Juremir Machado da Silva*
PINTURA CUBISTA: Picasso / Factory in horta de Ebbo
Quem não se sente, vez ou outra, dilacerado sem que nada esteja
acontecendo ou talvez justamente por isso? Quem não se sente rasgado por
dentro, corroído por uma insatisfação sem motivo, disposto a largar
tudo, mulher e filhos, emprego e projetos, conta bancária e Netflix,
para viver novas e improváveis emoções? Quem não se vê no espelho
deformado como um quadro cubista, a imagem estilhaçada, o corpo
esquartejado, a alma partida? Quem não se vê e não se culpa por essas
ideias malsãs, esses delírios imorais, essas viagens imóveis?
Num minuto, eterno como a desesperança, a pessoa quer enterrar o
cotidiano, cortar laços essenciais, mudar o que lutou para construir,
desatar o nó amarrado ao longo de uma vida de sonhos e de combates. No
outro, contraditório como todo ser humano que não se blindou contra as
batidas do coração e o fluxo sanguíneo, agarra-se ao seu pequeno grande
mundo como quem se apega ao último fiapo de luz na escuridão do futuro.
Há os que rompem e se arrependem, há os que jamais rompem e se
arrependem, há os que nunca se arrependem, esses talvez sejam os mais
perigosos, esse talvez seja o maior perigo dentro de nós. Vivemos em
sociedades que estimulam o desejo de ruptura e cultuam a novidade.
Estamos preparados para isso? Somos diariamente chicoteados com as
emoções alheias mais hiperdimensionadas. Ou delegamos às celebridades a
vivência do que nos escapará como um devaneio ou nos jogamos no abismo
das expectativas em tom de pesadelo. Ou sabiamente aprendemos a não
viver sem desejos, mas também a não nos deixar dominar por desejos que
escravizam com preço em lugar de valores. A doença da nossa época é a
depressão. Como não se deprimir num mundo que exige de nós agilidade,
desempenho, mudança permanente e sucesso total? Como não titubear diante
de uma máquina de comparações impiedosas? Entramos de fato na era da
obsolescência programada e descobrimos que o ser humano é o mais
perecível dos “objetos”.
Quem não acorda no meio da noite acossado por perguntas que antes
pareciam meramente retóricas e assustam como espectros
impressionantemente realistas e palpáveis: por quanto tempo ainda vou
servir? Já sou ultrapassado? Tenho condições de me atualizar? Quando
serei descartado? Quando os jovens arautos da antiga modernidade, essa
ideologia do novo, me declararão superado e me enviarão para o depósito
dos seres inservíveis como um 386 ou um Classic da Apple?
Quem não rumina saídas, retiradas estratégicas, projetos de
autonomia, um sítio, uma pousada, uma casa na praia, um café e até uma
livraria?
Quem não se sente como um dependente vivendo um dia depois do outro
na esperança de nunca recair? Quem não se sente como um belo vaso
rachado, uma porcelana cuja pintura vai perdendo a intensidade, uma
aquarela cuja paisagem vai se tornando uma simples evocação? Eu me sinto
assim certos dias sem sol ou sem manchetes de derrubar governo. Tenho
arroubos de metamorfose, surtos de mutação, anseios de transformação.
Vou do inseto de Kafka a borboletas azuis. Num átimo.
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* Sociólogo. Prof. Universitário. Escritor. Colunista do Correio do Povo
Fonte: http://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/2017/08/10177/ditadura-da-novidade/
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