A britânica Angela Saini diz que cientistas, a começar por Darwin, erraram ao decretar a inferioridade feminina sem considerar o contexto social
Jornalista especializada em ciência, a
britânica Angela Saini, de 36 anos, surpreendeu-se mais de uma vez ao
deparar com teses científicas que ainda hoje sugerem algum tipo de
inferioridade feminina em relação ao gênero masculino. Para questionar
esse entendimento, ela reuniu um calhamaço de teses que atribuem às
mulheres características — biológicas ou comportamentais — desfavoráveis
em relação aos homens e as confrontou com pesquisas científicas que
dizem justamente o contrário. O resultado foi o livro Inferior: How Science Got Women Wrong (Inferior:
como a ciência se enganou com as mulheres, em tradução literal), ainda
sem previsão de lançamento no Brasil. A formação de Angela lhe garante
credenciais para a empreitada. Egressa de um mestrado em engenharia na
Universidade de Oxford e de outro em ciência pelo King’s College, ela
atuou no jornalismo científico em veículos como a New Scientist, The Guardian e BBC.
Seus achados não poupam nem Charles Darwin — para ela, causador de um
“dano irreparável” à reputação do gênero feminino. Angela falou a VEJA
por telefone, de Londres. A seguir, sua entrevista.
O engenheiro do Google James Damore foi demitido
depois de divulgar um memorando no qual sugeria que as mulheres são
biologicamente menos aptas que os homens para trabalhar na área de
tecnologia. Ele está errado? Ele usa evidências científicas (James Damore é mestre em ciência pela Harvard)
para defender a ideia de que as mulheres são, em média, biologicamente
diferentes dos homens, de uma forma que as torna menos capacitadas para
determinado tipo de trabalho — nesse caso, o trabalho no campo
tecnológico. Há uma vertente da neurociência que tenta popularizar a
noção de que o cérebro das mulheres e o dos homens são diferentes. Um
teria mais facilidade em exercitar a empatia, enquanto o outro teria
mais aptidão para analisar sistemas, por exemplo. Damore se valeu dessa
tese em seu memorando.
Mas ele está errado? Estudos recentes
mostram que, no campo cerebral, há diferenças mínimas entre os sexos — e
elas ocorrem em habilidades muito específicas, como o raciocínio
matemático e a fluência verbal. Individualmente, os seres humanos são
muito diferentes entre si. Se alguém escolher um grupo de pessoas e
buscar diferenças por sexo, vai encontrá-las. Mas, estatisticamente,
elas não existem. Pesquisas sobre isso têm sido feitas continuamente e
podem ter resultados diversos no futuro. Mas, hoje, este é o
entendimento preponderante: não há evidência que valide a tese de que o
cérebro de homens e o de mulheres sejam diferentes.
Damore afirma também que as políticas de estímulo à
diversidade do Google têm um viés de esquerda. A diversidade virou uma
bandeira da esquerda? A igualdade é um valor universal, é um
direito humano. O que é certo, nesse caso específico do Google, é que a
entrada das mulheres num território essencialmente masculino, como o da
tecnologia, parece estar ameaçando os homens. Alguns temem perder espaço
para mulheres que ascendem, e isso faz com que busquem justificativas
para impedir esse movimento.
O que a senhora pretendeu provar ao confrontar em
seu livro teses que sugerem a inferioridade da mulher com outras que
dizem o contrário? Há um estudo no mundo para justificar
qualquer ideia. Eugenistas tiveram amplo apoio de instituições renomadas
dos Estados Unidos quando afirmaram que havia tipos distintos de raça
humana — algo que se provou moral e tecnicamente errado. Hoje ainda é
possível achar teses que afirmam que uma determinada etnia é inferior a
outra. Mas o fato de algo estar publicado significa que é verdade? Para
chegar à verdade, é preciso um conjunto de pesquisas, é preciso
questionar essas pesquisas e levar em conta o contexto em que elas foram
feitas.
O que a fez concluir que a ciência é sexista?
A ciência nasceu dentro de um contexto cultural em que a mulher era
vista de forma diferente do homem. “Homens são promíscuos, mulheres,
monogâmicas; homens são fortes, mulheres, frágeis; homens são
provedores, mulheres, dependentes.” Esse viés sexista conduziu a
sociedade até poucas décadas atrás. Então, não é surpreendente que a
ciência tenha seguido o mesmo caminho, reproduzindo estereótipos e
baseando seus estudos em suposições herdadas da sociedade.
A forma como a religião retrata a mulher também influenciou a ciência?
Sim, pois a religião faz parte desse arcabouço cultural. Adão e Eva
foram a fonte primária de informação sobre a relação entre homem e
mulher para o mundo cristão. E outras religiões, ainda que não tenham os
mesmos personagens, reproduzem o estereótipo da mulher como segundo
elemento, com importância secundária.
Por que a senhora diz que Darwin foi o cientista que causou mais dano para a percepção da ciência sobre a mulher?
