TRANSE - Culto em igreja pentecostal nos EUA: experiências de devaneio
podem se expressar individual ou coletivamente
(Timothy Fadek/Corbis/Getty
Images)
Estudo de psiquiatras americanos conclui que ter algum tipo de crença —
religiosa ou não — costuma levar as pessoas a ouvir sons que não existem
Por
Filipe Vilicic
access_time 25 ago 2017
A heroína francesa Joana D’Arc (1412-1431), líder de seu país durante a
Guerra dos Cem Anos contra a Inglaterra e santa da Igreja Católica, dizia ouvir
vozes — mais de uma vez por semana — que a guiavam em suas estratégias
militares, invariavelmente ousadas. Para os fiéis, o fenômeno alimentaria sua
íntima ligação com Deus, revelada ainda na infância. A ciência, no entanto,
acaba de acenar com outra explicação para o fato. “Figuras históricas, como
Joana D’Arc, talvez sofressem de alucinações, que, embora sejam comuns — em
média, uma em cada vinte pessoas apresenta esse sintoma —, são associadas por
alguns a experiências espirituais”, disse a VEJA o psiquiatra americano Philip
Corlett, professor da Universidade Yale, nos Estados Unidos. Corlett coordenou
um estudo, publicado no início deste mês, cujo objetivo era justamente provar
como os seres humanos são suscetíveis a alucinações, ou seja, “percepções sem
estímulos externos”, quando possuem alguma crença, qualquer crença. Na maioria
das vezes de cunho religioso, mas nem sempre.
Os indivíduos costumam ser suscetíveis a enganos, imaginando, por
exemplo, que ouviram algo, mesmo em meio ao mais absoluto silêncio. E tal coisa
ocorre — é bom frisar — não apenas em casos de vivências místicas. “A pessoa
pode sentir o celular tocar no bolso, quando, na verdade, ele permaneceu mudo.
Isso acontece porque se crê que alguém estaria prestes a ligar”, explicou Corlett.
Na pesquisa de Yale realizou-se um teste em que voluntários foram divididos em
quatro grupos, com cerca de quinze pessoas cada um. Num desses times,
incluíram-se somente indivíduos que haviam sido diagnosticados com alguma
doença psicótica, circunstância que os levava a ouvir sons inexistentes. Em
outro grupo ficaram aqueles que sofriam de algum distúrbio psíquico, porém não
escutavam vozes; no terceiro, pessoas completamente saudáveis; e, por fim,
apenas indivíduos que não tinham sido clinicamente diagnosticados com nenhum
problema de natureza psicológica mas declaravam ter alucinações auditivas e as
atribuíam a experiências místicas, espirituais ou religiosas. Durante o
experimento, por meio da repetição, os cientistas levavam os voluntários a
acreditar que poderiam ouvir estímulos sonoros específicos toda vez que vissem
uma luz. Ocorre que nem sempre os sons eram ativados. A intenção era detectar
se as pessoas iriam notificar que haviam ouvido o barulho, mesmo sem ele
existir.
CRUZ E ESPADA – Joana D’Arc (em cena de filme de 1999): militarismo
celeste? (//Reprodução)
O trabalho pilotado por Corlett não é exatamente original. Ele se baseou
em um teste similar realizado há 125 anos também em Yale. A diferença crucial é
que, desta vez, foi possível analisar, por meio de ressonância magnética, o que
ocorria no cérebro das pessoas durante o estudo. Conclusão: as que mais ouviram
sons inexistentes estavam no primeiro grupo (dos psicóticos) e no último (dos
místicos). Naturalmente, o resultado do primeiro grupo era esperado, mas o do
último foi uma surpresa. Corlett definiu, assim, que alucinações são mais
frequentes entre indivíduos que já possuem crenças — o que poderia justificar,
por exemplo, os devaneios da heroína Joana D’Arc.
Existem alucinações inofensivas, claro. O problema está naquelas que
representam autênticas ameaças, caso das que levam pessoas a cometer atos
indevidos, supostamente ordenados por vozes do além. Nos idos de 1970, por
exemplo, o americano Marshall Applewhite (1931-1997) fundou, ao lado da
companheira Bonnie Nettles (1927-1985), a seita Portão do Paraíso, após alegarem
ter visto alienígenas que lhes disseram que eles eram profetas de Cristo. Uma
das crenças do culto era que a Terra estaria prestes a ser “reciclada” e que a
única saída seria deixar o planeta. Em março de 1997, Applewhite convenceu 38
seguidores a acompanhá-lo no suicídio, dizendo que assim seriam
teletransportados para um óvni que lhes garantiria a entrada no paraíso
cristão. Pelas conclusões do estudo de Yale, ele devia sofrer de delírios
motivados por suas crenças.
É curioso notar, entretanto, que, em geral, alucinações que levam à
prática de atos violentos são com frequência associadas, popularmente, a
indivíduos não crentes. Uma pesquisa, publicada em junho por cientistas de
diversas nacionalidades, com 3 000 indivíduos de treze países, perguntou se
eles achavam que um serial killer fictício, cujas ações imaginárias eram
descritas pelos cientistas, seria ateu, ou se essa condição seria irrelevante.
Resultado: 60% apostavam que se tratava de um ateu. Ao mesmo tempo, os
pesquisados foram indagados se o mesmo serial killer poderia ser um religioso,
e só 30% responderam afirmativamente. Há, na conclusão desse levantamento, uma
percepção muito comum: a de atribuir a boa postura moral à religião, como se o
apego a crenças sobrenaturais fosse condição para o bom comportamento em
sociedade. Nesse caminho, a moral seria filha única da fé religiosa. Não é bem
assim. O que o conjunto das pesquisas mostra é que os bons e os maus podem
tanto estar entre os crentes como entre os ateus, sendo que os primeiros têm
maior inclinação a alucinações auditivas.
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Com reportagem de Carla Monteiro
Publicado em VEJA de 30 de agosto de 2017, edição nº 2545 pg. 82 e 83
http://veja.abril.com.br/revista-veja/a-fe-move-alucinacoes/
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