sexta-feira, 19 de agosto de 2016

Por um poeta assassinado

Machado da Silva*
 
De tudo na vida, que é puro mistério, o que mais me espanta é a poesia. Não creio que se possa viver sem metáforas. Cada um se alimenta de imagens até sem o saber. Há 80 anos, era assassinado o grande poeta Federico García Lorca, vítima precoce do que seria a longa ditadura franquista na Espanha. O totalitarismo não suporta versos desconcertantes e metáforas que explodem os sentidos triviais. A poesia pode ser muito perigosa. Ela subverte a banalidade da vida. Talvez o grande mal do nossa época seja o desinteresse pelos poetas.

Um cotidiano sem poesia fica mais árido. Tornou-se lugar comum considerar os poetas como grandes chatos e ver a poesia como um versejar romântico de adolescentes ou de velhotes anacrônicos. Estranhamente, no caso do Brasil, alguns nomes de poetas ainda gozam de veneração: Drummond, Bandeira, Quintana, João Cabral, Cecília. Alguns, como Ferreira Gullar, apequenam-se como comentaristas de uma política rasteira. Quem os lê? Quem vai além de alguns versos que ornam agendas e servem de nacos de cultura em saraus ocasionais? Não sei. Talvez eu exagere.

Sei que a poesia me faz falta como a chuva.

Diz-se que a poesia é intraduzível.

Deve ser verdade.

A arte, de certo modo, é tão singular que toda conversão é nova arte ou naufrágio.

Como não posso ler em todas as línguas, por falta de tempo e incompetência, contento-me com o árduo e essencial trabalho dos tradutores, missão à qual já me aventurei com as “flores do mal” de Charles Baudelaire. Não resisto, porém, a compartilhar estes versos de García Lorca, por demais conhecidos e admirados, no original.

“Yo tenía un hijo que era un gigante,
pero los muertos son más fuertes y saben devorar pedazos de cielo.
Si mi niño hubiera sido un oso,
yo no temería el sigilo de los caimanes,
ni hubiese visto el mar amarrado a los árboles
para ser fornicado y herido por el tropel de los regimentos.”

O que me fascina neles? Tudo. A começar pelo inusitado das imagens. Como não se deslumbrar com esses mortos tão fortes que “sabem devorar pedaços de céu”? Como não refletir em meio a perplexidade sobre a ideia de ver o mar “amarrado às árvores”? Como não se surpreender e deixar fascinar com esse “sigilo dos caimanes”? Misturo as línguas para sentir o som das palavras. Como não se impressionar com a possibilidade de ser “fornicado y herido por el tropel dos regimentos”. 

Que sentido faz isso tudo? O sentido de um transbordamento.

A poesia tem algo de enxurrada. Leva tudo com ela.

Certa vez, escrevi sobre poesia e recebi um e-mail devastador: “Está sem assunto?” Era certamente obra de um espírito destruído pela prosa da existência. Um ser sem poesia. O cotidiano pode esterilizar as almas mais sensíveis. Um homem que não deve ter lido García Lorca. Nem imaginado o horror da sua eliminação. Uma pessoa que nunca comerá pedaços de céus nem observará o “sigilo dos caimanes”. Não deixa de ser uma boa definição de ditadura: regime que começa com o assassinato de um poeta e termina com o longo exílio das metáforas
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* Sociólogo. Escritor.
Fonte:  http://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/2016/08/8957/por-um-poeta-assassinado/
Imagem da Internet

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