MARIA INÊS DOLCI*
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Na verdade, o que a maioria ama
não é a classe média,
e sim o que ela conquista
com trabalho e muito suor
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TODOS AMAM a classe média brasileira -a mais antiga e a ascendente. Todos querem seu dinheiro, seu consumo, seus votos.
Os políticos falam em nome dela, mas não tocam em temas urgentes, mas sempre esquecidos, como a necessidade de uma reforma tributária e fiscal. Ou em favor dos direitos dos consumidores.
As empresas fazem suas campanhas de marketing, de vendas, suas ações de responsabilidade social (reais ou aparentes) para esses brasileiros que têm poder de consumo de razoável, a maioria, para bom, a minoria. Ninguém ouve a classe média, contudo -exceto em levantamentos para definir um novo produto ou um novo serviço.
É interessante que quem pague as contas, todas elas, seja tratado como se fosse invisível.
A classe média começa a colocar a mão no bolso antes de nascer, por intermédio dos pais e das mães. Pois se eles não tiverem como arcar com as mensalidades de um plano de saúde privado, as mães sofrerão em filas para marcar consultas, exames e outros procedimentos.
Nascer é caro, e depende de bons hospitais e médicos de qualidade.
Isso tem custo, que é pago, no mínimo, duas vezes: nos impostos que não garantem um bom sistema público de saúde e na contratação de planos particulares.
Pode-se alegar que as empresas bancam a maior parte da saúde suplementar para seus funcionários, mas isso volta, de alguma maneira, nos preços de produtos e serviços.
O jovem com alguma renda familiar é espoliado até na diversão, se gostar, por exemplo, de um simples jogo de videogame. Os tributos incidentes sobre esses produtos mais do que duplicam seus preços.
Também não é muito fácil exercer o direito de ir e vir em grandes cidades, pois o transporte público é ruim, desconfortável e lotado. Os veículos particulares rodam em ruas, avenidas e estradas esburacadas, pagam pedágios caros e sofrem nas mãos dos produtores de álcool, que decidem fabricar açúcar em vez do combustível porque o mercado externo tem forte demanda.
Os preços da gasolina beiram os R$ 3 por litro, e os do álcool não estão muito distantes disso.
Namorar não é das atividades mais baratas, porque o lazer é caro nos shopping centers da vida. Mas casar, bem, isso sim exige dinheiro e paciência com os preparativos e a qualidade oscilante dos serviços.
O pacote completo -documentos, cerimônia religiosa e festa- consome milhares de reais.
Justamente quando o novo casal necessita de uma moradia, própria ou alugada. Há mais crédito habitacional, mas as taxas se somam em desfavor dos jovens. Muita papelada, gastos e mais gastos.
Ao longo de sua vida, os consumidores de classe média pagarão as contas de energia elétrica, de telefonia fixa e móvel, de acesso à banda larga e de TV por assinatura das mais salgadas do mundo.
Terão de fazer seguros automotivos, de vida e contribuir para a aposentadoria complementar -se puderem, evidentemente.
Dificilmente conseguem receber, contudo, quando fazem jus aos seguros que fizeram.
Todos estão de olho na classe média, então, mas ninguém faz nada por ela. Quando se afirma algo assim, nos acusam de defender quem já tem privilégios. Quais são as vantagens desses brasileiros?
Estudar muito, lutar por uma vaga no mercado de trabalho, pagar toneladas de tributos e não receber serviços públicos de qualidade? Não ter segurança em casa nem nas ruas, para eles, para suas famílias e para seus bens?
O capítulo final das vidas também é movido a muito dinheiro. Funerárias já contam com planos especiais, com mensalidades pagas durante a vida, para bancar a última viagem.
Se as agências reguladoras funcionassem bem e equilibrassem o jogo empresas-consumidores, a trajetória aqui descrita seria menos sofrida. Se a Justiça fosse célere e enquadrasse os poderosos, também.
Na verdade, o que a maioria ama não é a classe média, e sim o que ela conquista com trabalho e muito suor, para bancar um estado caro e ineficiente, que não consegue nem assegurar aeroportos e estádios para uma Copa do Mundo.
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*MARIA INÊS DOLCI, 56, advogada formada pela USP com especialização em business, é especialista em direito do consumidor e coordenadora institucional da ProTeste Associação de Consumidores. Escreve quinzenalmente, às segundas, nesta coluna. Internet: mariainesdolci.folha.blog.uol.com.br
Fonte: Folha online, 02/05/2011
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