colocou tantas variáveis de convivência que a gente fica atordoado.
A lógica para minha geração foi mais fácil. Qual era a lógica?
Crescer, estudar. Era escola, e dependendo da tua condição, faculdade.
Não era comunicação em artes do corpo. Era direito, engenharia, tinha
uma restrição.
Essa overdose de variáveis gerou dificuldade de fazer escolhas. Isso
produz angústia em relação a esse polo do propósito. Por que faço o que
estou fazendo? Faço por que me mandam ou por que desejo fazer? Tem uma
série de questões que não existiam num mundo menos complexo.
Não foi à toa que a filosofia veio com força nos últimos vinte anos.
Ela voltou porque grandes questões do tipo "para onde eu vou?", "quem
sou eu?", vieram à tona.
Podemos dizer que nesse contexto vai ser cada vez menor o número de pessoas que não tem esses questionamentos?
Cada vez menor será o número de pessoas que não se incomoda com isso. O próprio mundo digital traz o tempo todo, nas redes sociais,
a pergunta: "por que faço o que faço?", "por que tomo essa posição?". E
aquilo que os blogs e os youtubers estão fazendo é uma provocação: seja
inteiro, autêntico. É a expressão "seja você mesmo", evite a vida de
gado.
No seu livro, você fala da importância do reconhecimento no trabalho. Qual é ela?
O sentir-se reconhecido é sentir-se gostado. Esse
reconhecimento é decisivo. A gente não pode imaginar que as pessoas se
satisfaçam com a ideia de um sucesso avaliado pela conquista material. O
reconhecimento faz com que você perca o anonimato em meio à vida em
multidão.
No fundo, cada um de nós não deseja ser exclusivo, único, mas não
quer ser apenas um. Eu sou um que importa. E sou assim porque é
importante fazer o que faço e as pessoas gostam.
Pelo que vemos nas redes sociais, os jovens estão trazendo essa discussão de forma mais intensa. Você percebeu isso?
Há algum tempo tenho tido leitores cada vez mais
jovens. Como me tornei meio pop, é comum estar andando num shopping e um
grupo de adolescentes pedir para tirar foto.
Uma parcela dessa nova geração tem uma perturbação muito forte, em
relação a não seguir uma rota. E não é uma recuperação do movimento hippie, que era a recusa à massificação e à destruição, ao mundo industrial.
Hoje é (a busca por) uma vida que não seja banal, em que eu faça
sentido. É o que muitos falam de 'deixar a minha marca na trajetória'.
Isso é pré-renascentista. Aquela ideia do herói, de você deixar a sua
marca, que antes, na idade média, era pelo combate.
O destaque agora é fazer bem a si e aos outros. Não é uma lógica
franciscana, o "vamos sofrer sem reclamar". É o contrário. Não sofrer,
se não for necessário.
Uma das coisas que coloco no livro é que não há possibilidade de se conseguir algumas coisas sem esforço. Mas uma das frases que mais ouço dos jovens, e que para mim é muito estranha, é: quero fazer o que eu gosto.
Esse é um pensamento comum entre os jovens quando se fala em carreira.
Muito comum, mas está equivocado. Para fazer o que
se gosta é necessário fazer várias coisas das quais não se gosta. Faz
parte do processo.
Adoro dar aulas, sou professor há 42 anos, mas detesto corrigir
provas. Não posso terceirizar a correção, porque a prova me mostra como
estou ensinando.
Não é nem a retomada do 'no pain, no gain' ('sem dor, não há
ganho'). Mas é a lógica de que não dá para ter essa visão hedonista,
idílica, do puro prazer. Isso é ilusório e gera sofrimento.
O sofrimento seria o choque da visão idílica com o que o mundo oferece?
A perturbação vem de um sonho que se distancia no
cotidiano. No dia a dia, a pessoa se coloca como alguém que vai ter um
grande legado, mas fica imaginando o legado como algo imediato.
