“‘Eles’, os empobrecidos, poderão dar um passo à frente somente se
‘nós’ soubermos dar um passo atrás, concebendo
um ‘nós’ mais amplo e
mais verdadeiro.
Caso contrário, poderemos até construir
um mundo verde,
mas ele terá
o rosto cruel do apartheid.”
A opinião é do ativista italiano Francesco Gesualdi, coordenador do Centro Nuovo Modello di Sviluppo e um dos fundadores, junto com Alex Zanotelli, da Rede Lilliput. O artigo foi publicado por Avvenire, 02-08-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Se não bastassem os rios em seca e as chuvas que não caem há meses
para nos fazer entender que o planeta está entrando em colapso sob o
peso dos nossos excessos, a confirmação nos vem do Overshoot Day,
literalmente, o “dia da ultrapassagem”, o indicador que nos assinala o
momento do ano em que entramos em déficit em termos de recursos.
Uma tendência que se agrava de ano em ano, considerando-se que, desde
que começamos a monitorar o fenômeno, não fazemos nada mais do que
retroceder, até chegarmos, este ano, ao dia de hoje: 2 de agosto.
"60% da pegada ecológica da humanidade é determinada
pela absorção de dióxido de carbono."
Estamos falando da pegada ecológica
que mede a quantidade de terra fértil de que precisamos para sustentar o
nosso consumo. E se, instintivamente, somos levados a pensar que a
terra fértil nos serve apenas para o alimento, na realidade, o consumo
que afunda as suas raízes na terra fértil
é muito mais amplo. Basta roupas no vestuário que utiliza algodão, na
mobília que utiliza madeira, nas construções que ocupam solo, nos
remédios que usam plantas medicinais.
Mas o aspecto surpreendente é que precisamos de terra fértil até para
andar de carro ou para ligar uma lâmpada. Muitas vezes, esquecemo-nos
de que, quando enfiamos a chave na ignição, junto com o rugido do motor,
emitimos dióxido de carbono, uma substância útil e necessária, mas não
em excesso, e na qual não pensamos, só porque a Mãe Natureza sempre soube regulá-la graças à atividade das plantas. Mas devemos lembrar que 60% da pegada ecológica da humanidade é determinada pela absorção de dióxido de carbono.
"Produzimos a cada ano 36 bilhões de toneladas
de dióxido de carbono, enquanto o sistema das florestas e dos oceanos
é
capaz de absorver 20 bilhões."
Em nível terrestre, a terra fértil disponível sob a forma de
pastagens, florestas, terras aráveis totaliza 12 bilhões de hectares,
mas o consumo alcançado pela humanidade requer 20 bilhões deles. Um
déficit de 8 bilhões de hectares que o Overshoot Day representa
por meio do calendário: atestado que, a cada dia, precisamos de 54
milhões de hectares de terra fértil, isso nos indica o dia do ano em que
entramos na zona negativa, porque esgotamos toda a terra fértil de que a
Mãe Terra dispõe.
Um limite que alcançamos, a cada ano, alguns dias antes: em 1987, no
dia 19 de dezembro; em 2009, 25 de setembro; em 2017, 2 de agosto. Os
dias do ano em que vivemos sem correspondente de terra fértil já são
150, 40% de todo o período. Palavra do instituto estadunidense Global Footprint Network.
Como é possível consumir além da capacidade produtiva da terra parece
ser um enigma inexplicável, ainda mais que nunca temos a percepção de
ficar sem produtos naturais. Mas, paradoxalmente, o desequilíbrio não se
manifesta sob a forma de penúria, mas sim, justamente, de excesso. O
problema diz respeito ao dióxido de carbono, que, há várias décadas,
emitimos além da capacidade de absorção do sistema natural, com um
consequente acúmulo na atmosfera. Mais precisamente, produzimos a cada
ano 36 bilhões de toneladas, enquanto o sistema das florestas e dos
oceanos é capaz de absorver 20 bilhões, um saldo negativo anual de 16
bilhões de toneladas que, acumulando-se na atmosfera, contribui para o
aumento da temperatura terrestre, com graves consequências sobre o clima.
