Fr. Luiz Carlos Susin(1)
“Que te agradem as palavras de minha boca e o meditar
do meu coração em
tua presença”.
( Sl 19,15)
A
espiritualidade é como navegação em largo oceano: precisa de barcos. O
espírito, como o corpo, precisa não só de alimento, mas de ginástica, de
práticas, e até de “técnicas” para seu exercício. Por mais que compreendamos
que “tudo é oração”, que “orar sem cessar” é simplesmente tomar consciência de
que estamos sempre na presença amável de Deus, inclusive quando estamos nas
refregas da ação, dos engajamentos, da política, a espiritualidade é algo que,
para que seja vida incessante, precisa ser “praticada” em tempos, lugares e formas
específicas. É nisto que vamos focar este artigo: na prática de exercícios de
espiritualidade. Especificamente, escolhemos aqui a prática da meditação, um
dos exercícios mais exigentes e gratificantes ao mesmo tempo em toda
espiritualidade. Trataremos especificamente da meditação com características
cristãs. Pois nem toda meditação é cristã. Filósofos, poetas, cientistas, mas
também mães de família, crianças e religiosos de todas as tradições, quedam-se
pensativos em meditações, às vezes criativas, às vezes sofridas, às vezes
propositadamente e disciplinadamente vazias. Há uma forma especificamente
“cristã” de meditar.
É
constrangedor constatarmos que ao nosso redor crescem as propostas de meditação
oriental, de tradição budista ou hindus, ou inclusive em estilo sufi e baha’i, de fundo muçulmano – todas admiráveis por seus aspectos
variados de métodos e propósitos, e também por seus benefícios espirituais e
terapêuticos – enquanto grande parte dos cristãos desconhece o tesouro da
tradição cristã em termos de exercício de meditação. Não é nosso foco aqui
apresentar uma história da meditação percorrendo os dois mil anos de
cristianismo, mas convém enumerar brevemente alguns traços, começando pelos
anacoretas dos desertos, pelos cenobitas habitando suas celas em torno de uma
capela. Depois vieram os mosteiros, a vida contemplativa dos cristãos era
incentivada a partir de uma leitura bíblica. Com espaços e tempos de retiros,
de “deserto”, e a introdução regrada da prática de meditação na vida monacal
como Lectio Divina, depois nas Ordens
religiosas mendicantes e nas Congregações, até mesmo as mais apostólicas e
missionárias, masculinas e femininas. Todos se inspiraram cristãmente e ainda
têm como referencia as narrativas de retiros de Jesus ao deserto e à montanha,
passando ali longos tempos, dias e noites inteiras diante da Palavra.
Fundamentar a meditação cristã em Jesus é óbvio e cristalino. A pergunta é
sobre como se ocupava Jesus retirado uma noite inteira em oração. É lógico: a
oração que Jesus ensinava – o Pai-Nosso – é a oração que ele mesmo rezou. Mas
ele se entreteria toda a noite rezando o Pai-Nosso? Desceremos ao detalhe mais
adiante.
Seria
a meditação um privilégio da Vida Religiosa Consagrada (VRC)? Nos dias em que
vivemos, em que quase todos, consagrados e consagradas, têm agendas tão ativas
e aceleradas como de executivos de empresas, são justamente os executivos, os
profissionais liberais, etc. que clamam por tempos de meditação, por cursos e
mestres, por Transcendental Meditation
Training, haja vista a repercussão do livro “O monge e o Executivo” de
James Hunter, sucesso inclusive no Brasil. Mas perto de nós, a literatura de
Anselm Grun, de Henri Nouwen e de Jean-Yves Leloup, apenas para ficar em alguns
exemplos, tem nos ajudado a praticarmos leituras meditativas, um modo
substancioso e importante – e simples – de meditação. Hoje há recursos
audiovisuais pipocando por todo lado: mensagens com imagem e som em youtube, em whatsapp, sem falar dos já clássicos slides de Data Show. Mas
isso ajuda? A saturação e a pirotecnia de belas mensagens pela tela não
conseguem exatamente o contrário de uma verdadeira meditação? Enchem ao invés
de esvaziar? Vamos aprofundar.
