Card. Gianfranco Ravasi*
As
festas de Olímpia no Peloponeso eram as mais antigas e celebradas da Grécia clássica,
ao ponto de se tornarem, na sua cadência quadrienal a medida de rferência da
própria cronologia. As várias competições desportivam tinham como base uma
visão geral da pessoa, da sociedade e da própria cultura. A
"paideia", isto é, a formação grega da pessoa, associava-se à
"euritmia", ou seja, a harmonia física (pense-se nas imagens das
pinturas vasculares ou no "Discóbolo" do escultor "Míron). As
mesmas Olimpíadas ligavam-se à poesia, como atestam as "Olímpicas",
célebres odes de Píndaro (séc. V a.C.) e as dos poetas Simónides e Baquilides.
Por
ocasião do acontecimento olímpico do Rio de Janeiro, tentaremos um esboço sobre
a relação entre desporto e espiritualidade no cristianismo. O judaísmo, a esse
respeito, foi mais reticente, por causa do risco de contaminação idolátrica,
como aconteceu em alguns judeus "traidores" durante a grande epopeia
dos macabeus. Eles, com efeito, entravam nus nos "ginásios", as sedes
educativas e desportivas helenistas, e chegavam ao ponto de se submeter a uma
intervenção cirúrgica, dita em grego "epispasmós", para eliminar o
sinal da circuncisão.
A
reserva anti-idolátrica estava presente também em alguns Padres da Igreja -
reserva que se alargava aos espetáculos teatrais -, que se opuseram aos Jogos
Olímpicos, como Ambrósio, que impede o imperador romano Teodósio de os repropor
em 393. Na raiz, além do risco de contaminação com a idolatria e o paganismo,
havia a crítica ao exibicionismo dos atletas que, através do exercício físico,
pareciam contradizer ou deformar a obra do Criador em relação ao corpo humano.
Todavia,
diferente foi a atitude nas origens cristãs primordiais. O próprio Jesus,
efetivamente, tinha partido do jogo das crianças para definir a geração que o
estava a ouvir, incapaz de uma opção como aqueles jovens que, «estando sentados
na praça gritam aos companheiros: tocámos a flauta e não dançastes, entoámos
lamentações e não batestes no peito» (Mateus 11, 16-17). Dito por outras
palavras, àquelas crianças tinham sido propostos os jogos mais díspares, como
imitar uma festa de casamento ou um funeral, mas elas tinham sempre oposto uma
recusa pouco amigável.
É,
contudo, sobretudo S. Paulo que, por diversas vezes, recorre a metáforas
desportivas para delinear o compromisso apostólico e do cristão. Em particular,
ele faz referência à corrida no estádio e ao pugilismo, dois desportos muito
praticados na sociedade greco-romana.
Interessante
é um parágrafo da Primeira Carta aos Coríntios onde é usado o léxico técnico
desportivo: «Não sabeis que nas corridas no estádio todos correm, mas só um
conquista o prémio? Correi também vós de modo a conquistá-lo. Mas cada atleta
("agonizómenos", "que compete lutando") submete-se em tudo
à disciplina. Fazem-no para onter uma coroa corruptível, nós, ao contrário, incorruptível.
Eu, portanto, corro mas não como quem está sem meta. Faço pugilato
("pyktéuô", "faço com murros"), mas não como alguém que
bate no ar. Na realidade, atinjo duramente ("hypopiàzô", literalmente
"atinjo sob os olhos", isto é, no ponto mais fraco do adversário) o
meu corpo e reduzo-o à escravidão, para que não suceda que, depois de ter
pregado aos outros, eu próprio seja desqualificado» (9, 24-27).
Também naquela espécie de testamento que ele endereça ao seu fiel colaborador Timóteo, o apóstolo, depois de ter usado imagens rituais (o ser «entregue em libação»), náuticas ou nómadas («desfazer as velas» ou «as tendas») e militares («combati a boa batalha»), recorre à cena desportiva da corrida no estádio para exprimir o seu compromisso total em conservar alta a chama da fé. A frase em grego é até ritmada, "ton drómon tetélexa, ten pístin tetéreka", «levei ao termo a corrida, conservei a fé» (2 Tomóteo 4, 7). E continua, referindo-se sempre à simbologia desportiva: «Resta-me a coroa de justiça que o Senhor, justo juiz, me entregará nesse dia, não só a mim mas a todos aqueles que esperaram com amor a sua epifania» (4, 8).
