A cidadania é
frequentemente assumida como algo óbvio, quase natural. Lembramos dela
quando parece que o Estado não cumpre os seus compromissos, ou quando
precisamos exercer um direito, como o direito de voto. Não raramente
acontece de nos subtrairmos ao exercício deste direito, por equivocado
protesto. No entanto, a cidadania é a dimensão política da existência. Quem não é cidadão,
quem escapa das obrigações e privilégios da participação na comunidade,
é como se não existisse no espaço público, como se resolvesse se
encerrar na esfera íntima e privada, embora isso seja realmente
possível.
O artigo é de Donatella Di Cesare, filósofa e professora da Universidade de Roma "La Sapienza", publicada por Corriere della Sera, 13-08-2017. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eis o artigo.
Alguém comparou o cidadão atual com aquele que, no tardio Império Romano, se encerrava em si mesmo. Mas hoje as coisas são muito mais complexas. A cidadania
é atravessada por explosivas tensões internas, nem sempre colocadas na
devida luz. A mais impressionante surge especialmente nas democracias
ocidentais. Pode ser resumida assim: quem tem cidadania
de um lugar qualquer praticamente a desdenha, negligencia seus
benefícios, subestima as potencialidades; mas, por outro lado, não
raramente se opõe ao compartilhamento desse direito. Não quer que seja
concedido para outros que não tenham nascidos na mesma nação, que não
sejam cidadãos por nascimento.
Estreitamente ligada a outros conceitos, em primeiro lugar aos de política e de democracia, a cidadania
sofre por reflexo seus contragolpes. Prevalecem assim o desengano, a
frustração e a melancolia, embora no século passado tenha caído uma
fronteira após a outra e a cidadania tenha sido
estendida em sinal de progresso. Basta pensar no direito de voto
conquistado apenas algumas décadas atrás pelas mulheres. No entanto,
como também reconhecia um iluminado liberal como Norberto Bobbio, analisando minuciosamente a cidadania, liberdade e igualdade não seguiram no mesmo ritmo. Aliás, correu o oposto. Claro, as mulheres são finalmente cidadãs, mas por causa de preconceitos, discriminações e violência são, para todos os efeitos, cidadãs de segunda classe.
A cidadania não é sinônimo de igualdade. Muito menos
no âmbito social, no qual de nenhuma forma são, se não equilibradas,
pelo menos amortecidas a marginalização, a exploração e as novas formas
de escravidão. Marx já havia afirmado isso ao tratar do "cidadão abstrato",
que é formalmente membro de uma comunidade política, mas que
materialmente pode acabar sendo excluído. Os exemplos seriam inúmeros. É
importante salientar que, também por causa de uma burocratização da
política que a reduziu a mera governança administrativa, a cidadania,
ao se estender, também acabou por se esvaziar, tornando-se um
recipiente desprovido de significado vital. É um fenômeno que se repete
de modo preocupante: não apenas para defender os próprios direitos
sociais, mas até mesmo para proteger as liberdades fundamentais, cada cidadão
recorre à afiliação. Pode ser uma corporação, um grupo, uma família no
sentido mais amplo; é no seu status de afiliado, de um filho, que o cidadão garante seu espaço. Quem é filho ou filha, sem pais e sem pátria, em busca de adoção, fica de fora. Para minar ainda mais a cidadania tem
contribuído o chamado "crepúsculo do Estado-nação". Trata-se de um
longo declínio, do qual não se enxerga o fim. No entanto, a questão que
se coloca é bastante clara. Na era da mobilidade, do mercado global, das
redes telemáticas, da web, o espaço público dilatou-se para tornar-se,
graças à comunicação, espaço internacional. A sociedade civil agora já é considerada o próprio mundo. O cidadão
do terceiro milênio toma parte nos eventos que ocorrem, mesmo aqueles
do outro lado do globo, sabendo que lhe dizem respeito, que o tocam
diretamente. A soberania de seu Estado, então, se torna um problema.
Porque, se por um lado oferece-lhe, justamente com a cidadania, uma proteção, pelo outro, o segura dentro de fronteiras fechadas, constantemente atravessadas pelos ventos da globalização.
Aqui já surge um primeiro ponto de discórdia. Algumas pessoas estão
satisfeitas com seu escudo nacional, os soberanistas convictos, outras
acreditam que é hora de pensar uma cidadania sem Estado
e, antes disso, sem nação. Vale a pena notar que os soberanistas, mesmo
aqueles da última hora, que teriam a pretensão de relançar a democracia
direta através da web, nada mais fazem que arejar nostalgicamente o
modelo da polis clássica, a cidade orgânica em cujo centro sobrepujam os
monumentos da verdade, da virtude e da solidariedade cívica. Como se
vivêssemos na Atenas de Aristóteles, ao invés desse complexo mundo multiétnico.
No terceiro livro da Política, que trata sobre a cidadania, Aristóteles escreve que não é suficiente viver em uma cidade para ser cidadãos; caso contrário, poderiam também sê-los os estrangeiros.
Não são cidadãos os garotos, nem os idosos, agora já isentos de encargos. Para não falar das mulheres e dos escravos, excluídos desde sempre. Cidadão
é o homem livre, em um sentido muito concreto, ou seja, que não precisa
se preocupar com as necessidades vitais, não precisa trabalhar e então
pode dedicar-se à política recobrindo cargos públicos. Pode eleger e ser
eleito. É preciso considerar - sugerem os estudiosos - números bastante
reduzidos: talvez 30.000 cidadãos, com um quórum de 6 mil e uma
assembleia de 500 membros. Aqui, inclusive, a democracia direta assume
tonalidades muito aristocráticas quando Aristóteles acrescenta que é cidadão quem é descendente de pais atenienses. A cidadania não é apenas participação, mas também legado natural. Em suma, cidadão se nasce. Justamente essa uniformidade garantiria a amizade civil e a "vida boa”.