1. O QUE É UMA MEDITAÇÃO “CRISTÔ?
Antes
de tudo, o que não é uma meditação propriamente cristã, pois há muitas
tradições religiosas que têm suas formas próprias de meditação, e hoje, até
mesmo sem motivação religiosa, há quem busque meditar por outras razões. Há, de
fato, um nível que poderíamos chamar de “antropológico” na busca e na prática
da meditação: a concentração e o cultivo cuidadoso que ela exige é eficaz para
a integração psíquica, para melhorar as funções do corpo em geral, para
melhorar o rendimento no trabalho, nas relações, na atenção à ação, enfim para
conseguir equilíbrio interior e nos relacionamentos com os outros e com o
ambiente, já que cria sensibilidade. A meditação, nesse caso, está voltada para
o cultivo da subjetividade, para o bom desempenho do “eu”. Embora não se deva
suspeitar necessariamente de narcisismo, ela tem um caráter “narcísico”, algo
como cultivar o próprio sorriso olhando-se ao espelho. Assim, ela pode ajudar a
ser melhor, a ter uma personalidade mais sensível, mais bondosa, etc. É claro
que não é preciso ser cristão para ter este cultivo. É coisa boa e justa, mas é
algo que “os pagãos também fazem”.
A
meditação cristã pode ser compreendida por seu histórico, sobretudo por seu
nascedouro em termos de prática regrada e constante. Vamos situá-lo no deserto:
afinal, cristãos foram ao deserto sobretudo para meditar e orar. Parece que o
fato de um número considerável de analfabetos terem ido ao deserto tenha
ajudado a estruturar a meditação cristã: eles se localizavam nas redondezas de
um mestre que pudesse ler para eles o texto da Escritura. Então o mestre
“entregava” aos demais o versículo bíblico a ser bem guardado na memória e
então lembrado e repetido centenas e centenas de vezes ao longo da jornada.
Como a leitura, também o versículo a ser lembrado repetitivamente era feito
originalmente pronunciando-o em voz alta. Mas logo passou a ser uma repetição
“em pensamento”. (2)
A
meditação cristã tem assim duas características:
1.
É meditação de uma “palavra”, e a palavra “sagrada” porque é uma palavra das fontes da
revelação e da salvação, palavra que transmite vida, palavra de “alguém”, de
uma alteridade que, em si mesma, ainda que se dê generosamente na palavra,
permanece além dela no mistério insondável. A meditação cristã não visa o
despojamento de qualquer pensamento interior até chegar ao silencioso e
libertador “vazio transcendental”. O cristão aprende a meditar depois de
escutar e acolher em si a palavra, depois da proclamação da palavra que provém
de “alguém”: a palavra é relação com uma alteridade. É bem verdade que a
palavra, a linguagem, é sempre pará-bola: lança para além dela como uma metá-fora:
toda palavra tem caráter metafórico, cumpre sua missão quando se transcende a
palavra em direção à fonte mesmo da palavra, que é inefável mistério de alguém,
silêncio pleno de presença. Mas a espiritualidade cristã mantém a diferença,
não mergulha em uma com-fusão com o mistério de uma alteridade que, mesmo
intensamente presente, tão presente a ponto de se fazer carne e humildade
criatural, se mantém uma “alteridade” divina. A palavra é ao mesmo tempo a
relação íntima e a distância transcendente na qual a criatura se mantém
respeitosamente diante do mistério e o reconhece e adora como mistério. Daqui
decorre o privilégio da palavra sobre o silêncio na meditação cristã. Não só
porque no princípio de tudo “Deus disse” (Gn 1,3a) mas porque a palavra permanece
relação até o último versículo bíblico e até a adoração celeste no canto de
louvor eterno.
2.
A meditação cristã se tornou repetição de
palavra: palavra e relação de longa duração, algo comparável à ruminação
bovina, retomando e mastigando repetidas vezes o mesmo bocado para chegar a
integrá-lo inteiramente como alimento da vida. Repetição que, como toda
meditação, chega ao silêncio exterior, concentrando o movimento para dentro de
si, do próprio corpo, até o silêncio também interior mais completo, mas
silêncio da intimidade com alguém, com a fonte da palavra, “união” e comunhão,
que são mais do que contemplação. É a realização da metáfora joanina: “Eis que
estou à porta e bato: se alguém ouvir minha voz e abrir a porta, entrarei em
sua casa e cearei com ele, e ele comigo” (Ap 3,20).
