Francisco Marshall*
"Eis a questão: É possível que o estado ofereça solução
para a felicidade coletiva?"
Ao filho Nicômaco, ao pupilo Eutidemo e a todos nós, Aristóteles
ensinou que a finalidade do conhecimento é produzir a felicidade
(eudaimonia), resultado de escolhas corretas, que permitam o triunfo da
ética sobre o erro. Para isso, o filósofo analisou todos os fenômenos
que alcançou, inclusive as constituições de cidades; leu 158 destas,
para escrever a Política. Aristóteles estava escaldado pelos erros de
seu antecessor, e mestre contestado, Platão, que diante da crise da
pólis (Atenas) propôs como remédio um regime autocrático, comandado por
rei-filósofo. Embora o estagirita (i.e., nativo de Estágira) não tenha
abandonado a esfera pública, deu início a um novo ciclo da filosofia
grega, que teve seu apogeu com os filósofos éticos: Epicuro e a busca do
prazer pelo convívio amistoso (philía), Zenão e a ética estoica (que
formou a parte virtuosa do cristianismo), Diógenes e o caminho cínico
(viver como um cão, kinos, à margem do Estado). Desde então, o humanismo
não cessa de se perguntar sobre os caminhos para a felicidade, em seus
dois cenários: individual e coletivo.
Em era de angústias,
cresce a tentação pela busca da felicidade individual, inspirada pela
última frase do Cândido (1759), de Voltaire, emitida depois de o
protagonista viver mil agruras: "Tudo isto está muito bem dito, mas
devemos cultivar nosso jardim". Os contemporâneos de Voltaire preferiram
outra via, e foram cuidar de um parque público então utilizado como
patrimônio privado, o Estado; para a dinastia que dizia que L?état c?est
moi e para a humanidade, declararam que o Estado é de todos, e logo
ornamentaram didaticamente as ruas de Paris com os cadáveres (alô,
Brasília) dos defensores da velha ordem. A Revolução Francesa deu fôlego
ao encontro entre utopia humanista e história, perseguido desde o
século XIX. Eis a questão: é possível que o Estado ofereça solução para a
felicidade coletiva?
Os libertarianos (ou isentários), mutantes
atuais, herdeiros (indignos) do liberalismo clássico, creem que não é
viável felicidade coletiva, e demonizam esta palavra, tomada como
sinônimo de comunismo, Stalin, infantofagia e outros fetiches
reacionários. Essa ideologia oportunista finge não saber que é
incontornável a dimensão coletiva da existência humana, desde o
paleolítico e, nos últimos 5 mil anos, no âmbito do Estado. Esses
pseudo-ingênuos dizem crer em força sobrenatural (mão invisível ou livre
mercado) capaz de assegurar o bem, mas sabem que isto é um mito
oportuno, que esconde a verdadeira face de uma mobilização egoísta,
predatória e de interesse corporativo. Eis porque esta ideologia covarde
tantos males produz: não considera o desafio de se superar o que impede
a felicidade do maior número de cidadãos, de se combater a iniquidade,
de se equalizar as relações sociais visando-se bem maior, a harmonia,
capaz de satisfazer a todos: aos carentes, com qualidade de vida, aos
abastados, com segurança, e a toda a sociedade, com o florescimento das
melhores possibilidades humanas. Cuidemos do jardim e dos parques
públicos.
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* Historiador, arqueólogo e professor da UFRGS
Fonte: http://flipzh.clicrbs.com.br/jornal-digital/pub/gruporbs/acessivel/materia.jsp?cd=7b6982e584636e6a1cda934f1410299c
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