Luiz Felipe Pondé*
Ricardo Cammarota/Folhapress | ||
Muito se discute sobre ética nos últimos tempos. Da escola à política,
do mundo corporativo à arte. Não pretendo aqui resolver esse debate, mas
há uma questão nele que me parece essencial apontar: o futuro da ética é
a judicialização da vida. A ética "real", pouco a pouco, se torna um
"mercado da ética", que enriquece advogados, juízes, procuradores,
promotores e "assessores".
Com a modernização, o modo de contenção do comportamento via "pressão
local do grupo", cedeu aos vínculos distantes e instrumentais. A vida
produtiva moderna, associada à arrancada "progressista" em direção a um
mundo redefinido por propostas sociais, políticas e, muitas vezes,
psicológicas, arruinaram o valor da tradição moral como contenção de
comportamentos.
A própria expressão, tão comum na boca dos jovens, "a moral imposta pela
sociedade", sinaliza para a ruína dessa moral, uma vez que é sentida
como "imposta". Ou a moral é internalizada ou ela é um nada. Uma
"segunda natureza", como diria Aristóteles (384-322 a.C.).
A ideia aristotélica de uma ética prática das virtudes, elegante, mas
inviável numa sociedade de vínculos impessoais, distantes e
instrumentais, sofre com a indiferença concreta que temos pela opinião
dos outros -afora parentes muito importantes pra nós ou pessoas que
podem nos causar danos muito imediatos. Essa é, exatamente, a
"liberdade" sobre a qual tanto se fala que ganhamos com a modernidade: a
ilusão de que podemos mandar o mundo pra aquele lugar...
A posição kantiana de imperativos categóricos morais do tipo "aja de
modo tal que sua ação possa ser erguida em norma universal de
comportamento", na prática, pavimenta a estrada para a judicialização.
Basta ver os manuais de "compliance" que florescem pelo mundo
corporativo -voltaremos a isso logo.
O utilitarismo e seu império do bem-estar, seguramente, funcionam como
"ethos" de um mundo pautado pela busca da felicidade material em todos
os níveis, inclusive no da matéria do corpo e sua saúde. O utilitarismo
pauta políticas públicas e corporativas, mas não me parece ser ele a
base da judicialização. Esta base vem dos imperativos de Immanuel Kant
(1724-1804). Vejamos.
Kant percebeu a dissolução dos modos tradicionais de contenção do comportamento em curso em sua época, em finais do século 18.
Tentou encontrar um modo "racional" e, portanto, universal, para a
ética. Mas, este modo "deontológico" (dever ser) se revelou não como uma
maioridade racional introjetada da norma, como ele pensava, mas sim
como o crescimento do aparelho jurídico de constrangimento do
comportamento. Dito de forma direta: desde manuais de "compliance"
contra passivos éticos no mundo corporativo até o aumento da indústria
dos processos. Enfim, a judicialização do cotidiano.
Essa judicialização significa que a única forma eficaz de constranger os
comportamentos é via a força da lei. Esta é, sempre, encarceramento ou
pagamentos de somas financeiras como consequência de processos abertos.
Juízes arrancam seu dinheiro num clique. A indústria de sentenças
cresce. Como mandamos o mundo pra aquele lugar, resta o mercado da
ética.
Este mercado crescerá cada vez mais. Advogados farão rios de dinheiro. A
máquina judiciária estatal crescerá junto com isso. Concursos para
juízes e para o Ministério Público (cuidando de nós, cidadãos
"hipossuficientes") garantirá inúmeras vidas financeiramente.
À medida que a sociedade se torna cada vez mais impessoal (apesar da
baboseira de "capitalismo consciente" que falam por aí), a única forma
restante será o mercado ético associado à ampliação das vagas no poder
Judiciário.
Um dos efeitos nefastos desse mercado é a paranoia que segue toda
sociedade judicializada. O medo do risco de ser processado faz o
trabalho sujo da prevenção contra o passivo ético que tende a crescer.
As empresas serão obrigadas a redefinir suas culturas internas, as
escolas a inviabilizar qualquer forma de "sofrimento" dos alunos, enfim,
o medo, alimento ancestral da norma, reinará livre sobre os cidadãos
"livres" da modernidade tardia.
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*Filósofo, escritor e ensaísta, pós-doutorado em epistemologia pela
Universidade de Tel Aviv, discute temas como comportamento, religião,
ciência.
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/luizfelipeponde/2017/08/1913572-o-mercado-da-etica-crescera-e-juizes-e-advogados-farao-rios-de-dinheiro.shtml
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