Com estas premissas que devem
permanecer firmemente no exercício da meditação cristã, o ponto seguinte é não
uma teoria, mas a prática meditativa.
2. A FORMA E O EXERCÍCIO DA MEDITAÇÃO CRISTÃ
Em
termos de forma, inclusive de técnicas – operacionalização – pode-se ganhar
muito com outras tradições. É sabido que o budismo, apenas para exemplificar,
desenvolveu formas admiráveis de concentração da mente, que estão disponíveis
cada vez mais perto de nós no Brasil. Lançando um olhar, ainda que superficial,
para a exuberância das culturas religiosas, poderíamos dividir as formas de
meditação que levam à aquietação,, aos estados modificados de consciência, ou
ao êxtase, ao transe, entre dois extremos: a quietude que chega a uma respiração
lenta e profunda em um corpo inteiramente imóvel, por um lado, e, por outro
lado, o movimento até espasmódico e frenético do corpo em danças e contorções.
Entre os extremos há um aspecto grande de movimentos e aquietamentos. (3)
A
meditação, inclusive etimologicamente – do latim, o verbo reflexivo meditari – tem um significado medicinal de se dobrar
sobre algo com atenção, para cuidar, tal como “pensar” arcaicamente, mesmo em
português significa “pensar feridas”, ter o cuidado terapêutico, de socorro, à
dor. Podemos até verificar que pessoas ficam “pensativas”, “reflexivas” e
“meditativas” diante da dor, da morte, da finitude, da fragilidade, do perigo.
Em algumas línguas evoca uma tomada de distância, uma saída do ruído do
cotidiano, que nos envolve para prestar atenção a algo essencial. No entanto,
rituais os mais diversos segundo as culturas religiosas tão variadas à
fragilidade e ao perigo, mas juntam a afirmação da força e da confiança, da
exuberância da vida, e justamente como remédio, como socorro, como cura e
superação. Por isso se dança diante do nascimento e da morte, se levanta as
mãos na dor tanto quanto na alegria. A meditação tem algo de cuidado medicinal.
Agora,
a nossa meditação tem uma forma pacata, até bem simples e prosaica, comparada à
imensa riqueza cultural de rituais religiosos. É simplesmente colocar-se diante
da palavra, da presença a que ela nos apresenta e permanecer simplesmente nesta
face a face espiritual mediado pela
palavra e pelo silêncio. Isso precisa de alguma explicação:
1.
A nossa fé na proximidade de Deus na carne de
Jesus simplifica muito a nossa forma de religião e a aproxima muito do
cotidiano. Não há mais necessidade de observação de luas e de rituais
alimentícios, etc., o que Paulo viu muito bem. Isso vale também para a oração e
para a meditação. Mas isso não significa que possamos esquecer as exigências
antropológicas da religião, com toda a liberdade e a criatividade de filhos e
filha de Deus.
Tudo o que faz
bem não só é permitido, mas deve ser apreciado, inclusive certas “técnicas”
vindas de diferentes tradições, como é o caso do rosário, que abordaremos logo
em seguida.
2.
Pela mesma razão, a tradição cristã sente como
exotismo, portanto algo estranho, a preocupação exagerada com a forma. Ela
ajuda, mas não decide. Se decidisse, teríamos em nossas mãos uma poderosa magia
capaz de subjugar o mistério divino, e isso soa praticamente como uma
blasfêmia. Assim também as nossas palavras e os nossos pensamentos: eles não
são mágicos ou poderosos, não nos inclinam para uma onipotência do narcisismo.
São simplesmente a nossa expressão, o nosso coração e a nossa cordialidade
levada à boca – sinceridade – no reconhecimento da presença do mistério que se
apresenta a nós de face pela mediação da palavra sagrada que nos é dada na
leitura orante.
