"A grande mensagem é que a vida custa dinheiro. As pessoas têm de
pagar por uma forte educação e por um sistema de saúde. Países não
desenvolvidos terão de fazer escolhas, mudanças em suas posições e
investir no futuro. Será um longo processo."
Especialista sênior em educação do Fundo das Nações Unidas
para a Infância (Unicef), o britânico Dominic Richardson, de 41 anos,
atua desde 2015 no Innocenti, o departamento da entidade dedicado a
estudos sobre as relações entre educadores, escolas e as condições de
vida das crianças. Ele foi um dos convidados para debater as conclusões
do estudo global “Crianças na Terceira Idade – Uma visão de longo prazo
para a saúde e o bem-estar”, realizado pela Economist Intelligence Unit
(EIU) e apresentado recentemente em Frankfurt, na Alemanha. Para
Richardson, a geração que nasce hoje com a expectativa de viver mais de
cem anos – algo inédito na história da humanidade –, está ameaçada de
sofrer com a falta de acesso à saúde e à educação de qualidade em todo o
mundo. Na entrevista a seguir, ele diz que o bem-estar das crianças é a
grande preocupação da atualidade e propõe ações dos governos, das
escolas e dos pais para mudar esse cenário.
É possível afirmar que as crianças que nascem hoje viverão cem anos ou mais?
É uma grande ambição. O aumento na expectativa de vida depende de
fatores como o avanço da ciência e o desenvolvimento social. Muitas
nações não possuem um sistema de saúde que atenda a todas as parcelas da
população. Por isso, viver até os cem anos não será uma realidade
possível para todas as pessoas.
As instituições estão preparadas para absorver as demandas dessa longevidade?
As oportunidades de desenvolvimento foram muito diferentes nos
últimos anos. A geração que viver por mais tempo enfrentará muitos
desafios, e as instituições não estão preparadas para atender as
necessidades de saúde, educação e bem-estar que se projetam para os
próximos tempos. Elas não estavam preparadas nem para atender as
gerações anteriores. Em países como o Brasil, manter um convênio de
saúde é muito custoso. Os hospitais não conseguirão absorver toda a gama
de pessoas que precisará desses serviços. As pessoas não terão recursos
para arcar com os custos da saúde. Será preciso pensar em soluções para
problemas que nunca foram solucionados. Precisamos de mais hospitais. O
nível de mortalidade ainda é muito alto em muitos países do mundo.
Como melhorar a expectativa de vida em nações subdesenvolvidas?
Investindo em igualdade. Ao melhorar as oportunidades haverá aumento
na expectativa de vida. Se o Brasil tivesse melhores escolas, melhores
condições de saúde e um maior nível de engajamento dos pais na vida das
crianças, a expectativa de vida seria melhor. A desigualdade gera baixos
níveis de educação e afeta a relação entre pais e filhos. Estudos
mostram que em regiões mais pobres do Brasil há maiores índices de
gravidez. Às vezes, crianças repetem comportamentos dos pais. Se um
deles fuma por anos, provavelmente a criança tende a repetir esse
comportamento e se tornar um fumante. Alguns pais mais participativos
podem ser a chave para que as crianças se desenvolvam melhor. As escolas
também deveriam fazer campanhas massivas para prevenção de doenças. O
engajamento entre escolas e responsáveis poderia ser um bom caminho.
O contexto social influencia a educação das crianças?
Sim. Na América Latina, por exemplo, crianças assistem às aulas
estressadas por causa da violência. As escolas precisam ser seguras. Se
não forem, as crianças não irão às aulas. Sem ir às aulas, elas não
aprendem. A violência fecha as escolas. As crianças de algumas regiões
do mundo sentem medo de sair de casa. Em termos de educação, a segurança
é muito importante. Em termos de saúde, a insegurança gera uma condição
de estresse. É uma situação muito frequente em favelas, em áreas
dominadas por conflitos ou pelo tráfico. Para aprenderem bem, crianças
precisam ao menos ter o trajeto casa-escola assegurado – e hoje isso não
é possível. A segurança deveria ser a principal preocupação das
escolas.
Como o senhor avalia as políticas de bem-estar social nas escolas em países em desenvolvimento?
As evidências mostram que o grande problema é a continuidade, porque
essas iniciativas não são avaliadas ou monitoradas sistematicamente. No
longo prazo, ter escolas e um ambiente seguro significa progresso
social. A chave está em educar e prover trabalho, segurança e saúde para
as novas gerações. Quando temos todos esses elementos significa que a
sociedade vive um processo evolutivo. Na Alemanha, por exemplo, não se
fala em violência nem em gangues nas escolas. O Brasil é um país rico,
mas há um nível de desigualdade profundo que impede a evolução do
bem-estar social. Não se pode pensar somente em políticas contra a
violência, mas também em como criar um sistema de prevenção eficiente.
Os pais estão preparados para criar essa nova geração do ponto de vista da educação e da saúde?
Muitos pais são céticos sobre a qualidade do sistema de saúde e
educação nas escolas. É importante, porém, trabalhar conceitos de
educação e saúde fora dos centros de ensino. Em casa, os pais são
importantes influências na vida das crianças para dar suporte à
educação, e isso pode ser um grande diferencial. Alguns comportamentos
saudáveis também podem ser passados para os filhos. Quanto antes esse
tipo de influência for praticada dentro de casa, mais interessante será
conscientização da criança para a saúde.
