J.J. Camargo*
Mas mesmo aquelas que queremos preservar como nosso patrimônio de
raiz não são estáveis, e periodicamente precisamos sacudi-las, como
forma de trazer à tona aquilo que o tempo, presunçoso e descuidado, foi
desbotando. Outras vezes, quando a lembrança é assim revisitada, parece
diferente, seja porque perdemos pelo caminho um pedaço do ocorrido, ou
porque percebemos agora um sentido que lá atrás tinha escapado.
Neste
inverno, completaram-se 10 anos da morte do meu pai, bem velhinho, com
um último semestre de sensório comprometido, e todas as condições de
dependência e fragilidade que, os ingênuos imaginam, deveriam servir
para atenuar a sensação de perda.
Certamente, cada filho
administrou a saudade do seu jeito com características próprias,
alimentadas por relacionamentos díspares, em proximidade, carência,
afinidade, ciúme, semelhança, afeto e proteção. Retrospectivamente,
gostaria muito de ter vivido mais perto do meu pai, e esta percepção,
como quase sempre acontece, só ficou muito clara depois que ele se foi,
deixando este rastro de saudade e remorso, pontudos como uma acusação.
Passado
este tempo, aceitei me perdoar porque não poderia mesmo ser de outra
forma, pela distância e diversidade do que fazíamos. E ele sempre deixou
claro que entendia que, sendo como éramos, com tarefas tão diversas,
tínhamos que aceitar as diferenças. Lembro-me de um telefonema na quase
manhã do dia em que seu neto fazia 20 anos, em que ele começou assim:
"Meu filho, estou te ligando assim tão cedo para dizer que você tem
muita sorte por ter um filho como o Fábio, e que sou feliz porque um
velho como eu, que ama esta terra como eu amo, ter um neto que ama da
mesma maneira, é uma coisa que..." Então fez uma pausa, suspirou, e
concluiu: "Mas isso, talvez não entendas... deixa prá lá... E a minha
nora, como vai?". A brusca mudança de assunto era o jeito de dizer que
não me considerava o melhor interlocutor para falar do amor que ele
tinha pela fazenda, que adorava de paixão. E então falávamos de outros
assuntos, e tenho muita saudade do seu jeito sério de contar coisas
engraçadas. Por fim, comentávamos das minhas conquistas profissionais, e
destas, de longe, a que mais lhe encantou foi o transplante de pulmão
com doadores vivos, que ele acompanhava na mídia com entusiasmo.
Sistematicamente
perguntava pelo Henrique, o primeiro paciente, a quem se referia como
se tivesse se transformado em um parente muito querido. E sempre
terminava com uma observação entusiasmada: "Essa foi muito boa!".
"Sabe,
pai, eu também acho que foi, e muita gente repete que sim, mas depois
de todo esse tempo, preciso te fazer uma confissão: nenhuma placa,
troféu ou homenagem teve a força do teu olho brilhando. Afinal, na busca
da tua admiração, aprendi que todo filho procura desesperadamente ser
visto pelo pai como alguém melhor do que de fato é. E, neste domingo, no
teu dia, nada vai me entristecer mais do que a consciência de que nunca
mais vou poder fazer alguma coisa, qualquer coisa, para te
impressionar. E eu queria tanto." Porque o pai da gente só morre com a
gente. Nunca antes. Afinal, não é esta a função mais generosa da
memória?
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* Médico. Cirurgião torácico e diretor do Centro de Transplantes da Santa Casa de Porto Alegre
Fonte: http://zh.clicrbs.com.br/rs/opiniao/colunistas/jj-camargo/noticia/2017/08/saudade-do-meu-pai-9867528.html
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