Dito isso, além da evocação dos
inícios da meditação cristã nos desertos e na mente dos anacoretas que
ruminavam se alimentando da palavra do dia, vamos evocar as lições de duas
tradições meditativas, ainda que tenham uma estrutura comum de fundo, o hesicasmo
e o rosário:
1. O hesicasmo, atualizado em pílulas urbanas no “terço bizantino”
do Pe. Marcelo Rossi, em São Paulo, é uma grande tradição do oriente cristão,
também celebrizada na oração do “peregrino russo”. De certa maneira, é herdeira
dos monges do deserto, e foi um vasto movimento espiritual de simplicidade e
despojamento para se centrar no essencial, para estar na presença divina. A
“oração de Jesus” é o essencial: tomando um verso, uma palavra ou uma frase
curta e simples dos evangelhos, ela se torna uma recitação contínua, uniforme,
monótona e longa até perder a noção do tempo.
Na
liturgia bizantina, e mesmo na liturgia latina, se conservou esta simplicidade
recitativa nos “tropos”. Em grego
tropos, do verbo trepein, que
significa “virar” e “tomar um caminho”, uma nova direção, tinha a ver com os
pensadores da corrente “cética”. Skeptos
significa justamente refletir, meditar, pensar melhor, pensar diferente. Assim
sinalizavam a necessidade de suspender o pensamento, os juízos, buscando outra
verdade, não evidente. Esse ato de suspender, voltando à oração hesicastas e
depois à sua herança litúrgica, está na repetição de antífonas, que retornam em
meio às estrofes. As “grandes antífonas” porém, podem ser recitadas muitas
vezes sem mesmo intercalar estrofes. A palavra antífona já indica a existência de dois grupos ou dois coros em
contracanto, mas o essencial em tudo isso é a repetição de algo simples, que
conduz à suspensão e à docilidade do pensamento em se deixar conduzir pelas
poucas palavras que se repete. Um exemplo excelente que ficou na tradição
hesicasta e do peregrino russo é a confissão do publicano: “Senhor, tem piedade
de mim, pecador!” – repetida três ou cinco mil vezes no decorrer do dia...
recolhido ou andando, coincidindo cada “jaculatória” dos lábios e da mente com
o movimento rítmico da respiração.
De
fato, sem pretender exagerar nas posturas corporais, mas, pelo contrário,
colocando-se em posturas simples e despojadas, é importante que o corpo inteiro
seja oração. Por isso, uma postura não só “confortável” – palavra repetida nos
cursos seculares de Meditation Training
–, mas também postura “elegante” é a recomendação. Elegância coincide com
postura correta em todo o corpo. Quando é meditação sentada, é importante uma
coluna reta, braços descansados, pés bem postados, cabeça que seja também de
ombros e peito erguido, passos ritmados com suave firmeza. Tudo – sentado ou
andando – sem rigidez. Portanto, músculos relaxados, olhos pousados sem
inquietação. Ou seja, o aquietamentos começa em um corpo com posturas calmas e
elegantes. Uma “passada” consciente por todo o corpo para ir se colocando,
parte por parte, em boa e elegante disposição, é uma exigência de preparação.
E,
como ensina a “oração de Jesus”, coincidindo com todos os métodos de meditação,
é importante uma respiração bem ritmada, mais profunda e calma do que no
cotidiano. Uma boa respiração afasta a ansiedade, acalma os pensamentos. No
nosso caso, em que a primazia da meditação é a palavra, o hesicasmo e o
peregrino russo levam o ritmo da respiração a coincidir com o ritmo das poucas
palavras repetidas. Assim a própria respiração vai assumindo as palavras, e
mesmo quando já não se pronuncia, quando se está distraído ou se dorme, o
coração vela e ora – pela respiração!
2. O rosário, do ponto de vista formal, ou seja, como “técnica” de
oração, é a tradição que os católicos latinos receberam do oriente mais
distante e transformaram em meditação cristã. Basta constatar que hindus e
budistas recitam mantras, e muçulmanos, ayat’s
( versículos do Alcorão), desfiando contas ou algo semelhante. A repetição de
um som, de um nome, de um versículo, é das mais universais formas de se
recolher para a meditação silenciosa. Assim, o rosário, como o Angelus, foi adaptação que se
popularizou desde a Idade Média, como sabemos. Nele estão os “mistérios”
narrados para a meditação, lembrados de forma absolutamente simples, e logo a
recitação mantém o ritmo, que deve ser calmo, intencionalmente monótono,
despreocupado, sem perder a boa forma. Não se trata de encher os ouvidos de
Deus com a ansiedade de muitos pedidos “como fazem os pagãos”, mas de repetir
com a docilidade de quem diz, sem parar, “eu te amo!”.