Apesar da expectativa para uma vida com mais de cem anos, ainda
existem altas taxas de mortalidade infantil. Quais os fatores que ainda
levam a isso?
O sedentarismo e a obesidade colaboram para aumentar as taxas de
mortalidade infantil, aumentam a incidência de diabetes e doenças
cardiovasculares. As crianças sofrem com a falta de qualidade dos
alimentos. A má nutrição também é um problema. É preciso pensar em como
melhorar a segurança alimentar, incentivar a prática de exercícios e
esportes nas escolas. Por um lado, existem países como a África do Sul
sofrendo com a desnutrição e por outro, países como os Estados Unidos,
com um elevado número de pessoas acima do peso. Existem altos níveis de
obesidade nos EUA, Canadá e Reino Unido. Na maioria dos casos, as
populações apenas compram alimentos processados, baratos e de má
qualidade.
No caso de países emergentes, como o Brasil, como o senhor avalia o processo de desenvolvimento social?
O Brasil conseguiu dar alguns passos na direção certa com o programa
Bolsa Família. As condições de acesso às escolas melhoraram. O programa
conseguiu prover o acesso à escola, mas, em termos de qualidade, o salto
ainda não foi suficiente. O Brasil deveria continuar criando programas
para investir em pessoas. É evidente que existem diferentes condições em
diferentes estados brasileiros, mas é preciso melhorar a qualidade da
educação nacionalmente. É preciso criar uma segunda fase do Bolsa
Família, uma segunda política de assistência social. Nos países mais
desenvolvidos, os sistemas dão ênfase à educação e à saúde e investem em
estrutura sociais.
Qual o papel do Estado nessa agenda?
Os países precisam investir em políticas sociais e em capital humano
para promover a igualdade. As campanhas de comunicação voltadas para
crianças e adolescentes precisam ser mais bem direcionadas e atrair mais
a atenção do público-alvo. Elas são necessárias, mas sozinhas não serão
suficientes. No sistema público de saúde é preciso promover
oportunidades para quem não pode arcar com os gastos. Em relação à
educação, a solução passa pelo treinamento de educadores. O primeiro
passo é conscientizar e convencer os governos a investir recursos e
regulamentar políticas de saúde e educação com impactos positivos.
As crianças conseguem imaginar o próprio futuro?
Crianças são muito criativas. Mas é importante ressaltar que não
existe igualdade de condições entre muitos países. Não acho que as
crianças tenham boas condições no futuro. Se nada for feito, a
desigualdade continuará . Algumas crianças não têm chances de viver nem
metade de cem anos. Outras não conseguem sequer ir às escolas por
questões de segurança. Assim, ficam ainda mais distantes das condições
ideais de desenvolvimento.
Televisão, jogos eletrônicos e redes sociais influenciam o estilo de vida das crianças. Como usar esse potencial?
Trata-se de um grande desafio para pais e educadores. Os jovens
utilizam esses espaços muito bem. O espaço online gerou muitas
oportunidades, chances para melhorar o aprendizado e estimular a
criatividade. Existem muitos pontos positivos nessas formas de
entretenimento. Mas existem aspectos considerados perigosos nessas
atividades, como o bullying, que se propaga rapidamente nas redes. Para
lidar com esses pontos negativos, o primeiro passo é engajar todos –
pais e educadores – para usar essas ferramentas. Estamos fazendo um
trabalho com crianças da Argentina, em que elas mesmas falam sobre
podemos aproveitar e conhecer melhor esse espaço. Mas ainda é algo que
precisa funcionar melhor como uma ferramenta de inclusão e para melhorar
a qualidade da educação.
O estudo “Crianças na Terceira Idade” afirma que as crianças que
nascem hoje terão menos saúde aos 65 anos do que a geração atual nessa
faixa etária. Esse é o grande problema que enfrentamos?
A saúde das crianças é o grande problema da atualidade. É preciso
prestar mais atenção às necessidades demandadas por elas. Há 30 anos,
fazíamos a mesma pergunta sobre onde falhamos e quase nada mudou. Não
acredito que conseguiremos evoluir na proteção à saúde das crianças até
que cheguem aos 65 anos. Atualmente, esse cuidado ainda é muito
superficial, sem a devida atenção.
Como enfrentar esse desafio nos próximos anos?
A grande mensagem é que a vida custa dinheiro. As pessoas têm de
pagar por uma forte educação e por um sistema de saúde. Países não
desenvolvidos terão de fazer escolhas, mudanças em suas posições e
investir no futuro. Será um longo processo. Ou enfrentam isso ou as
consequências serão drásticas. Eles precisam consertar o telhado. O
mundo não está preparado para que as pessoas vivam mais de cem anos. Os
sistemas não estão preparados para atender a essas demandas, para
oferecer cobertura. O mundo precisa de igualdade. As crianças não
escolhem onde irão nascer, por isso seus direitos precisam ser
respeitados. A pobreza continua latente e são necessários programas que
interrompam esse ciclo.
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Reportagem por: Fabíola Perez, de Frankfurt, Alemanha
Edição 04.08.2017 - nº 2486
Fonte: http://istoe.com.br/nao-estamos-preparados-para-viver-100-anos/
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