Um dos escritores cubanos mais conhecidos no mundo, autor de
“O homem que amava os cachorros” e dos quatro romances de “Estações
Havana”, publicado no Brasil pela Boitempo, “Passado perfeito”, “Ventos de quaresma”, “Máscaras” e “Paisagem de outono”, Leonardo Padura, 61 anos, esteve em Porto Alegre como palestrante
do ciclo Fronteiras do Pensamento.
Descontraído, deu entrevista ao Caderno de Sábado.
(Juremir Machado da Silva)
Caderno de Sábado – O senhor falou recentemente sobre o poder
da literatura. Existem ainda livros perigosos e que podem mudar o
mundo?
Leonardo Padura – Não sei se conseguem mudar o
mundo. Os grandes livros que fizeram isso não foram os de ficção. Foram a
Bíblia, o Corão ou O Capital. Mas existem livros que mudam bastante a
mente das pessoas. Obras que afetam os conhecimentos históricos ou dos
sentimentos. Alguns livros podem ser perigosos para bem ou mal. Alguns
são muito superficiais, mas têm capacidade de penetração como os
best-sellers de Dan Brown ou “50 tons de cinza”. Outros fazem pensar.
Quando li pela primeira vez “1984”, de George Orwell, fiquei
profundamente comovido. Há uns oito anos, quando li “Vida e destino”, de
Vassili Grossman, também me emocionei. Há, entendo eu, livros que podem
ajudar a mudar as pessoas, transformar os seus leitores.
CS – Vivemos uma época de transição tecnológica. Qual será o
futuro do texto escrito e dessas histórias capazes de mudar as pessoas?
Padura – Nas feiras de livros do mundo inteiro os escritores que mais fazem sucesso são os youtubers.
É gente jovem que escreve para internet. Não sei esses jovens leitores
se transformarão em leitores adultos. Quando eu era criança se começava a
ler por clássicos que transmitiam um sentido ético da vida: “O conde de
Monte Cristo”, “O Corsário negro”, as histórias de Jules Verne, mais
tarde a “Odisseia”. Tudo isso contribuía para a nossa formação. São
muitas as transformações em curso. Pessoalmente passei a ter problema
para conservar uma imensa biblioteca com livros que talvez não volte a
ler. Há cinco ou seis anos as editoras de impressos tiveram o pior
momento. Já houve uma recuperação. Pelos próximos 20 anos haverá
convivência entre o livro tradicional e o digital. Por fim, o digital
vencerá por razões econômicas, culturais, logísticas. A questão é: o que
vai acontecer com o mercado do livro? Se ele deixar de funcionar como
agora será que valerá à pena investir cinco anos num romance? Só
escreverão os professores universitários com verbas para pesquisas sobre
coisas do tipo as qualidades térmicas do vidro fundido com raios
ultravioletas? Quem escreverá com profundidade sobre o que Flaubert
chamava de “alma das coisas”? Não estamos vivendo uma mudança de século,
mas uma mudança de era. O desaparecimento do socialismo na Europa
prendeu a atenção das pessoas e não se percebeu realmente a dimensão
revolucionária da entrada na era digital. Muitas atividades humanas já
mudaram ou desapareceram. Será lamentável se a arte de contar histórias,
que nos acompanha há 30 séculos, desaparecer. Ela não pode se resumir a
mais um game. Na época de Homero os homens se reuniam para ouvir um
poeta cego contar a história da tomada de Troia. Somos o resultado dessa
cultura e estamos dando um salto abismal.
CS – O senhor disse que numa investigação de romance policial
não basta resolver o problema. É preciso também esclarecer uma
situação. O que busca esclarecer com seus livros que mesclam ficção e
história?
Padura – Tudo o que consiga, situações de fundo
histórico, social, existencial. No meu novo livro, “A transparência do
mal”, que acabei de enviar para a editora na Espanha, a preocupação de
meu personagem Mario Conde, que é a minha, é de caráter existencial:
como viver depois dos sessenta anos de idade? Como enfrentar o
envelhecimento? Como a fé é capaz de fazer milagres? Como está a vida
social e econômica em Cuba? O romance policial permite todo tipo de
reflexão.
CS – Mario Conde é o seu alterego?
Padura – Conde faz o papel de meus olhos. Por meio
dele, vejo o mundo que me cerca. Por estar muito perto de mim, sem ser
meu alterego, ele me possibilita entender certas coisas mesmo sem as
explicar.
CS – Um escritor que mescla ficção e história está na pós-verdade?
Padura – Não. O escritor faz um pacto com o leitor:
conta-lhe uma mentira como se fosse verdade. O leitor lê como verdade
sabendo que é mentira. Mas essa mentira pode ser também parte da
verdade. É um jogo limpo. A pós-verdade é um jogo sujo. Dá-se por certo o
que não é.
CS – O que busca esclarecer sobre a situação atual de Cuba?
Padura – Cuba não consegue encontrar um caminho
econômico para se organizar. O Estado continua a ser o grande
controlador da economia. Isso tem sido improdutivo e ineficiente. Um
pequeno setor privado começa a mostrar produtividade e eficiência. O
Estado trata de limitar e controlar suas ações. Por outro lado, as
relações com os Estados Unidos voltaram, do ponto de vista retórico, com
Donald Trump, ao estágio anterior a Obama. Nada mudou na economia. Não
se recuou nem se avançou em relação ao fim do embargo econômico, que
seria importante. O trabalhador privado em Cuba ganha cinco vezes mais
que o público. Criou-se uma separação, uma distinção enorme no tecido
social. Tudo isso num momento em que se supõe que Raúl Castro deixará o
poder. Já anunciou que em 2018 não será mais presidente do país. Resta
saber se vai continuar como secretário do Partido Comunista, que é quem
manda.
CS – Como ainda é ser escritor em Cuba?
Padura – Ser escritor em Cuba é um ato de fé. Um
escritor em Cuba precisa ter editoras fora do país que o publiquem. Ou
precisa trabalhar em outras coisas para ganhar o seu sustento. Os
direitos autorais pagos em Cuba não são suficientes para alguém viver.
Cada vez se publica menos. Os escritores cubanos conhecidos são muito
poucos. Não existe um mercado do livro em Cuba. Ainda será preciso
criá-lo.
CS – Como está a questão da liberdade?
Padura – A questão da liberdade ainda não está
resolvida. Existe um espaço maior para a opinião. Mas não é total.
Privilegia-se quem está mais perto do poder. Opiniões divergentes são
rechaçadas, condenadas, castigadas. A imprensa pertence ao Estado. Há
mais liberdade nos blogs. Um pouquinho de diversificação. Temos de
ampliar esses espaços.
CS – A literatura brasileira chega em Cuba?
Padura — Muito pouco. Casa de las Americas se
encarregava disso. Agora só restam os prêmios, que nem sempre coroam
obras de primeira qualidade. Rubem Fonseca é um dos últimos brasileiros
mais conhecidos.
CS – O senhor vive há 61 anos na mesma casa. Nunca pensou em sair?
Padura – Não. Em algum momento dos anos mais
difíceis todo cubano pensou em partir. Eu só queria escrever. Precisava
de tempo. Se pudesse ter comida melhor, um carro, ótimo. Se tivesse
saído de Cuba, teria de trabalhar em outra coisa para viver. Fiquei para
escrever.
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Fonte: http://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/2017/08/10171/caderno-de-sabado-entrevista-leonardo-padura/
Jornal Impresso: Caderno de Sábado , 26 de agosto de 2017, pg. 1
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