O rosário – ou
o terço – é a oração de recolhimento, justamente para meditar. A televisão é um
complicador, pois é espetáculo, requer fluxo constante de imagens, de brilhos e
cores. Dificilmente consegue induzir ao silêncio. Está mais para carnaval.
Ajuda para uma mensagem, para pregação ou catequese. O terço recitado com o
rádio recolhe mais, é só ouvido – o que, aliás, pode-se fazer também com a
televisão fechando os olhos. Paul Claudel, o poeta francês, teve uma conversão
súbita ao entrar sozinho, distraído, na catedral de Notre Dame, quando o organista ensaiava uma partitura. A
profundidade e a altura sonora do órgão tornavam aquele silêncio mais
eloquente, e ele se viu caído de joelhos em pranto, ficando ali um tempo longo,
indefinível, imóvel. O som, a música, é frequentemente um grande sustento de
momentos místicos e de meditação, mas é necessário discernimento e cuidado,
porque ela tem a mesma ambiguidade da imagem.
Do oriente se
aprendeu também que estar sempre no mesmo lugar e na mesma posição (sutra), assumir sempre a mesma fórmula e
o mesmo som (mantra), e contemplar
sempre o mesmo simples e despojado objeto de atenção (uma vela, um ícone, o
sacrário), são elementos simples e importantes ao mesmo tempo, ao alcance de
todos. Rezar um terço lá de vez em quando... não ajuda muito. É na repetição
cotidiana que está sua eficácia meditativa. Muitas vovós analfabetas, por ele,
foram pessoas de alta contemplação e mística.
Não é
necessário ter almofadões e ambientes sofisticados, desenhados por experts em meditação. Basta sentar-se
bem na cadeira ou no banco, ter uma roupa simples, um calçado simples ou pés
descalços, pouca luz, um pouco de beleza. Nesse sentido, Taizé é um bom exemplo de vida simples, até rude em alguns
aspectos, sem muito conforto, mas centrada na oração – uma capela voltada para
o ícone iluminado de muitas velas, uns banquinhos teresianos, uma túnica
branca, repetição de refrãos e silêncio depois de proferir o texto bíblico.
Aqui
sublinhamos o respeito à forma, às “técnicas” mínimas que devem ser observadas
se não quisermos defraudar a dimensão antropológica da meditação, lembrando
mais uma vez, porém, que o que decide na meditação cristã é a interiorização da
palavra e a consciência da presença amorosa e adorante de quem a enviou. Por isso, nossa repetição do rosário é
escandida por mistérios de Cristo, segundo a tradição medieval da cristologia
dos “mistérios da vida de Jesus”, os eventos de revelação e salvação
condensados nesses mistérios.
2. AS POSSIBILIDADES DE MEDITAÇÃO NO CONTEXTO
URBANO CONTEMPORÂNEO.
Embora breve,
este último item deve ser considerado com realismo e como desafio. Não é
necessário dizer o que todo mundo sabe a respeito do tumulto das agendas, da
locomoção, dos horários, dos arranjos da cidade grande. Do caos, porém, vem a
energia e a inspiração criativa. Também para a meditação e a oração, justamente
mais necessária. É uma questão de oportunidade e de exercício, e até de
sobrevivência. Pe. Marcelo Rossi, a seu modo, ajudado por seu bispo,
especialista em patrística, encontrou uns minutos à meia-noite da grande São
Paulo. A televisão torna a meditação um pouco afetada, mas, se fecharmos os
olhos, melhora. É que se não se consegue meditar meia hora como mínimo ideal ao
nascer e ao se pôr o dia, segundo os ritmos do sono e da vigília natural, então
no meio da loucura que não deixa respirar bem, parar três minutos para respirar
com calma e em cada respiração repetir um versículo do salmo, isso pode salvar
nossa alma, ao menos naquele dia.
