sábado, 9 de maio de 2015

AMORES LÍQUIDOS NO ADMIRÁVEL MUNDO NOVO

Sílvia Marques*
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Este artigo objetiva refletir a precariedade das relações afetivas a partir do pensamento de Bauman e Aldous Huxley.


Ontem, tive um insight. Apesar de ser apreciadora do romance profético Admirável mundo novo de Aldous Huxley , livro que li na faculdade indicado pelo meu professor de Filosofia ( o brilhante Felipe Pondé) e citar Bauman em muitas de minhas aulas no curso de Comunicação Social, apenas ontem juntei lé com cré e talvez tenha descoberto o porquê da série de desastres afetivos vivenciados por mim.

Ontem, antes de ir para mais uma aula, senti um misto de melancolia e alívio ao mesmo tempo. Continuo defendendo a ideia de que o amor existe e de que muitos casais conseguem construir relações estáveis e duradouras. Continuo acreditando na beleza de um casamento longo, pautado pelas renúncias mútuas e pelo companheirismo irrestrito.

Mas por outro lado, comecei a perceber que talvez este tipo de amor resignado, doce, companheiro, fiel, esteja cada vez mais raro e encontrá-lo se tornou quase um golpe de sorte como ganhar na loteria.
Baumam, o sociólogo polonês que já publicou mais de 60 livros ( mais de 30 traduzidos para o português) defendeu em suas obras a liquidez da pós-modernidade. Entre seus livros famosos estão Amor líquido, Modernidade líquida, Vidas desperdiçadas e Vida para o consumo: a transformação das pessoas em mercadoria.

Bauman critica veementemente o consumismo e a liquidez das relações. Hoje tudo é feito para ser usado e descartado, desde objetos até empregos, relações de amizade e relações conjugais. Vivemos a Era do descarte. Costumo dizer em minhas aulas baseada nos textos que leio que o Marketing é a ciência do século XXI. Tudo passa pelo Marketing porque tudo virou produto.

O jornalismo está cada vez mais comprometido com o consumismo ao invés de denunciar a realidade. A educação está se transformando numa das categorias mais vis de comércio, a arte cada vez mais silenciada, as novelas cada vez mais distantes da cultura popular e cada vez mais atreladas à cultura de massa, os prestadores de serviços de um modo geral cada vez mais preocupados com a autoimagem e o status, incluindo médicos e advogados. E nas relações pessoais, tudo é página virada do meu folhetim, como diria Chico Buarque.

Objetos, empregos e relações foram feitos para serem descartados brevemente. Tudo precisa ser cool e light. Começamos ignorar que é no peso que nos fortalecemos, que aprendemos, que ensinamos, que deixamos um pouco de nós aos outros e os outros deixam algo deles para nós. O amor de uma mulher por seu filhinho é cool e light? Se o bebê adoece e corre risco de morte , a mãe simplesmente entende que aquela relação já cumpriu o seu ciclo? E é aí que entra o pensamento do escritor Aldous Huxley.

Quem não se envolve, quem não ama, quem não sofre, não vive. Sobrevive. No livro Admirável mundo novo, as pessoas não podem encontrar mais de três vezes o mesmo parceiro sexual. Transar é cool. Se envolver, se apaixonar, amar verdadeiramente é pesado, doentio, imoral, passível de punição. As pessoas não param de tomar cápsulas para se sentirem artificialmente felizes. Alguma semelhança com o nosso tempo?

Talvez aquele amor perseverante, feito para durar tenha se perdido junto com o último ou penúltimo modelo de Smartphone e alguns casais iluminados conseguiram sobreviver a este lixão afetivo em que se transformou a vida da maioria das pessoas, mesmo contra a vontade delas.

Os desafios que deveriam fortalecer as relações , são os principais motivos de descarte. Ficou complicado demais? Melhor partir para outra. Obviamente algumas relações devem acabar mesmo. Alguém que coloca a nossa sanidade física e emocional em risco não merece ser o nosso parceiro. O problema é que a menor das incompatibilidades vira motivo para o the end.

Não aceito e nunca aceitarei este tipo pobre de relação. Um ano com o João, seis meses com o Pedro, dois anos com o Tiago. Com um dei boas risadas e visitei a Grécia. Com outro, me dei bem na cama e aprendi a comer comida tailandesa. Com o terceiro, tive altos papos e aprendi mais sobre mim ( os exemplos citados são ficcionais). Não! Não quero fazer uma coleção de experiências , um mosaico de amores , onde tiro uma lição de cada relação. Quero o amor do vovô e da vovó: chato, implicante, cansativo, mas cheio de afeto, cuidado e integridade. E se não puder tê-lo, prefiro a solidão. Para mim não há nada mais pesado do que uma vida cool.
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*Sílvia Marques é paulistana, escritora, bacharel em Cinema , professora universitária e doutora em Comunicação e Semiótica..
Fonte: http://obviousmag.org/cinema_pensante/2015/05/

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