Rodrigo Constantino*
“Refreia as tuas paixões, mas toma cuidado para
não dar rédeas soltas à tua razão.”
(Karl Kraus)
A pré-história do humanismo reside no mundo clássico, no termo latino humanitas,
que significa natureza humana, no sentido de uma natureza civilizada –
em oposição à bárbara. Embora às vezes costumava significar filantropia,
o termo foi mais frequentemente implantado para indicar o tipo de
discurso e educação que era adequado para um homem cultivado.
Foi no século XIX que o termo passou a
representar um conjunto de conotações mais complexas e até antagônicas à
religião, como explica Nick Spencer em The Evolution of the West.
Os pensadores franceses Saint-Simon e Auguste Comte chegaram a
desenvolver uma Religião da Humanidade, mais conhecida como Positivismo,
que buscava deificar a humanidade com base na razão.
O ápice dessa mentalidade se deu com a
Declaração Universal dos Direitos do Homem, preparada pela ONU em 1948.
Ela contém sete cláusulas que descrevem os “fundamentos do Humanismo
moderno”, que afirmam (em resumo) que o humanismo (1) é ético; (2) é
racional; (3) apoia a democracia e os direitos humanos; (4) insiste em
que a liberdade pessoal deve ser combinada com a responsabilidade
social; (5) é uma resposta à demanda generalizada por uma alternativa à
religião dogmática; (6) valoriza a criatividade artística e a
imaginação; (7) e é um sentido da vida visando a máxima realização
possível.
No núcleo do humanismo está,
evidentemente, a palavra, o conceito e um compromisso sério com o
“humano”. Os humanistas, tanto religiosos como ateus, falam sobre a
“dignidade”, o “valor” ou a “santidade” dos seres humanos, ou da vida
humana ou da “pessoa” humana. Na hora de justificar tais qualidades,
porém, a argumentação parece insatisfatória. Alegam que deve ser assim
“porque é melhor para todos”, ou “porque desejamos nos livrar do medo”,
ou “porque vivemos à sombra do mal”. Para Spencer, são explicações
admiráveis, mas filosófica e eticamente pouco convincentes.
Essa é ainda uma condição infeliz para
que o humanismo se encontre, sem uma razão sólida para estarmos
comprometidos com o valor da dignidade humana. Foi o ponto a que T.S.
Eliot se referiu quando apontou para a dependência do humanismo das
tergiversações da palavra “humano”. Se você remove da palavra “humano”
tudo o que a crença no sobrenatural deu ao homem, você pode vê-lo
finalmente como não mais do que um pequeno animal extremamente
inteligente, adaptável e malicioso. Os darwinistas sociais o veem
exatamente dessa forma.
Para Spencer, definir o ser humano é
difícil quando toda referência à transcendência – ou, no mínimo, a
qualquer percepção de transcendência – é removida. Por mais generosos
que possamos ser, certamente não é natural ou óbvio para os humanos
atribuir dignidade e valor a todos os seres humanos em todos os lugares,
independentemente da capacidade ou circunstância.
O critério para o valor de uma coisa não
é necessariamente o que ela pode fazer, como ela aparenta ou quantos
dela existem. Em vez disso, o critério primário de valor é simplesmente
se alguém a valoriza. O ursinho de pelúcia surrado da criança, a carta
de amor e a fotografia familiar em preto e branco têm valor porque a
criança, a amante ou a mãe estão profundamente apegadas a eles.
Uma coisa pode ter um valor, mas não faz
sentido dizer que tem dignidade. Dignidade é um atributo que damos
apenas aos humanos e às coisas que eles fazem. No entanto, dizer que um
humano tem dignidade é pressupor que ele ou ela também tem valor. É essa
compreensão do valor – alguém tem valor porque ele ou ela é valorizado
por outro – que está no coração da compreensão cristã da dignidade
humana, sendo o “outro”, nesse contexto, naturalmente Deus.
Se fôssemos atribuir valor apenas com
base nos comportamentos, na capacidade, ou em relação à produtividade ou
generosidade, nosso fracasso recorrente de viver de acordo com tais
padrões iria erodir esse valor. Em suma, seria uma maneira de mostrar
não o valor humano, mas a ausência de valor, justamente por nossas
constantes falhas e imperfeições. Para os cristãos, os seres humanos são
valorizados por Deus porque carregam em si a imago dei, o que
não depende de suas habilidades. O valor humano seria dependente então
não do quanto de amor nós damos, mas do quanto nós recebemos. Somos
amados por nosso Criador, logo, temos valor intrínseco.
Isso é profundamente importante para a
forma como nos tratamos. Pois, se tudo o que precede é verdade, sempre
que interajo com outra criatura que tenha a imagem de Deus, estou
interagindo com alguém que é amado completamente e permanentemente por
Deus. Suas capacidades e qualidades morais, ao mesmo tempo que são
relevantes para o seu papel na sociedade, não têm qualquer influência
sobre o seu valor intrínseco, que é determinado apenas por Deus.
A marca mais clara do humanismo da
Igreja primitiva foi encontrada não apenas no seu apoio aos pobres
pagãos, mas na atenção e no respeito que dava aos que estavam bem às
margens da vida. A igreja cristã primitiva mostrou um compromisso
ideológico e prático profundamente transformador para com a dignidade e o
valor humanos, um humanismo poderoso e determinado, que pode ter sido
repetidamente traído no tempo da cristandade, mas nunca foi
completamente perdido.
