terça-feira, 3 de maio de 2011

O ateísmo lúcido de Lovecraft

Paulo Brabo*

Imagem da Internet
Meu professor de redação H. P. Lovecraft, de quem herdei o vício de abusar de adjetivos, era um ateu convicto, ocasionalmente militante. A mesma convicção materialista que o fez eliminar dos seus contos de terror qualquer traço do sobrenatural levou-o a duvidar de todas as manifestações tradicionais de religião. Sua histórias não são povoadas por vampiros, fantasmas ou assombrações, e pelo mesmo motivo no seu universo não há espaço para Deus ou para intervenções sobrenaturais¹. Tudo no cosmos é gerado pelo acaso, e este domado apenas pelas leis cegas da física. No grande contexto do universo, a vida orgânica na terra não passa de “um acidente minúsculo e temporário”, sendo a própria humanidade “um acidente ainda menor e mais temporário”.
Essas convicções, mais ou menos populares hoje em dia, estavam longe de serem comuns na década de 1930, a última do autor. Acho particularmente notável, no entanto, que a grande reserva que Lovecraft encontrou para apresentar contra o cristianismo não foi o fato de a fé cristã pressupor um universo sobrenatural que contrariava sua visão de mundo materialista. Sua indignação era ao mesmo tempo mais profunda e mais lúcida²:

O cristianismo não tem como ser levado a sério. É ingênuo e anticientífico culpar o mundo por não se conformar a ele – visto que se trata de uma ilusão quimérica e poética totalmente alienígena à natureza humana. [O cristianismo] é absurdo, porque nenhuma raça ou nação poderia (ou deveria) jamais chegar a conformar-se a ele.

E basta este trecho para Lovecraft se mostrar mais agudo e inclemente do que Richard Dawkins ou qualquer outro ateu militante da nova geração. Em particular, Lovecraft enxerga que o cristianismo é uma ameaça para o conceito de raças e nações justamente por propor um ideal elevado demais, um sonho de fraternidade aparentemente impraticável e “totalmente alienígena à natureza humana”.
Ao contrário dos ateus militantes contemporâneos, ele sabe avaliar o verdadeiro peso do seu adversário. Para Dawkins, o cristianismo é uma ameaça à civilização por ser uma religião como as outras; para Lovecraft, é uma ameaça justamente por não ser uma religião, já que as religiões tendem a apoiar e legitimar o estado de coisas.
Para Dawkins o cristianismo é um risco perene porque recusa-se a reconhecer a natureza última da realidade; para Lovecraft, ele é um risco porque sonha teimosamente poder alterá-la.
Para Dawkins, o cristianismo é uma ameaça por patrocinar a injustiça; para Lovecraft, é uma ameaça por sonhar uma justiça excessiva: por ser uma intransigente ingenuidade e uma declarada insensatez, uma poesia que pode transtornar o mundo se raças e nações não resistirem ao apelo evangélico de conformarem-se a ela.
 Para Dawkins o escândalo está em, diante de todas as evidências, o cristianismo recusar-se a reconhecer que não há céu; para Lovecraft está em, diante de todas as improbabilidades, o cristianismo insistir em implantá-lo na terra.
Dos dois, só Lovecraft sabe do que está falando.

NOTAS

1 - “O que posso dizer é que acho tremendamente improvável que exista qualquer coisa como uma vontade cósmica centralizada, um mundo espiritual ou a sobrevivência eterna da personalidade.” Carta de 16 de agosto de 1932 a Robert. E. Howard.

2 - Carta de 14 de dezembro de 1932 a Elizabeth Toldridge.
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*O nome é Paulo Roberto Purim (Brabo™ é apelido), sou ilustrador e moro no Monastério de São Brabo, perdido numa região remota das Índias Ocidentais. Fonte: Blog A bacia das almas, 02/05/2011

3 comentários:

  1. Essa postagem é muito boa, mas eu queria saber: Oque Lovecraft acha do BUDISMO como filosoafia de vida ? Gostaria muito de uma resposta. Muito obrigado e um forte abraço.

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  2. O Budismo é mais uma atitude do que uma religião... Ou coo você bem diz, uma espécie de 'filosofia de vida'... Mas deixo uma ressalva, 'a atitude de Buda, ou Siddhartha Gautama', foi profundamente adulterada e modificada... 'Eles' não entenderam...

    "Feliz aquele cujo conhecimento é livre de ilusões e superstições..." Siddhartha Gautama (Buda)

    Apesar se respeitar o Budismo e o Taoísmo, como caminho, não deixo de pensar que 'matar o eu' é morrer duas vezes... Pense nisso...

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