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Por onde começa a transformação da sociedade: pelo povo ou
pelas elites? Uma questão que pertence à esfera do saber histórico,
pois este dilema ainda tão atual surgia na rivalidade de duas grandes
mentes do século XVIII: Rousseau e Voltaire.
Em fala exclusiva ao Fronteiras, o historiador norte-americano Robert Darnton explica a relação entre estes filósofos e explica como suas diferentes opiniões abrangem muitos aspectos da natureza humana.
Não
esqueça: Robert Darnton sobe ao palco do Fronteiras do Pensamento Porto
Alegre nesta segunda-feira. Darton retorna ao projeto 10 anos após sua
participação na primeira edição do Fronteiras, em 2007, quando o
historiador proferiu a conferência Voltaire, Rosseau e nós.
Há
uma carta famosa de Voltaire para Rousseau, na qual ele diz: “Monsieur,
li seu último livro; ele faz com que eu deseje ficar de quatro, feito
um animal". Ele debocha de Rousseau, como se ele fosse primitivo. E
Rousseau responde: “Monsieur, eu o odeio".
Havia um contraste
entre os dois e esse contraste, creio, hoje é importante para
compreender por que Voltaire tinha uma estratégia para mudar a
sociedade. A estratégia era trabalhar de cima para baixo. Ele conhecia o
mundo da elite, nasceu no século 17, em 1694, sob o reino de Louis XIV,
em outro mundo.
E ele acreditava que a sociedade era hierárquica,
que mesmo os trabalhadores não deveriam aprender a ler porque alguém,
ele disse, tinha que arar os campos. Ele se dirigiu à elite e soube como
manipular o mundo do salon, das academias.
Ele era um
cortesão em Versalhes, conhecia o rei e também a amante do rei, Madame
de Pompadour. Ele, então, manipulou esse mundo, mas se excedeu e teve de
desaparecer e passar os últimos anos de sua vida primeiro em Berlim,
depois entre a França e a Suíça, escrevendo panfletos, sempre atacando a
injustiça, mas atacando-a de cima para baixo, entre as pessoas no
poder.
Rousseau é o oposto: veio de uma família pobre, seu pai era
um artesão, um relojoeiro, e Rousseau expressava uma profunda
discordância em relação a Voltaire. Ele pensava que se deve trabalhar de
baixo para cima, e era nas próprias pessoas que ele se inspirava.
Imaginava
um mundo democrático onde, em vez do teatro se vissem demonstrações
populares, um tipo de teatro do povo e procissões e festivais. Todos
seriam atores e espectadores ao mesmo tempo. Isso, em última análise,
era uma espécie de política.
Rousseau tinha a energia das bases populares da sociedade. E creio que, quando Rousseau rompeu com os encyclopédistes, os autores da grande Encyclopédie, que é o livro central do Iluminismo, rompeu ao atacar a cultura da elite.
Quando
Voltaire descreve a sociedade utópica de Eldorado, e ele está pensando
nesta parte do mundo, ele insiste que ela é, acima de tudo, uma société polie.
Ele descreve como as pessoas interagem de forma educada. O que ele quer
dizer é que há respeito pelo outro e há uma espécie de douceur, de
gentileza no modo como as pessoas se tratam que é civilizado.
A
civilização ideal é o que Norbert Elias chama de “processo
civilizatório", um processo que doma as paixões violentas dos indivíduos
para que a vida social seja possível. E isso era importante porque os
nobres, por exemplo, no século 17, eram uns brutos. Pensamos neles como grands-seigneurs
e assim por diante. A noção dos bons modos franceses é recente, é uma
noção do século 18 iniciada no século 17. Antes disso, eles eram uns
brutos que queriam brigar o tempo todo.
O processo civilizatório
muda toda a natureza das relações sociais. E isso, de uma maneira, abre o
caminho para o poder, para aqueles que nascem nas partes mais baixas da
sociedade, mas aprenderam o código das boas maneiras a fim de
progredir. Foi o que Voltaire fez.
Afinal, ele não era um seigneur,
seu pai tinha um trabalho numa das cortes, mas não era um aristocrata.
Porém, Voltaire tinha talento para divertir as pessoas, para as relações
sociais. E, com o tempo, chegou ao topo da corte de Louis XV,
empregando o código das boas maneiras.
Mas, é claro, para
Rousseau isso era terrível, porque era um código especificamente
relacionado à aristocracia e à Igreja. Rousseau odiava a ideia dos bons
modos; em vez disso, queria um modo popular direto de interação social.
O lema de Voltaire, em francês, era "il faut mettre les rieurs de notre côté",
"devemos ter o sorriso do nosso lado". Ele usou o sorriso como uma arma
contra o preconceito. E, por preconceito, ele quis dizer a Igreja
Católica, o sistema legal que era corrupto e, de certa forma,o sistema
político.
Com Rousseau, é muito mais radical, porque ele defendia a
completa democratização do sistema político. O que me espanta, quando
leio Rousseau, é a forma com que ele criou uma nova relação entre
escritor e leitor. Sei disso porque estudei todas as cartas que ele
recebeu.
As pessoas escreviam a ele dizendo: "Monsieur, o
senhor tocou meu coração.", "Diga o que vai acontecer com os
personagens do livro." Porque as pessoas pensavam que personagens como
Saint Priest e Julie eram reais e os levavam para suas vidas, quase como
nas novelas hoje em dia. Mas, na época, era algo novo.
Vê-se a
mesma coisa acontecendo na Inglaterra e na Alemanha com os grandes
novelistas, como Richardson na Inglaterra, Goethe na Alemanha, Rousseau
na França. Eles criam uma nova espécie de relação entre leitor e
escritor, o que produz mais poder, de forma que as pessoas se comovem
depois de terem sido mobilizadas através do sorriso por Voltaire.
O movimento de Voltaire para Rousseau abrange muitos aspectos da natureza humana e os une pela causa em comum do Iluminismo.
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* Historiador cultural norte-americano.
Darnton é pioneiro nos estudos sobre a história do livro e um
dos mais renomados especialistas em história da França do século XVIII.
Graduado pela Universidade de Harvard, com mestrado e doutorado pela
Universidade de Oxford, lecionou em Princeton de 1968 a 2007. Em 2007,
assumiu como diretor da Biblioteca de Harvard e tornou-se o responsável
por disponibilizar pela internet o conjunto da produção intelectual da
universidade, considerado um dos maiores e mais importantes do mundo
Fonte: http://www.fronteiras.com/artigos/voltaire-rousseau-e-nos 26/08/2016
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