"Os projectos
políticos que não se alicerçam, de forma mais ou menos reflectida, numa
interrogação filosófica sobre a criação humana da sociedade tendem
declaradamente para a monstruosidade, ou, pelo menos, para uma pobreza e
para uma rigidez esquemática que não se recomendam."
Nem a liberdade individual se defina por oposição ao Estado, nem o Estado supõe a anulação desta. Mas os projectos políticos tendem a encaminhar-se para os extremos, conduzindo a situações patológicas
Não digo que seja a chave para o que quer que seja, mas se
quisermos reflectir um pouco sobre o estado presente da nossa sociedade
não é inútil pensar um pouco nas infinitas formas que as sociedades
tomaram ao longo dos tempos, nas várias crenças que adoptaram, nas
instituições que criaram, na maneira como a si mesmas se imaginaram, nos
símbolos que escolheram para si. O espectáculo que encontramos é um
pouco o do botânico que atravessa uma selva luxuriante. Há o terrível e
há o maravilhoso e há muitas vezes o terrível indistinguível do
maravilhoso. Encontranos astecas e súbditos de faraós, senadores romanos
e profetas armados, decências vitorianas e monstruosidades
totalitárias. Uma coisa é certa: tudo isso é criação humana, algo que o
filósofo francês de ascendência grega Cornelius Castoriadis pensou
talvez melhor e mais radicalmente que ninguém.
Serei o último a recusar qualquer pertinência à distinção entre
direita e esquerda. Precisamos de opor para pensar e para nos
orientarmos no pensamento, como lembrava Fernando Gil, e o pensamento
político, mesmo o mais imediato e circunstancial, não escapa a esta
condição geral. Mas, ao mesmo tempo, é uma oposição que tende a recalcar
algo de essencial. A verdadeira interrogação sobre a natureza da
sociedade não é, não pode ser, nem de “esquerda” nem de “direita”,
contrariamente à pretensão de muita gente. Os projectos políticos, esses
sim, deixam-se em parte definir em tais termos. Mas os projectos
políticos que não se alicerçam, de forma mais ou menos reflectida, numa
interrogação filosófica sobre a criação humana da sociedade tendem
declaradamente para a monstruosidade, ou, pelo menos, para uma pobreza e
para uma rigidez esquemática que não se recomendam.
Olhando à nossa volta, encontramos gente que, para retomar a
distinção célebre de Tocqueville, é dominada pela “paixão da liberdade” e
gente em que a “paixão da igualdade” é dominante. É muito duvidoso que
sejam paixões naturais e universais. São, com toda a probabilidade,
paixões que nascem no contexto de uma certa tradição – a nossa, a
ocidental – e que têm, assim, uma raiz comum. O que, à sua maneira,
significa que não são incompatíveis uma com a outra. Pessoalmente, e sem
querer cair em magias dialécticas, sempre me pareceu que a liberdade
não sobrevive sem uma certa forma de igualdade e que a igualdade
rapidamente desaparece se não se encontrar acompanhada de alguma figura
de liberdade. Não creio, de resto, que seja um pensamento excessivamente
original: a maior parte das pessoas pensa assim.
Resta que a instrumentalização política dessas paixões, aquela
exactamente levada a cabo pelos projectos políticos que silenciam
qualquer reflexão efectiva sobre a natureza da sociedade, conduz a uma
sua absolutização que impede que entre elas se forme qualquer aliança.
Resulta daí o nascimento de concepções de justiça radicalmente
incompatíveis entre si que formam o núcleo mais duro da oposição entre
direita e esquerda. As concepções da justiça são já de si naturalmente
plurais e não há filósofo algum que subscreva, de Platão a Rawls, o
pensamento de um outro nessa matéria, um fenómeno que não se encontra
com um peso equivalente em matérias relativas ao conhecimento ou até em
questões estéticas. Mas quando o problema da justiça se encontra
absorvido pelos projectos políticos que silenciam a questão da origem da
sociedade essa pluralidade transforma-se numa oposição rígida e
esquemática. Para uns, a justiça coloca a liberdade no seu centro. Para
outros, a igualdade.
Nas nossas sociedades, essa oposição forte fornece o assento ao
conflito entre liberalismo e estatismo, que é provavelmente a forma mais
aparente da oposição entre direita e esquerda. Mais uma vez, trata-se
de uma radicalização de algo que pode e deve ser pensado sem conduzir a
posições extremas. Nem a liberdade individual é algo que se defina por
oposição ao Estado, nem o Estado supõe a anulação desta. Acontece no
entanto que os projectos políticos tendem a encaminhar-se para os
extremos, conduzindo a situações patológicas. E há patologias da
liberdade e patologias da igualdade.
Estas questões não se colocariam se fossemos astecas ou súbditos de
Amenófis IV. Colocam-se (felizmente) a nós. E por isso o juízo político e
a deliberação política devem buscar as soluções menos patológicas, que
são aquelas que mantêm viva, por mais precária que seja essa vida, a
interrogação sobre a natureza da sociedade como criação humana e a
reflexão sobre a justiça. Com toda a probabilidade, o grau de nocividade
das patologias varia com o tempo e a situação histórica. Em certas
situações, aquilo que o filósofo conservador Roger Scruton chamou um
desprezo quase nietzschiano pelos que são dependentes é mais nocivo.
Noutras, é mais nocivo o projecto de uma sociedade constituída por uma
massa de dependentes do Estado.
Se quisermos recorrer ao vocabulário da “esquerda” e “direita”, como
temos de o fazer no dia-a-dia, é muito verosímil que aquilo que se chama
“direita” ofereça hoje em dia concepções menos patológicas da sociedade
do que aquilo que se chama “esquerda”. A direita evoluiu, a esquerda,
pelo contrário, regrediu. A direita pensa de forma menos extremada a
relação entre o indivíduo e o Estado do que a esquerda e a possibilidade
de pensar a justiça social que a direita oferece encontra-se mais
próxima de uma concepção pluralista desta do que aquela que a esquerda,
mais rígida, permite. O estatismo (e, vá lá, o “amor pela cultura”)
tornou-se quase a marca única da esquerda. A direita define-se de forma
mais variada e matizada. Dito de outra maneira: faz menos mal à
sociedade. Terá de ser sempre assim? Duvido. Mas no momento presente é,
parece-me, assim.
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OBS. Texto em português de Portugal.
*Nasci a 18 de Maio de 1960.
Licenciei-me em Filosofia pela Faculdade de Letras da Universidade do
Porto e doutorei-me, também em Filosofia, pela École des Hautes Études
en Sciences Sociales, Paris. Sou professor no Departamento de Filosofia
da Faculdade de Letras da Universidade do Porto e investigador no
Instituto de Filosofia da mesma Universidade. Publiquei, entre outros
livros, Impasses,
seguido de Coisas vistas, coisas ouvidas, em colaboração com Fernando
Gil e Danièle Cohn (Europa-América), O Essencial sobre Fernando Gil
(Imprensa Nacional/Casa da Moeda), O pensamento e os seus objectos.
Maneiras de pensar e sistemas filosóficos (Edições da Universidade do
Porto) e As questões que se repetem. Uma breve história da filosofia, em
colaboração com Alexandra Abranches (D. Quixote). Na imprensa,
colaborei regularmente, entre outros lugares, na revista Atlântico
(2005-2008) e no jornal i (2009-2010).
Fonte: http://observador.pt/opiniao/patologias-da-sociedade/ 03/07/2017
Imagem da Internt
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