A cada dia me torno obsoleto. Sou como uma rosa que nunca teve razão
de ser e que a cada segundo perde seu perfume e se desfolha sem
remissão. Resta em mim uma capacidade ridícula de não me conformar. Com o
quê? Com a vida que passa sem se explicar e sem explicitar seu sentido,
com a indiferença dos jovens em relação ao passado, com o tratamento
destinado aos velhos, com a ideologia tecnicista que coloca dispositivos
criados por homens acima dos interesses humanos, com a desigualdade que
condena pelo nascimento tantos a uma existência infeliz sem que eles
nada tenham feito por merecer, salvo nascer no lugar “errado”, do ventre
“errado”, errantes.
Não me conformo comigo e com o mundo. Não me conformo de não ter
aprendido a tomar chimarrão – o gosto me é insuportável – para ficar
horas mateando com a Cláudia, com meus avós e meus pais faziam entre
eles em manhãs geladas ou em crepúsculos alaranjados na campanha,
proseando ou vivendo em silêncio a cumplicidade de uma travessia feita
de pequenos e de grandes saltos na escuridão incerta do futuro ou na
luminosidade ofuscante do presente com seus holofotes enganosos. Quando
fui fazer doutorado na Sorbonne, tive um medo infantil de não ser aceito
na hora da inscrição. Cláudia me tranquilizou com humor:
– Eu te boto sentado lá na sala de aula e não deixo te tirarem.
Eu não me conformo em ver amigos morrerem, companheiros partirem,
políticos traírem seus eleitores, governantes roubarem, filhos não
respeitarem os pais, pais não entenderem os filhos, livros não serem
lidos. Não me conformo ao ver sair o sorteio: câncer para um, infarto
para outro, Alzheimer para tantos. Não me conformo com as misérias do
mundo, tanta sabedoria, tanta inteligência, tanta ciência, tanta
tecnologia, tanta genialidade e paradoxalmente tamanha incapacidade de
dar saúde, educação, comida, emprego e oportunidades reais a todos. Eu
não me conformo com a minha covardia, com o que sinto e não digo, com o
que digo e não sinto, com a hipocrisia que faz condenar a corrupção de
uns e tolerar a roubalheira de outros, com os jeitinhos eternos, os
carteiraços cotidianos, os privilégios, os “entendimentos” distintos das
leis conforme os “pacientes” da justiça.
Não me conformo com o racismo, com a homofobia, com o moralismo que
tolhe e tenta impor regras categóricas onde deve prevalecer a
tolerância, a liberdade individual e o direito à diferença. Não me
conformo com a rapacidade que “ergue e destrói coisas belas”. Não me
conformo com a violência, a ganância, a perversidade e a injustiça. Não
me conformo com a minha incapacidade para dar respostas rápidas e
espirituosas quando me dizem coisas falsamente gentis ou verdadeiramente
afrontosas que me repugnam ou indignam. Não me conformo com o
desinteresse geral pela poesia, com o triunfo do divertimento banal, com
a glória vã de pseudocelebridades, com tantas vidas tiradas por balas
perdidas, com a condenação de crianças a uma vida sem futuro, com a
hegemonia do dinheiro sobre todas as coisas.
Eu não me conformo com certas estatísticas e com as ações que as
determinam: “Nove entre dez dos mortos pela polícia no Rio de Janeiro
são negros ou pardos”. Não me conformo com fanatismo em futebol,
terrorismo religioso, facciosismo político, panelinhas culturais. Eu não
me conformo com minha falta de jeito para sambar, meu desafinamento
para cantar, minha incompetência para tocar um instrumento. Não me
conformo com a dor dos inocentes, a mágoa dos injustiçados, a tristeza
dos abandonados. Não me conformo por não ver mais as estrelas coalhadas
no céu de Palomas, não sentir no rosto a brisa suave das manhãs de
setembro nos campos da minha infância, não ter dito não com firmeza
quando me dobrei, tergiversei e me abaixei.
Resta em mim essa inconformidade com o tempo, meu tempo, esse
inconformismo com a sorte, meu destino, essa desconformidade com a
morte, que sempre se aproxima, essa perplexidade face à beleza do
universo, que se expressa nas mínimas coisas, por exemplo, no sorriso
desta criança que desconheço e que me fita enquanto escrevo sob o sol da
imaginação. Eu não me conformo com os golpes de Estados, com os Estados
que minguam, o estado das coisas, as coisas em estado terminal. Não me
conformo com a crise do humanismo, não me conformo com nossa síndrome de
super-homens, não me conformo com a equiparação de homens e coisas, não
me conformo com a destruição da natureza.
Não me conformo com a minha pequenez diante de tudo e com a minha
falta de grandeza face ao pouco que eu poderia afetar. Na solidão
povoada do dia a dia, no formigueiro isolacionista da pequena cidade
grande, não me conformo com o tempo perdido deixando o tempo passar sem
prestar atenção ao cortejo das estações. Sobretudo, profundamente, não
me conformo com meu medo de não temer e de viver. Não me conformo com
esta mão que treme quando deveria apertar e amar.
----------------------
* Sociólogo. Escritor. Colunista do Correio do Povo
Fonte: http://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/2017/08/10110/coisas-com-as-quais-nunca-me-conformo/
Imagem da Internet
Nenhum comentário:
Postar um comentário