quinta-feira, 3 de março de 2011

Jesus e o amor romântico

Paulo Ghiraldelli Jr
Amor e liberdade são duas belas palavras. Podemos pensar em inúmeros vocabulários novos, mas duvido que criaríamos qualquer outro melhor do que o que temos se abríssemos mão desses dois termos. Temos dificuldade de dizer o que é a liberdade, mas sabemos bem o que é quando a perdemos. Ficamos enroscados quando tentamos explicar o que é o amor, mas temos certeza que o compreendemos quando ele nos é negado. O elo entre esses dois termos pertence aos tempos modernos. Nós o vemos como um centro de emanação de energia na natureza do amor romântico. Todavia, tal elo não nasceu com o romantismo, este o importou de uma revolução anterior, a que espraiou a cultura cristã.
Hanna Arendt nos traz uma das melhores interpretações sobre o elo entre liberdade e amor no cristianismo. Sua narrativa é boa à medida que toma como ponto de partida a novidade moral – com uma enorme conseqüência para a política secular – introduzida pelo cristianismo, ou seja, o perdão. Arendt não titubeia em lembrar que foi Jesus Cristo o inventor do perdão.[1]
Diz Arendt que foram os romanos, e não os gregos, que lançaram a idéia de comutar penas, em especial a pena de morte. A idéia de governar povos conquistados, a partir de províncias, obrigou os romanos a introduzir formas de amenização de penas. Todavia, foi só com o Evangelho de Jesus que surgiu a idéia do perdão. Arendt lembra que Jesus radicalizou a noção de perdão, e que os autores do Novo Testamento o colocaram como quem ensinou que o homem não imita Deus quanto ao perdão e, sim, que é o homem o autor do perdão, liberando então Deus para, então, também perdoar – ao menos nas faltas cotidianas, que não implicam a morte e os grandes males (estas poderão ser perdoadas por Deus, no Juízo Final). “Pai, perdoai as nossas faltas assim como eu tenho perdoado (as faltas do outro, meu semelhante)”. Essa frase, que está na oração transmitida por Jesus, o chamado “Pai Nosso”, associado a várias outras passagens bíblicas, dão a Arendt o que ela precisa para mostrar que o perdão é um ato humano. Não podia deixar de ser. Pois é por aí que se imiscui a liberdade.
A reação natural ou, melhor dizendo, a reação como que sendo uma força da natureza, é a vingança. Se eu recebo um dano, o natural é que eu provoque um dano. Mas, se perdôo, eu quebro a cadeia natural. Fazendo-me livre de ter de aplicar a vingança, eu liberto toda a geração futura. Pela lei da vingança, todos estariam comprometidos a se envolver em uma situação do passado, que não viveram. Esquecendo e perdoando, o que faço é possibilitar não só a mim, mas todos os outros, a reabertura da contagem do tempo novamente. Começar de novo é uma das maiores dádivas da liberdade. A liberdade do homem é isso: ele perdoa. Ele é semelhante a Deus nisso, na sua liberdade. Perdoando, ele se faz livre e abre as portas para a comunhão com Deus, que irá também perdoar. O homem exerce a liberdade de pecar mas, também ele, pela liberdade e, pelo ato do perdão – que deve não ser uma obrigação e vir do fundo do coração sincero –, pode recomeçar.
Arendt lembra o perdão porque ela está interessada em chegar ao seguinte detalhe: quem é perdoado? Ora, não há dúvida que só perdoamos aqueles que amamos. Não conseguimos perdoar aqueles a quem não amamos. Então, para ser alguém capaz de exercer a liberdade e, assim, perdoar, é necessário ser alguém capaz de amar. O amor é o que permite que sejamos pessoas capazes de perdoar. O amor permite, então, a liberdade do recomeço. Imagine uma sociedade incapaz de ter indivíduos que pudessem perdoar? Ah, ela seria uma sociedade incapaz de conhecer isso que prezamos tanto, que é o uso da liberdade na re-confecção da teia de relações sociais. Zerar uma conta e começar de novo – é isso que Jesus traz para todos. Essa é a competência cristã. Mas, ao mesmo tempo, nasce aí a Lei do Amor. Tudo depende do amor, no cristianismo, pois se não amamos os outros, não teremos como ser livres. Ou seja, não teremos como escapar do ato de reação natural – e que se frise o natural – que é o “dar o troco”, a vingança.
"O amor cristão se mostrou como ágape,
um amor que se faz em direção ao outro
como que um amor fraterno.
Ele não é o amor de casais, romântico, erótico.
Mas ele trouxe para o interior desse amor, também,
tudo que este precisava para ser o amor romântico,
a saber, a liberdade."
No mundo grego, os tempos homéricos mostram a não possibilidade do exercício da liberdade. A vingança é um imperativo natural. Trata-se da atividade de reparação. A compensação da natureza. Por isso, quando Aquiles perde seu amigo íntimo Pátroclo para a espada de Heitor, ele não tem outra alternativa senão voltar para a guerra da qual ele havia desistido. Sua fúria na volta ao campo de batalha é terrível, até que ele encontra Heitor e o mata com um só golpe no pescoço. Ele não impõe nenhum sofrimento torturante a Heitor. Ele o mata com um só golpe. Executa a vingança como esta é no mundo homérico, onda toda força humana é força da natureza. Não há qualquer drama de consciência em Aquiles sobre se ele deve ou não matar Heitor. Pois isso não se põe em questão. Não há uma liberdade que se possa imiscuir aí. Por isso, não se cogita nesse mundo o perdão. Ele não é um mundo em que os homens podem ser bons ou maus, ele é o mundo apenas, como a natureza é natureza. Ninguém chamaria um raio de maldoso!
Fora do mundo homérico, os gregos vieram a falar em determinismo e liberdade. Filosofias como o estoicismo e o epicurismo se digladiaram em torno disso. Mas, de uma maneira completamente estranha aos olhos modernos. O epicurismo era materialista e, no entanto, acomodava no seu interior a liberdade. O estoicismo era espiritualista e, no entanto, advogava o determinismo. Os modernos jamais pensaram assim. Os modernos tomaram a natureza e, portanto, o campo físico, como o que não permite a liberdade. Deram ao bípede sem penas a condição de, por força de decisão “interna”, subjetiva, trazer a quebra dos eventos por meio da liberdade. Foi o cristianismo que fez o homem moderno a se acostumar com esse raciocínio. Arendt, por sua vez, aproveita dessa sabedoria histórica para, então, mostrar que essa liberdade que se faz pelo perdão, realiza-se, na verdade, se existe ou não o amor. O cristianismo tem de ser uma doutrina do amor porque ele é uma doutrina da liberdade.
O amor cristão se mostrou como ágape, um amor que se faz em direção ao outro como que um amor fraterno. Ele não é o amor de casais, romântico, erótico. Mas ele trouxe para o interior desse amor, também, tudo que este precisava para ser o amor romântico, a saber, a liberdade. O casal romântico surgiu na história segundo a narrativa em que a moça ou o moço, contra o destino posto pelas famílias – o que seria a condição natural – inventam de se rebelarem para poderem viver juntos, fazerem sexo, se curtirem e se cuidarem. Essa rebeldia e entrega do amor romântico, cantada e contada pelos literatos, só foi possível por que um dia o amor beijou a liberdade cristã. Jesus abriu as portas para que as núpcias pudessem ter sabor de aventura.
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*Filósofo, escritor e professor da UFRRJ
[1] Arendt, H. The human condition. Chigago: The University Chigago Press, 1958, p. 238.

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