sexta-feira, 6 de maio de 2011

A morte de um homem louco

CHRISTOPHER HITCHENS
Imagem da Internet
Há várias cidades agradáveis no Paquistão. Muzaffarabad, Abbottabad... amenas no verão e no inverno, com vistas magníficas. Os britânicos coloniais – como o major James Abbott, que deu nome à cidade – as chamavam de “estações nas montanhas”. Se você me dissesse que está hospedado numa construção murada em Abbottabad, eu diria que você é um hóspede honorário de uma organização militar que consome anualmente bilhões de dólares de ajuda americana.
Essa prova irrefutável da cumplicidade paquistanesa oficial com a Al-Qaeda pode, talvez, provocar uma leve satisfação, mas só reforça a sensação de anticlímax. Afinal, quem não sabia que os Estados Unidos estavam sustentando generosamente as mesmas mãos que sustentavam Osama Bin Laden? Também é um pequeno triunfo a confirmação de que o velho inimigo não era um guerrilheiro heroico, mas sim um cliente mimado de uma oligarquia corrupta e viciada que administra um Estado fora da lei falido.
Isso, porém, também já se sabia. Pelo menos não vai ser preciso aturar um vídeo idiota na ocasião do décimo aniversário de sua atrocidade mais conhecida. Pensando bem, no entanto, ele não havia divulgado nenhuma declaração sobre qualquer assunto ultimamente (o que me fez pensar, há algum tempo, se talvez ele não tivesse realmente morrido ou sido acidentalmente morto). Mas o detestável trabalho de seu grupo e sua ideologia continuavam a ser levados adiante por uma geração sucessora, como seu clone no Iraque, Abu Musab al-Zarqawi, incomparavelmente mais cruel. Espero que, como Zarqawi, Bin Laden tenha tido alguns momentos finais para perceber quem o tinha encontrado e imaginar quem o havia traído. Isso já seria alguma coisa.
"O discurso de Barack Obama
 vai ser inútil se os EUA continuarem
a armar e financiar as pessoas
que tornaram essa caçada
desnecessariamente longa,
árdua e cara."
No que algumas pessoas irritantemente chamam de termos “icônicos”, Bin Laden certamente não tinha rivais. A aparência estranha, com uma quase nobreza doentia e espiritualidade falsa, era assustadoramente telegênica. Vai ser muito interessante ver se esse carisma sobrevive à definição alternativa de revolução que recentemente transfigurou o mundo muçulmano. A impressão mais resistente de todas, porém, é de pura irracionalidade. O que esse homem achava que estava fazendo? Há dez anos, ele esperava, ou desejava, ficar numa construção murada na adorável e pequena Abbottabad?
O discurso de Obama será inútil se os EUA seguirem financiando quem dificultou a caçada a Bin Laden
Há dez anos, é bom lembrar, ele tinha uma influência gigantesca sobre outro Estado fora da lei falido – o Afeganistão – e estava exercendo uma força cada vez maior sobre o vizinho paquistanês. Simpatizantes da Al-Qaeda e do Taleban tinham cargos importantes no Exército e no programa nuclear paquistanês e ainda não haviam sido descobertos. Imensas subvenções financeiras escoavam para ele, muitas vezes por meio de canais oficiais, da Arábia Saudita e de outros Estados do Golfo. Ele podia encomendar artilharia pesada preparada para destruir os tesouros budistas do Afeganistão à luz do dia.
Bin Laden decidiu pôr em jogo todas essas crescentes vantagens estratégicas num único dia. Depois, não só fugiu do Afeganistão, deixando seus seguidores iludidos ser mortos aos montes, como preferiu se tornar uma figura furtiva e sombria. Pode ser que realmente acreditasse em sua propaganda insana, tantas vezes esboçada em gravações e vídeos. Bin Laden e seus companheiros psicopatas realmente conseguiram matar milhares de pessoas na América do Norte e na Europa Ocidental. Mas, nos últimos anos, os principais triunfos militares foram contra alvos como muçulmanos xiitas civis e sinagogas indefesas na Tunísia e na Turquia.
Deve haver rumores dementes de que Bin Laden não está “realmente” morto. Sem problemas. Ele provavelmente já tinha causado o maior dano que poderia. O mártir de Abbottabad não existe mais. No entanto, os patrocinadores anônimos uniformizados que protegeram a casa ainda estão por aí. O discurso de Barack Obama vai ser inútil se os EUA continuarem a armar e financiar as pessoas que tornaram essa caçada desnecessariamente longa, árdua e cara.
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*é escritor, colunista da revista Vanity Fair, autor e colaborador regular do New York Times e The New York Review of Books. Escreve quinzenalmente em ÉPOCA

Fonte: Revista ÉPOCA online, 05/05/2011

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