A herança desse modelo aristotélico é hoje muito maior do que se possa imaginar: não é só a convicção de que a cidadania
é herdada, com o jus sanguinis e jus soli, através do sangue e graças a
uma não melhor especificada propriedades do solo, mas também a ideia de
uma comunidade étnica em que cada membro é integrado com o todo. O que importa, além da autodeterminação, é o pertencimento.
A esse modelo republicano opõe-se o liberal que deriva, ao contrário, do filósofo inglês John Locke. O cidadão, quase contra vontade, estipula um contrato, cede poderes ao Estado, que em troca lhe fornece alguns serviços. É o cidadão cliente, o privado sempre um pouco fora do quadro coletivo.
No primeiro modelo prevalece a comunidade, no segundo, o indivíduo.
Não será difícil reconhecer no primeiro modelo aquele que mais dominou
no contexto europeu continental, e no segundo, aquele que ainda se impõe
no mundo anglo-americano.
Em um texto primordial sobre o tema da cidadania, Jürgen Habermas apontou
uma vantagem crucial do modelo republicano: a autodeterminação. Mesmo
para o momento atual deve ficar claro que democracia e autonomia
política são "um fim em si que ninguém pode conseguir sozinho
perseguindo privadamente os próprios ocasionais interesses". Além disso,
governar e ser governado não constituía o grande ideal de Rousseau? A autolegislação, a soberania popular – retomadas também por Kant?
Mas, em vista de um horizonte "pós-nacional", Habermas lança um alerta às nações, em especial aquelas mais tardias, como Alemanha e Itália. O perigo, no modelo republicano, reside justamente na cidadania
ligada ao nascimento. Disso surgiu a “ficção” do Estado nacional. De
fato, a etimologia de "nação" deriva, não por acaso, do verbo nascer.
Como se uma comunidade política pudesse ser governada por uma
descendência genética, em vez das praxes dos cidadãos
que exercem ativamente os seus direitos. Não é mais aceitável que sangue
e solo, mesmo no enfoque do mais recente passado europeu, definam os
critérios de cidadania. Tinham plena consciência disso
os republicanos franceses que escreveram a Constituição revolucionária
de 1793 em que, no artigo 4, era concedida a cidadania a todo estrangeiro que tivesse residido por um ano na França.
Mas deve-se observar que uma ambiguidade está contida na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, o ato que de certa forma marcou o nascimento da moderna cidadania. É uma ambiguidade que foi percebida por Hannah Arendt para a revista e muitos depois dela. Em um mundo dividido entre Estados-nações olha-se apenas para os direitos do cidadão. Mas o que acontece com os direitos humanos dos apátridas, dos sem-Estado, dos refugiados? Essa é, de acordo com Étienne Balibar,
a fronteira da democracia que pouco democraticamente decide por aqueles
que estão fora e pedem para entrar. Na antiguidade foram os romanos
que, quase por necessidade, em virtude da extensão de seu domínio,
conceberam e estruturaram outra cidadania. Antes ligada ao nascimento - cidadão
era apenas o homem livre de pai romano – foi se desvinculando
gradualmente até tornar-se, com o édito de Caracala de 212 dC, uma
condição não mais étnica, mas jurídica, reconhecida a todos os cidadãos livres dos territórios imperiais.
"Embora a presença de
estrangeiros seja motivo de confronto e diálogo, o compartilhamento com
os recém-chegados não é necessariamente compartilhamento das próprias
tradições étnicas, da própria forma de vida, dos próprios valores, mas
sim da cultura política, imprescindível para a cidadania. Talvez este seja o caminho também para redescobrir o
privilégio de ser cidadão."
É sobre isso que se discute hoje: sobre uma cidadania,
que finalmente faça distinção, aliás, separe o demos do ethnos, o povo
da etnia. Simplesmente porque pode e deve existir um povo multiétnico. A
democracia é a soberania do povo como demos. Em nenhum caso deve ser
limitada a um ethnos, a um pertencimento étnico de memória e destino.
Pode-se então falar de uma cidadania global, como proposto por exemplo, por Seyla Benhabib.
Isso significa aceitar os desafios do terceiro milênio, no mínimo em
duas direções. Primeiro, no sentido de uma nova democracia cosmopolita,
que em parte já existe, considerando que ser cidadãos do mundo - defende Daniele Archibugi - já não é mais apenas uma metáfora. Mas também no sentido da cidadania entendida como acolhimento. Apenas o "chauvinismo do bem-estar", escreve Habermas,
pode fazer com que não se perceba isso. O direito à autodeterminação
diz respeito aos princípios democráticos. Embora a presença de
estrangeiros seja motivo de confronto e diálogo, o compartilhamento com
os recém-chegados não é necessariamente compartilhamento das próprias
tradições étnicas, da própria forma de vida, dos próprios valores, mas
sim da cultura política, imprescindível para a cidadania. Talvez este seja o caminho também para redescobrir o privilégio de ser cidadão.
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FONTE: http://www.ihu.unisinos.br/570673-rumo-ao-cidadao-global
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