segunda-feira, 8 de agosto de 2016

Os estudos técnicos

 José Manuel Pureza*
 
 
Qualquer que seja a tecnicidade das escolhas, em democracia elas têm sempre uma indisfarçável marca ideológica.
 
A separação entre a técnica e a política é invariavelmente um disfarce de uma escolha política que não se quer assumir. Claro que há tecnicidade nas decisões, claro que há tecnicidade na identificação das escolhas, na sua fundamentação numa informação rigorosa, claro que há tecnicidade envolvida na seleção de cenários plausíveis. Mas a neutralidade de tudo isto é uma fábula. A técnica é política.

Para a política neoliberal – na governação ou fora dela - essa pretensa autonomia entre a técnica e a política é um recurso muito frequente. Os neoliberais usam e abusam da negação de que uma decisão seja uma escolha e afirmam-na como uma inevitabilidade, negam que haja ideologia envolvida e proclamam que é apenas uma questão de respeito pela realidade dos factos. Dizem-no, por exemplo, os neoliberais portugueses ao afirmarem que a austeridade não é ideológica porque ninguém escolhe – dizem-nos – a austeridade, é ela que se impõe como inevitável face ao desgoverno das contas públicas pela suposta irresponsabilidade de quem não é neoliberal. Para eles, nada é escolha, tudo é técnica. Política a sério, para eles, é uma de duas coisas: cerimonial de legitimação formal ou pactos de regime.

Uma democracia digna desse nome assume as escolhas por inteiro, não as disfarça atrás do biombo dos estudos técnicos. Implantar (finalmente) o metro de superfície em Coimbra, dar dinheiro público a espetáculos tauromáquicos ou desenhar o futuro da ADSE não é algo que decorra de estudos técnicos. É uma escolha fundada sempre no peso dado a critérios de princípio como justiça (social, territorial e cognitiva) ou primado do bem público. Ou seja, ideologia. Qualquer que seja a tecnicidade das escolhas, em democracia elas têm sempre uma indisfarçável marca ideológica.

É por isso que, em democracia, o saber dos ‘especialistas’ não pode sobrepor-se ao saber das ‘pessoas comuns’. A complexidade das decisões é a desculpa usada para as despolitizar e assim as retirar ao campo do debate democrático. Ora, nem as decisões são hoje mais complexas que no passado nem a democracia é mais dispensável do que já foi. Pelo contrário. É porque é da essência da democracia que é imperativo que seja a democracia a tomar posição face ao euro, face à Parceria Transatlântica ou face à exploração de petróleo por Sousa Cintra no Algarve. Tudo coisas complexas? Sim, tudo coisas de decisão popular. Tudo a estudar tecnicamente? Sim, tudo a decidir democraticamente.
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Artigo publicado no diário “As Beiras” em 6 de agosto de 2016 - Site de Portugal.
* Professor universitário. 
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