Os iluministas, como Kant, tentaram
mudar o paradigma para a capacidade racional do homem, usando o
argumento de que os seres humanos (exclusivamente) têm a capacidade de
uma agência racional, e é essa a capacidade de direcionar sua vontade
para seus próprios fins livremente escolhidos que justifica que “o homem
existe como um fim em si mesmo e não apenas como um meio para uso
arbitrário” dos outros. Uma vez que é uma natureza racional que faz de
você uma pessoa, é respeitando essa natureza em você que o outro
demonstra o devido respeito.
Mas e quanto àqueles que não possuem
capacidade racional? Eles não desfrutam de dignidade humana? E os bebês
que não desenvolveram ainda tal capacidade? E aqueles que sofreram algum
acidente e a perderam? E aqueles cujas doenças prejudicaram seu
raciocínio? Podem, então, ser tratados como animais, ou pior, como
simples objetos?
A própria Declaração ilustra o problema
dessa abordagem racionalista. É preciso confiar na “dignidade humana” e
ponto, sem compreender exatamente como. Essa foi a própria constatação
de pensadores envolvidos com o texto. Em países e culturas que
absorveram tais valores e princípios, talvez por inércia do
cristianismo, tudo bem, isso pode funcionar por um tempo. Mas e em
culturas que não dão o devido peso ao indivíduo? E os povos que não
internalizaram conceitos morais como esses, e acham, por exemplo, que o
infanticídio de bebês “defeituosos” é justificável em nome do
utilitarismo?
Poderíamos estar falando de povos
bárbaros, de indígenas selvagens, mas o próprio Ocidente secular caminha
nessa direção. As ideias de eugenia quase vingaram no passado, e estão
retornando com força. A Islândia, por exemplo, eliminou o “problema” da
Síndrome de Down com o aborto, e muitos ocidentais acharam o máximo,
bastante prático e eficiente. Se dá trabalho, se não é “perfeito”, então
é só matar, ora bolas! E tudo em nome do humanismo, o que é mais
perverso.
A utopia “racional” justifica atos
realmente bárbaros, como a Revolução Francesa mostrou em abundância. No
filme “A Praia”, com Leonardo DiCaprio, um grupo que pensa ter
descoberto a felicidade comunitária perfeita aumenta o som da música
para abafar os gritos de dor que chegam de um colega atacado por
tubarão. O show precisa continuar. Desacostumados com a imperfeição e em
busca da euforia perpétua, aquelas pessoas não mais compreendiam a
ideia de dignidade humana, vista como um fardo para seus anseios
racionais e egoístas.
O humanismo secular talvez funcione
relativamente bem enquanto houver gerações com valores cristãos
remanescentes. Mas como isso tem se deteriorado rapidamente na era
moderna, os fundamentos frágeis que sustentam a ideia de “dignidade
humana” sem o conceito de transcendência vão desmoronando, até se
perderem por completo.
O fundamento cristão para a “dignidade”
humana ou o “valor” inerente ao humanismo é mais robusto do que os
fundamentos ateístas comparáveis. Sem ele, conclui Spencer, o
compromisso do humanismo com a dignidade humana é mais fraco e talvez
até mesmo insustentável. Já não estamos observando os efeitos nefastos
desse “humanismo” puramente racional?
-----------------
* Rodrigo Constantino dos Santos é um economista e colunista
brasileiro. É graduado pela PUC-RJ e possui MBA pela Ibmec. Foi
articulista da revista "Voto"e escreveu regularmente para os jornais
"Valor Econômico" e "O Globo".
Fonte: http://www.gazetadopovo.com.br/rodrigo-constantino/artigos/crise-humanismo-secular/?utm_medium=feed&utm_source=feedpress.me&utm_campaign=Feed%3A+rconstantino
No texto houve muito espantalho. Primeiro, não há consenso algum sobre o dever de aborto entre humanistas. No máximo, vigora a análise contextual de cada situação. O autoritarismo feminista (por exemplo) se afasta do humanismo. Não é porque algo é secular ou dissociado da religião que é "humanista". Segundo que essa premissa de que sem a condição sobrenatural não sobra nada da "dignidade humana" é falsa.
ResponderExcluirDesde a antiguidade, seja no ocidente ou em outras culturais como China e índia, a ética sem bases sobrenaturalistas já vigorava entre pensadores. Desde o tratamento com outros seres vivos até na relações entre os próprios humanos. A ideia de dignidade humana é só um termo contingente. Ela quer dizer apenas que se livrando das visões sectárias apregoadas pelas religiões e seitas, junto do avanço das ciências, percebemos que há um caráter que unifica todas as pessoas. A raça, sexo, etnia etc são fatores vagos ao se identificar que todos estes seres (humanos) fazem parte da mesma espécie. Logo, qualquer espécie terá um zelo especial pela sua própria. E assim o universalismo se torna inevitável. A crença em deuses é absolutamente irrelevante para se estabelecer essa moral. O ponto do humanismo secular é meramente reconhecer na ciência, razão e bem estar os critérios chave para estabelecermos uma boa civilização. Claro, sempre analisando o contexto específico de cada pessoa ou cultura. Essa ideia de que os humanos são apenas egoístas sem prezo pelos demais é falso pelo próprio empirismo da realidade humana. Cooperação, empatia, amor e ajuda são partes da natureza humana tanto quanto violência, ódio, medo e fraqueza. É assim com outros primatas, e é assim também conosco.
O humanismo está em crise sim, eu diria, em especial devido o caráter conservador e nacionalista em que boa parte do mundo está direcionando. Mas humanismo é uma coisa, humanismo secular é outra. O humanismo secular nunca foi algo predominante em nenhum país ou civilização. E tem seu maior espaço em certos espaços das universidades, sites, blogs e vídeos no ocidente, mas fora disso é o humanismo independente do secular que vigora.
Constantino definitivamente já pode ser considerado um dos paladinos conservadores do nosso país.