"Hoje, os deslocados por desastres naturais já são
em torno de 20 milhões por ano, mas, até 2050,
poderiam se tornar 150 milhões"
A humanidade produz dióxido de carbono desde que conhece o fogo, mas
apenas desde que teve acesso aos depósitos de gás e petróleo é que ela
começou a produzi-lo de maneira insustentável. Basta dizer que, de 1870
até hoje, a concentração de dióxido de carbono na atmosfera aumentou
mais de 40%, passando de 288 para 400 partículas por milhão.
As consequências sobre o clima ainda não são totalmente previsíveis,
mas já são o suficiente para prever cenários pesados e até mesmo
apocalípticos: desertificação, furacões, aumento do nível dos mares.
Fenômenos com repercussões profundas sobre a produção de alimentos,
sobre o habitat, em uma palavra, sobre a segurança de vida de grandes
camadas da população mundial, que serão forçados a emigrar para
encontrar salvação.
Hoje, os deslocados por desastres naturais já são em torno de 20 milhões por ano, mas, até 2050,
poderiam se tornar 150 milhões. Um fenômeno que ninguém sabe como
deter, mas que alguns poderosos “estrategistas” pensam em resolver com
as armas. Por isso, eles também se ocupam com as mudanças climáticas, para entender para onde e quando apontar os canhões.
O drama da situação é que colocamos o mundo de cabeça para baixo, não
para garantir a dignidade de todos, mas o bem-estar de poucos, até o
desperdício. E é novamente a pegada ecológica que nos
diz isso. Se dividimos os 12 bilhões de hectares de terra fértil
disponível pela população terrestre, descobrimos que cada indivíduo tem à
sua disposição 1,7 hectare de terra fértil.
"Se todos os habitantes do mundo vivessem
como
os cidadãos de Luxemburgo, seriam necessários nove planetas, e se
vivessem como os italianos, seriam
necessários dois e meio."
Esta é a pegada que ninguém deveria ultrapassar, para ficar em
equilíbrio com a natureza. Na realidade, apenas 3% da população mundial
se mantêm nessa linha, enquanto 54% estão acima, e 43%, abaixo. Os
eritreus, por exemplo, têm uma pegada de 0,4 hectare, e os bengalis, de
0,7. No lado oposto, a pegada dos luxemburguenses é de 15,8 hectares,
enquanto a dos australianos é de 9,3, dos estadunidenses, de 8,2, dos
italianos, 4,6. Em conclusão, os luxemburguenses consomem nove vezes
mais do que poderiam, os estadunidenses, cinco vezes mais, e os
italianos, duas vezes e meia.
Em outras palavras, se todos os habitantes do mundo vivessem como os
luxemburguenses, seriam necessários nove planetas, e se vivessem como os
italianos, seriam necessários dois e meio.
Nós não temos nenhum planeta de sobra. Temos apenas um e, com este
único planeta, devemos enfrentar dois grandes desafios expressados
também pelo Papa Francisco na sua encíclica Laudato si’: permitir que os empobrecidos subam de novo a ladeira, o mais rápido possível, e deixar aos nossos filhos um planeta habitável.
"Os três bilhões de empobrecidos têm direito a
viver melhor, mas a sua estrada está bloqueada enquanto os habitantes do
Norte do mundo, já não mais do que 15% da população mundial,
continuarmos utilizando pelo menos 75% dos recursos planetários e 40% da
terra fértil disponível."
Para isso, não é mais suficiente nos ocuparmos apenas com regras
econômicas, comerciais e financeiras que determinam a estrutura
distributiva da riqueza. Devemos nos ocupar também com estilos de vida
para identificar formas de produção e de consumo mais sustentáveis. Os
três bilhões de empobrecidos têm direito a viver melhor, mas a sua
estrada está bloqueada enquanto nós, habitantes do Norte do mundo, já
não mais do que 15% da população mundial, continuarmos utilizando pelo
menos 75% dos recursos planetários e 40% da terra fértil disponível.
A conclusão é que “eles” poderão dar um passo à frente somente se
“nós” soubermos dar um passo atrás, concebendo um “nós” mais amplo e
mais verdadeiro. Caso contrário, poderemos até construir um mundo verde,
mas ele terá o rosto cruel do apartheid.
-------
Fonte: http://www.ihu.unisinos.br/570252-estilos-de-vida-mais-sustentaveis-para-ajudar-os-empobrecidos-e-a-terra-artigo-de-francesco-gesualdi
Nenhum comentário:
Postar um comentário