José Manuel Pureza*
Qualquer que seja a tecnicidade das escolhas, em democracia elas têm sempre uma indisfarçável marca ideológica.
A
separação entre a técnica e a política é invariavelmente um disfarce de
uma escolha política que não se quer assumir. Claro que há tecnicidade
nas decisões, claro que há tecnicidade na identificação das escolhas, na
sua fundamentação numa informação rigorosa, claro que há tecnicidade
envolvida na seleção de cenários plausíveis. Mas a neutralidade de tudo
isto é uma fábula. A técnica é política.
Para a política neoliberal – na governação ou fora
dela - essa pretensa autonomia entre a técnica e a política é um recurso
muito frequente. Os neoliberais usam e abusam da negação de que uma
decisão seja uma escolha e afirmam-na como uma inevitabilidade, negam
que haja ideologia envolvida e proclamam que é apenas uma questão de
respeito pela realidade dos factos. Dizem-no, por exemplo, os
neoliberais portugueses ao afirmarem que a austeridade não é ideológica
porque ninguém escolhe – dizem-nos – a austeridade, é ela que se impõe
como inevitável face ao desgoverno das contas públicas pela suposta
irresponsabilidade de quem não é neoliberal. Para eles, nada é escolha,
tudo é técnica. Política a sério, para eles, é uma de duas coisas:
cerimonial de legitimação formal ou pactos de regime.
Uma democracia digna desse nome assume as escolhas
por inteiro, não as disfarça atrás do biombo dos estudos técnicos.
Implantar (finalmente) o metro de superfície em Coimbra, dar dinheiro
público a espetáculos tauromáquicos ou desenhar o futuro da ADSE não é
algo que decorra de estudos técnicos. É uma escolha fundada sempre no
peso dado a critérios de princípio como justiça (social, territorial e
cognitiva) ou primado do bem público. Ou seja, ideologia. Qualquer que
seja a tecnicidade das escolhas, em democracia elas têm sempre uma
indisfarçável marca ideológica.
É por isso que, em democracia, o saber dos
‘especialistas’ não pode sobrepor-se ao saber das ‘pessoas comuns’. A
complexidade das decisões é a desculpa usada para as despolitizar e
assim as retirar ao campo do debate democrático. Ora, nem as decisões
são hoje mais complexas que no passado nem a democracia é mais
dispensável do que já foi. Pelo contrário. É porque é da essência da
democracia que é imperativo que seja a democracia a tomar posição face
ao euro, face à Parceria Transatlântica ou face à exploração de petróleo
por Sousa Cintra no Algarve. Tudo coisas complexas? Sim, tudo coisas de
decisão popular. Tudo a estudar tecnicamente? Sim, tudo a decidir
democraticamente.
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Artigo publicado no diário “As Beiras” em 6 de agosto de 2016 - Site de Portugal.
* Professor universitário.
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