Marcio de Freitas Giovannetti*
Eco e Narciso (na tela de John William Waterhouse) sintetizam o sentir de cada um dos entusiastas de redes sociais, todos querendo reafirmar a própria existênciaEm 1997, o presidente Bill Clinton assinou o Taxpayer Relief Act, que, entre outras medidas, diminuía o imposto sobre o lucro da venda da moradia. Dois anos depois, revogou o Glass-Steagall Act, lei estabelecida por Franklin Roosevelt que separava as atividades de bancos comerciais e de investimento. Os dois fatos, em conjunto, favoreceram a aceleração da participação desses bancos no sistema habitacional. Em termos simples, a moradia de cada americano passava também a ser, de um momento para o outro, objeto de especulação - não imobiliária -, mas do mercado acionário. Dois gestos que legalizavam a transformação da casa de cada um, o lugar privado por excelência, naquilo que Marc Augé, antropólogo da modernidade, havia, anos antes, chamado de não-lugar.
É emblemático que essa legalização da transformação do mais privado dos bens em commodity tenha se dado num momento em que o mundo globalizado, já informatizado, acelerava a produção de internautas, esses novos habitantes do planeta em que nos tornamos todos nós. Não surpreende também que, naquele mesmo momento, ganhavam tanta força os "reality shows" que até Clinton, então o mais poderoso dos homens, tivesse que tornar públicas suas peripécias sexuais com uma estagiária, o que implicou uma redefinição de ato sexual. Hoje, quase 20 anos depois, já podemos dizer que temos toda uma geração nascida desse novo ato sexual. Com a consequente produção de um novo sujeito.
Um sujeito que não transita mais entre a casa e a praça pública, mas que, habitante do novo "não-lugar", o ciberespaço, necessita com urgência das redes sociais propiciadas pelos Orkuts e Facebooks do momento para sentir a própria realidade de sua existência. À maneira do astronauta que teve cortado seu "cordão umbilical" que o ligava à nave-mãe pelo computador Hall no filme "2001 - Uma Odisseia no Espaço", de Stanley Kubrick, perdendo-se no espaço sideral, esse novo sujeito sente-se sempre em vias de desaparecimento, seja pelo anonimato da megalópole, seja pela dissolução da antiga força gravitacional que, se o prendia a um lugar específico, dava-lhe também condições de experimentar seu próprio eu dentro de fronteiras definidas, privadas por assim dizer.
Em setembro de 2001 também
foram implodidas nossas crenças
numa identidade sólida e
precisa do que é um ser humano
Privado da força gravitacional necessária àquilo que lhe proporcionava uma identidade própria, esse novo sujeito precisa se publicar, tornar-se público de forma extrema e radical para que, numa rede social, encontre uma ancoragem possível que testemunhe sua existência. Por isso, a proliferação sem fim das imagens e de informações daquilo que seria sua própria vida nas telas de um sem número de outros usuários. Somente o eco de sua voz ou de sua imagem (lembrem-se que Eco e Narciso são partes integrantes do mesmo mito), reiterado pelos milhares de amigos da rede social, pode trazer-lhe o reasseguramento especular de sua existência.
É dessa existência colocada em questão a todo e qualquer momento que emerge o sujeito grifado. Na precariedade em que constrói aquilo que se aproxima de uma identidade própria, é a grife, a marca, que vai dar nome a um si mesmo esmaecido e virtualizado. A expressão mais radical desse fenômeno é encontrada no aumento exponencial das anorexias, por um lado, e dos corpos tatuados ou submetidos a cortes sequenciais, pelo outro: o corpo humano se desencarna e se reencarna na busca de uma adequação aos novos tempos e aos novos espaços, que não são nem mais privados e tampouco públicos. Sendo virtuais, possibilitam, a qualquer momento, a criação de segundas e terceiras vidas batizadas com novos nomes ou novas marcas.
Nunca foi tão evidente quanto agora o amálgama existente entre cultura e identidade, entre cidade e subjetividade. Imerso e disperso na cidade globalizada, aquela para a qual os arquitetos deram o nome de mancha urbana, o novo sujeito emerge também como uma mancha identitária a partir de uma nova família em transformação em um mundo também em velocíssima transformação.
Nesse contexto, não surpreendem nem a criação de novas religiões nem o recrudescimento dos fundamentalismos religiosos, sintomas que são de uma oscilação de um planeta em plena efervescência. Desigualdades e achatamentos sociais e políticos tornaram-se mais evidentes por meio do uso da rede que informa e "spamiza" em tempo real, enfatizando que nenhum solo é seguro, ou, em outras palavras, que a Terra, a casa de todos nós, órbita no espaço sideral, num universo em expansão.
Se o século XX foi o século das revoluções, com todos os questionamentos trazidos a respeito da propriedade privada, o nosso século se inicia com um outro tipo de revolução. O que implodiu no emblemático 11 de setembro de 2001 foi o conceito de fronteiras. E, com isso, nossas crenças numa identidade sólida e precisa do que é um ser humano. Nunca o agora foi tão rápido e fugaz quanto neste nosso obscuro e ofuscante contemporâneo. Não virtual, mas real, a fratura que se deu entre um século e outro é muito maior do que ainda somos capazes de considerar.
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*Marcio de Freitas Giovannetti é psiquiatra, psicanalista e ex-presidente da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.
Fonte: Valor Econômico/Eu&Fim de Semana, 06/05/2011
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