Também naquela espécie de testamento que ele endereça ao seu fiel colaborador Timóteo, o apóstolo, depois de ter usado imagens rituais (o ser «entregue em libação»), náuticas ou nómadas («desfazer as velas» ou «as tendas») e militares («combati a boa batalha»), recorre à cena desportiva da corrida no estádio para exprimir o seu compromisso total em conservar alta a chama da fé. A frase em grego é até ritmada, "ton drómon tetélexa, ten pístin tetéreka", «levei ao termo a corrida, conservei a fé» (2 Tomóteo 4, 7). E continua, referindo-se sempre à simbologia desportiva: «Resta-me a coroa de justiça que o Senhor, justo juiz, me entregará nesse dia, não só a mim mas a todos aqueles que esperaram com amor a sua epifania» (4, 8).
Chegados
aqui não podemos, contudo, ignorar um capítulo que é dramaticamente verdadeiro
também para o desporto. Em termos religiosos é o exercício da liberdade no
pecado que atinge também este âmbito. Assim, o jogo-desporto torna-se lucro
económico, e já não é mais livre exercício; o espetáculo transforma-se em
doença violenta (a palavra italiana "tifosi", "adeptos",
baseia-se no grego "typhos", "febre"); a beleza e a força
física são devastadas pelo "doping", falsificando o exercício
desportivo que nas Olimpíadas gregas era dito "àskesis", isto é,
"ascese". Ela amplia ao máximo a potencialidade do organismo,
tornando o ato físico natural e espontâneo, como acontece à dançarina clássica
ou ao atleta autêntico. Além disso, o jogo, de instrumento até de cura
("ludoterapia"), degenera em formas maníacas ("ludopatia").
As sublevações mais ameaçadoras e obscuras do ser humano revelam-se através da
brutalidade, a vulgaridade e o racismo nos estádios.
Uma nota particular de partilha e de apoio merecem, ao contrário, os atletas dos Jogos Paralímpicos que não se deixam vencer pela sua deficiência, empenhando-se em superá-lo num desafio contínuo a ir mais longe, em direção a uma meta mais prestigiosa. Assim, além de representarem um verdadeiro e próprio exemplo no desafiar os limites das possibilidades físicas - alma de toda a competição desportiva -, são chamados a superar também a fasquia da sua deficiência. São, por isso, pessoas que podemos legitimamente considerar "duplamente atletas".
Uma nota particular de partilha e de apoio merecem, ao contrário, os atletas dos Jogos Paralímpicos que não se deixam vencer pela sua deficiência, empenhando-se em superá-lo num desafio contínuo a ir mais longe, em direção a uma meta mais prestigiosa. Assim, além de representarem um verdadeiro e próprio exemplo no desafiar os limites das possibilidades físicas - alma de toda a competição desportiva -, são chamados a superar também a fasquia da sua deficiência. São, por isso, pessoas que podemos legitimamente considerar "duplamente atletas".
As
Paralimpíadas nasceram oficialmente nos anos 60 do século passado, contribuindo
para contar e representar inúmeras histórias de feitos atléticos, acompanhadas
de emoções, sentimentos, lágrimas e sorrisos, alegrias e sofrimentos.
Permitiram descrever autênticos feitos heróicos, ajudando-nos a superar
preconceitos ancestrais, lugares-comuns destituídos de qualquer fundamento.
Comovemo-nos com estas mulheres e estes homens, vendo demolidos os muros da
indiferença e do ceticismo, da suficiência coberta de comiseração, admirando-os
pela coragem e pela orgulhosa dignidade dos seus gestos atléticos, convictos de
que as medalhas por eles conquistadas não valem menos do que as olímpicas.
Concluímos
regressando à relação entre jogo e religião, fazendo-o, em espírito ecuménico,
com uma bela representação que Lutero delineia da meta paradisíaca precisamente
na base da analogia do jogo: «Então o homem com o Céu e com a Terra, jogará com
o Sol e com todas as criaturas. E todas as criaturas experimentarão um prazer
imenso e uma felicidade lírica e rirão contigo, Senhor». Também o monge Notker,
da abadia de S. Galo, falecido em 912, poeta, músico e bibliotecário, descreveu
assim a Igreja que joga em paz sob a videira fecunda, símbolo de Cristo, no
jardim celeste: «Eis, ó Cristo, a tua Igreja que joga serena e em paz á sombra
de uma videira luxuriante».
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* Card. Gianfranco
Ravasi
Presidente do Conselho Pontifício da Cultura
In "Italpress"
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado em 31.07.2016 - Português de Portugal
Presidente do Conselho Pontifício da Cultura
In "Italpress"
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado em 31.07.2016 - Português de Portugal
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