Darwin foi crucial para a imagem que a ciência teve por muito tempo
sobre as mulheres. Causou dano irreparável. Quando, no século XIX, ele
disse que elas eram naturalmente inferiores, estava fazendo uma leitura
biológica baseada na cultura em que foi criado — uma cultura inserida
num contexto de classe média alta, cristã e vitoriana. Ele reiterou, até
as vésperas de sua morte, em 1882, que as mulheres estavam atrás dos
homens na escala evolutiva, e que, apesar de serem superiores no quesito
moral, o mesmo não acontecia do ponto de vista intelectual. Trata-se de
um equívoco enorme porque, naquela época, as mulheres não tinham acesso
à educação, à informação, não podiam desenvolver uma carreira nem
participar do mundo efervescente da ciência ou das artes. Ou seja,
Darwin decretou a inferioridade intelectual das mulheres sem considerar o
contexto social e cultural em que elas estavam inseridas. O poder de
suas ideias e seu status fizeram com que suas teses embasassem muitos
trabalhos de cientistas nos séculos seguintes.
Quando essa tese passou a ser revista? O
dano só começou a ser revertido nos anos 1970, quando as primeiras
mulheres cientistas se dedicaram a refazer pesquisas que atestavam sua
inferioridade. Em um trabalho específico, de 1948, o cientista A.J.
Bateman afirmou, com base em uma pesquisa feita com moscas, que homens
eram mais promíscuos e mulheres, mais seletivas na hora de copular. Isso
indicaria que a “castidade” feminina era um fenômeno biológico. A mesma
pesquisa, com conclusão similar, foi feita com chimpanzés algumas
décadas depois. Mas, pouco mais tarde, a cientista Sarah Blaffer Hrdy,
que observou o comportamento de primatas indianos, verificou que eles
faziam justamente o oposto. Para protegerem os filhotes de ser apanhados
por machos de outros grupos, as fêmeas copulavam com a maior quantidade
possível de macacos, já que os machos daquela espécie jamais se
arriscariam a matar um filhote da própria família.
Há alguma teoria recente que ainda dissemine a ideia da inferioridade biológica feminina?
Em 2013, apenas quatro anos atrás, um grupo de cientistas da
Universidade McMaster publicou um artigo sobre a origem da menopausa em
que o argumento-base era que as mulheres deixavam de menstruar na
meia-idade porque os homens deixavam de achá-las atraentes. A menopausa,
portanto, seria um efeito evolutivo da falta de atração do homem por
uma mulher mais velha. O lastro científico era zero e refutava uma
pesquisa amplamente embasada do biólogo evolucionista George Williams.
Essa pesquisa revela que a menopausa surgiu na nossa espécie como um
mecanismo para proteger as mulheres mais velhas dos riscos do parto,
fazendo-as viver mais e garantir a segurança da espécie, tendo em vista
que os humanos dependem por mais tempo da família do que as outras
espécies.
Quais são os equívocos sobre a inferioridade feminina mais consolidados hoje?
O mito de que os homens são mais fortes que as mulheres. Quando se diz
isso, o pressuposto é que só o tamanho do corpo e dos músculos está
relacionado à força. Ocorre que a força pode ser medida de várias
formas. A imunidade e a capacidade de sobreviver a doenças, por exemplo,
são duas delas. Nesses aspectos, as mulheres são mais fortes que os
homens. A Universidade do Alabama tem uma base de dados de mais de vinte
anos de pesquisa em envelhecimento que mostra que as mulheres vivem de
cinco a seis anos mais que os homens pela robustez de suas
características imunológicas. Fala-se ainda que as mulheres são mais
emotivas porque entendem melhor suas emoções. Assim, elas seriam menos
racionais que os homens. Não há evidências que comprovem isso. Trata-se
muito mais provavelmente de uma questão cultural. Às mulheres foi
permitido, ao longo da história, demonstrar emoções. Aos homens, não.
Em seu livro, a senhora menciona tribos nômades em
que mulheres e homens eram vistos de forma igualitária e tinham tarefas
idênticas. Quando isso começou a mudar ao longo da história?
Antropólogos não conseguiram precisar com exatidão, mas acreditam que
foi há cerca de 10 000 anos, antes de o homem se estabelecer em
comunidade ao redor de uma atividade agrícola. Nesse momento surgiram
inovações sociais, como o acúmulo de território e riqueza, o matrimônio e
a criação de uma hierarquia patriarcal, que nos trouxe ao que temos
hoje.
Os avanços em igualdade de gênero, até hoje, estão aquém do que a sociedade pode executar?
Não é que estejam aquém, mas surpreende o fato de tanta gente educada e
com acesso à informação ainda acreditar que, em certos aspectos, as
mulheres não são boas o suficiente. No fim, a ciência avançou tanto em
tantas coisas, mas tão pouco em conhecer as similaridades e as
diferenças entre os seres humanos. Atualmente existem culturas que ainda
perpetuam a ideia de que as mulheres podem menos e de que essa é a
ordem natural das coisas. Há países onde elas puderam votar faz poucos
anos. Há países onde mulheres não podem votar. Estudei na Universidade
de Oxford, e só no início do século XX foi concedido um diploma a uma
mulher. O que a sociedade pode fazer melhor hoje é dar às meninas uma
criação mais igualitária, que as ensine a pensar criticamente sobre as
diferenças.
O feminismo na ciência não pode criar um viés equivocado, tornando a discussão sobre gênero menos racional?
O que o feminismo está fazendo com a ciência é melhorá-la,
confrontá-la. O feminismo tem ajudado a questionar estereótipos que são,
justamente, irracionalidades que faziam parte da ciência.
Publicado em VEJA de 16 de agosto de 2017, edição nº 2543
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Reportagem Por
Ana Clara Costa - 12 ago 2017,
Fonte: http://veja.abril.com.br/revista-veja/a-ciencia-e-sexista-2/
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