De tudo na vida, que é puro mistério, o que mais me espanta é a
poesia. Não creio que se possa viver sem metáforas. Cada um se alimenta
de imagens até sem o saber. Há 80 anos, era assassinado o grande poeta
Federico García Lorca, vítima precoce do que seria a longa ditadura
franquista na Espanha. O totalitarismo não suporta versos
desconcertantes e metáforas que explodem os sentidos triviais. A poesia
pode ser muito perigosa. Ela subverte a banalidade da vida. Talvez o
grande mal do nossa época seja o desinteresse pelos poetas.
Um cotidiano sem poesia fica mais árido. Tornou-se lugar comum
considerar os poetas como grandes chatos e ver a poesia como um versejar
romântico de adolescentes ou de velhotes anacrônicos. Estranhamente, no
caso do Brasil, alguns nomes de poetas ainda gozam de veneração:
Drummond, Bandeira, Quintana, João Cabral, Cecília. Alguns, como
Ferreira Gullar, apequenam-se como comentaristas de uma política
rasteira. Quem os lê? Quem vai além de alguns versos que ornam agendas e
servem de nacos de cultura em saraus ocasionais? Não sei. Talvez eu
exagere.
Sei que a poesia me faz falta como a chuva.
Diz-se que a poesia é intraduzível.
Deve ser verdade.
A arte, de certo modo, é tão singular que toda conversão é nova arte ou naufrágio.
Como não posso ler em todas as línguas, por falta de tempo e
incompetência, contento-me com o árduo e essencial trabalho dos
tradutores, missão à qual já me aventurei com as “flores do mal” de
Charles Baudelaire. Não resisto, porém, a compartilhar estes versos de
García Lorca, por demais conhecidos e admirados, no original.
“Yo tenía un hijo que era un gigante,
pero los muertos son más fuertes y saben devorar pedazos de cielo.
Si mi niño hubiera sido un oso,
yo no temería el sigilo de los caimanes,
ni hubiese visto el mar amarrado a los árboles
para ser fornicado y herido por el tropel de los regimentos.”
O que me fascina neles? Tudo. A começar pelo inusitado das imagens.
Como não se deslumbrar com esses mortos tão fortes que “sabem devorar
pedaços de céu”? Como não refletir em meio a perplexidade sobre a ideia
de ver o mar “amarrado às árvores”? Como não se surpreender e deixar
fascinar com esse “sigilo dos caimanes”? Misturo as línguas para sentir o
som das palavras. Como não se impressionar com a possibilidade de ser
“fornicado y herido por el tropel dos regimentos”.
Que sentido faz isso
tudo? O sentido de um transbordamento.
A poesia tem algo de enxurrada. Leva tudo com ela.
Certa vez, escrevi sobre poesia e recebi um e-mail devastador: “Está
sem assunto?” Era certamente obra de um espírito destruído pela prosa da
existência. Um ser sem poesia. O cotidiano pode esterilizar as almas
mais sensíveis. Um homem que não deve ter lido García Lorca. Nem
imaginado o horror da sua eliminação. Uma pessoa que nunca comerá
pedaços de céus nem observará o “sigilo dos caimanes”. Não deixa de ser
uma boa definição de ditadura: regime que começa com o assassinato de um
poeta e termina com o longo exílio das metáforas
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* Sociólogo. Escritor.
Fonte: http://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/2016/08/8957/por-um-poeta-assassinado/
Imagem da Internet
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