Juremir Machado da Silva*
A frase mais bonita que li na vida é um verso de Pablo Neruda:
“Nós perdemos também este crepúsculo”. Quantos crepúsculos cada um de
nós perdeu na vida? Eu perdi crepúsculos preenchendo formulários, uma
das coisas que mais odeio no mundo. Perdi crepúsculos tentando convencer
burocratas a ouvir a voz da razão, o grito da emoção ou o sussurro do
desespero. Perdi crepúsculos ouvindo críticas burras e elogios
insinceros. Perdi um crepúsculo por causa de um doutor que me atacava
por transformar minhas lembranças em crônicas quando, segundo ele,
deveria dar dicas de leitura ou ser útil à sociedade. Perdi um
crepúsculo respondendo a quem me chamava de petista e outro a quem me
rotulava de reacionário. Perdi tantos crepúsculos me justificando.
Perdi crepúsculos pensando em ser o que não sou para satisfazer os
que gostariam de fazer de mim o que só a eles interessaria. Perdi um
crepúsculo adotando estratégias de sobrevivência quando apenas desejava
que a vida me levasse. Perdi muitos crepúsculos digerindo as frases
condescendentes de figuras odiosas que só queriam me envenenar com suas
falsas solidariedades.
Perdi crepúsculos por frases assim:
– Você é feio, mas inteligente.
– Agora, sim, fizeste um livro bom.
– Gosto quando tu não imitas o Verissimo.
– Vai pra Cuba, comunista safado.
Já perdi crepúsculos por não suportar racismo, homofobia e
brincadeiras sobre aspectos físicos das pessoas. Já perdi crepúsculos
por me dar conta de que me contradigo e também cometo preconceitos. Já
perdi crepúsculos quando revisores de livros tentaram mudar meu estilo
de escrever por considerar minha frase e minha sintaxe estranhas. Já
perdi crepúsculos quando recebi telefonemas de homens dizendo que iriam
me capar por causa de meu livro “História regional da infâmia: o destino
dos negros farrapos e outras iniquidades brasileiras”. Perdi um
crepúsculo lindo quando me fechei para a poesia porque me disseram que
ser poeta era coisa ultrapassada. Perdi belos crepúsculos moderando
mensagens de ódio de haters que queriam me desestabilizar.
Eu perdi um dos mais belos crepúsculos quando não saí para caminhar
por não ter tempo a perder só pensando em ganhar mais mesmo vivendo
menos. Perdi um crepúsculo cheio de barras vermelhas quando me deixei
dominar pelos ressentimentos e fiquei me preparando para combates que
jamais deveriam ter sido travados. Perdi um crepúsculo quando não fechei
o livro, não abri o coração, não estendi a mão, não abracei, não beijei
e não permiti que a vida me levasse por aí como um pássaro voando de
uma árvore para outra. O mais belo crepúsculo que perdi foi aquele em
que esperaste por mim com um livro de poesia aberto sobre a grama, cada
letra sumindo com o sol se apagando, enquanto eu manuseava uma
calculadora e tentava entender o mundo da vida a partir da análise
fatorial. Eu perdi tantos crepúsculos que não vi a noite chegar, o dia
nascer, o tempo passar, a vida escorrer.
Só me dei conta disso quando a última lâmpada se apagou no prédio
vizinho. Na escuridão, ouvia-se Charlie Parker. Era sublime. Não perdi
tempo ontem com Temer. Decidi que tudo estava resolvido.
Seria um crepúsculo no pior sentido: ocaso da moralidade e da democracia.
Triunfo da obscuridade.
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* Jornalista. Sociólogo. Escritor. Prof. Universitário.
Fonte: http://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/2017/08/10102/tantos-crepusculos-perdidos/
Imagem da Internet
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