Gosto de lembrar uma históra com o Arthur Moreira Lima,
o grande pianista. Ao terminar uma apresentação, um jovem chegou a ele e
disse 'adorei o concerto, daria a vida para tocar piano como você'. Ele
respondeu: 'eu dei'.
Há uma rarefação da ideia de esforço
na nova geração. E falo no geral, não só da classe média. Tivemos uma
facilitação da vida no país nos últimos 50 anos - nos tornamos muito
mais ricos. Isso gerou nas crianças e jovens uma percepção imediatizada
da satisfação das necessidades. Nas classes B e C têm menino de 20 anos
que nunca lavou uma louça.
Quais as consequências dessa visão idealizada?
Uma parte da nova geração perde uma visão histórica
desse processo. É tudo 'já, ao mesmo tempo'. De nada adianta numa
segunda castigar uma criança de cinco anos dizendo: sábado você não vai
ao cinema. A noção de tempo exige maturidade.
Vejo na convivência que essa geração tem uma visão mais imediatista.
Vou mochilar e daí chego, me hospedo, consigo, e uma parte disso é
possível pelo modo que a tecnologia favorece, mas não se sustenta por
muito tempo.
Quando alguns colocam para si um objetivo que está muito abstrato,
sofrem muito. Eu faço uma distinção sempre entre sonho e delírio. O
sonho é um desejo factível. O delírio é um desejo que não tem
factibilidade.
Muitos deliram nas suas aspirações?
Uma parte das pessoas delira. Ela delira imaginando o
que pode ser sem construir os passos para que isso seja possível. Por
que no campo do empreendedorismo existe um nível de fracasso muito
forte? Porque se colocou mais o delírio do que a ideia de um sonho.
O sonho é aquilo que você constrói como um lugar onde quer chegar e
que exige etapas para chegar até lá, ferramentas, condições estruturais.
O delírio enfeitiça.
Qual é o papel dos pais para que a busca pelo propósito dos jovens seja mais realista?
Alguns pais e mães usam uma expressão que é "quero
poupar meus filhos daquilo que eu passei". Sempre fico pensando: mas o
que você passou? Você teve que lavar louça? Ou está falando de cortar
lenha? Você está poupando ou está enfraquecendo? Há uma diferença.
Quando você poupa alguém é de algo que não é necessário que ele faça.
Tem coisas que não são obrigatórias, mas são necessárias. Parte das
crianças hoje considera a tarefa escolar uma ofensa, porque é um
trabalho a ser feito. Ela se sente agredida que você passe uma tarefa.
Parte das famílias quer poupar
e, em vez de poupar, enfraquecem. Estamos formando uma geração um pouco
mais fraca, que pega menos no serviço. Não estou usando a rabugice dos
idosos, 'ah, porque no meu tempo'. Não é isso, é meu temor de uma
geração que, ao ser colocada nessa condição, está sendo fragilizada.
Sempre lemos e ouvimos relatos de conflitos de gerações entre
chefes e subordinados, alunos e professores. Como se explicam esses
choques
Criou-se um fosso pelo seguinte: uma criança ou jovem é criado por adultos, que são seus pais e mantêm com eles uma relação estranha de subordinação. A geração anterior sempre teve que cuidar da geração subsequente e essa vivia sob suas ordens.
A atual geração de pais e mães que têm filhos na faixa dos dez, doze
anos, é extremamente subordinada. Como há por parte dos pais uma
ausência grande de convivência, no tempo de convivência eles querem
agradar. É a inversão da lógica.
Essa lógica faz com que, quando o jovem vai conviver com um adulto
que sobre ele terá uma tarefa de subordinação, na escola ou trabalho,
haja um choque. Parte da nova geração chega nas empresas mal-educada.
Ela não chega mal-escolarizada, chega mal-educada.
Não tem noção de hierarquia, de metas e prazos e acha que você é o
pai dela. Obviamente que ela também chega com uma condição magnífica,
que é percepção digital, um preparo maior em relação à tecnologia.
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Fontes: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/558477-bem-formada-nova-geracao-chega-mal-educada-nas-empresas-diz-filosofo
http://www.bbc.com/portuguese/geral-36959932
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