As
recomendações do item anterior poderão soar luxuosas para quem vive o cotidiano
das megalópoles. Mas se houver tempos “fortes” (em um retiro, ou em tempos de
férias) para enraizar um pouco mais a meditação, ela pode ser transferida de
alguma forma para o ônibus, mesmo em pé no meio do aperto, como Thomas Merton
ao sair do mosteiro em uma tarde em plena praça movimentada de Louisville, no
Kentucky. Ele meditou contemplando tudo o que estava ao seu redor, sem recusar
nada e recolhido ao mesmo tempo, porque trazia consigo o exercício da
meditação.
Embora a meditação
seja um exercício eminentemente pessoal, individual, a meditação em comunidade
de meditantes tem uma eficácia maior do que as palavras e as confidências para
criar comunhão. É algo como o êxtase vivido por Agostinho e Mônica juntos:
tornaram-se uma só alma. Quedar-se meia hora em silêncio lado a lado diante da
Palavra e da Presença que está na raiz de todos os seres faz destes um só
coração. Se isso vale para com a paisagem, os pássaros e as estrelas, vale na
mesma ou maior intensidade para com quem medita ao nosso lado. Para
dificuldades irracionais de relações, terapeutas recomendam simplesmente
olhar-se em silêncio de face por algum minuto, diversas vezes, em silêncio, e a
reconciliação acontece. A meditação comunitária, lado a lado, cura as feridas e
os ressentimentos, cria boa disposição ao perdão e à leveza das relações,
aumenta a união entre os participantes.
A medida que
se progride na meditação, não há distração que não seja alimento para a própria
contemplação e meditação. Uma distração é uma “concentração em outro lugar”, um
lugar que está pedindo atenção do meditante.
Até o diabo se torna interessante, ao menos mais manso. No entanto, em
meio à tecnologia e o “diabo a quatro” do agito urbano, um jejum de tecnologia,
um despojamento de máquinas e aparelhos, uma desconexão geral, para ter o
prazer de uma interiorização, é saudável em todos os sentidos. Entregar-se no
meio do cansaço a uma meditação sonolenta, entre a vigília e o sono, revela-se
também muito fecundo, pois nesse lusco-fusco da consciência entregue é que
ficam as impressões que vão orientar a vigília do coração enquanto o corpo
descansa no sono. Até que tudo se torne, até mesmo a cidade grande com seu
fascínio e suas misérias, parte do ícone, do salmo, do face a face adorante e
reconhecido por uma presença: “tu me envolves por trás e pela frente (...) se
eu descer até os infernos, aí também te encontro”(Sl 139,5;8b). Mas, para tanto
– ai de mim! – meditar é preciso.
NOTAS:
1. Luiz Carlos Susin, frei capuchinho. Doutor em
Teologia. Professor da PUCRS. Direção editorial da revista Concilium.
2.
Os cristãos fizeram também o caminho inverso: assim como meditavam, começaram a
ler sem mais pronunciar o que liam, segundo o que nos conta Santo Agostinho,
admirado pela forma como encontro Santo Ambrósio mergulhado em sua leitura sem
pronunciar o que lia. Essa mudança e essa economia na leitura provieram da meditação.
3.
Por exemplo, a dança sufi dos dervixes em ritmo e movimento circular com
rituais dos braços e de pés, além dos rituais de saudação e concentração que
precedem e seguem o tempo da dança mística. Se mergulharmos na exuberância dos
povos indígenas do Brasil, a dança ganha uma coreografia mais compacta e o
silêncio do corpo e do olhar se estende para o texto cósmico lido na retina
profunda dos olhos escuros. Outro exemplo de forma de meditação, agora
claramente diante da palavra e do texto, é o movimento da inclinação da cabeça
ritmado da tradição judaica. E também do coro dos monges em suas estelas, um
movimento suave e adorante que acompanha a doxologia trinitária. Na outra ponta
extrema nos deparamos com o ritmo do tambor: indígenas das Américas à África
profunda e ao pacífico, quando bate o tambor abrem-se os diques que separam
interior e terra, e tudo entra em vibração, a massa toda transforma em energia
e espírito numa grande comunhão. Dos xamãs da Sibéria, das diversas escolas
budistas e das alegres tradições hindus até a energia vibrante da África, o
corpo orante em êxtase ou meditação se sustenta com expressões culturais
impressionantes.
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FONTE: Revista CONVERGÊNCIA, CRB. Setembro/2017. Ano II, nº 504, pg.38
a 47.
Muito bom este artigo.
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