Vito Mancuso*
"Há uma diferença, contudo, em relação ao filósofo alemão, ou
seja, não é mais o 'espírito objetivo' que mantém o primado sobre o
'espirito subjetivo', mas o contrário. Está ocorrendo hoje uma
reescritura radical da relação indivíduo e sociedade",
O resultado do referendo irlandês vem de longe. Mais de 62 por cento
dos eleitores disseram sim ao casamento gay. É a luta pelos direitos
humanos.
A luta iniciada há mais de dois séculos, em nome da igualdade,
produziu uma série de conquistas sociais tais como sufrágio universal,
liberdade de imprensa, liberdade religiosa, educação para todos,
igualdade de gênero no direito da família, superação legal da
discriminação racial e outros objetivos deste tipo, todos ligados ao
valor da igualdade dos seres humanos. Sábado, a maioria dos irlandeses confirmaram: "Yes, equality ".
Nestas transformações dos costumes e do direito manifesta-se a evolução da cultura e do pensamento, fruto do que Hegel
chamou "Espírito do Mundo", no sentido de não sermos nós os donos das
nossas ideias, mas são as ideias que tomam conta de nós. Há uma
diferença, contudo, em relação ao filósofo alemão, ou seja, não é mais o
"espírito objetivo" que mantém o primado sobre o "espirito subjetivo",
mas o contrário.
Está ocorrendo hoje uma reescritura radical da relação indivíduo e sociedade:
o primado não é mais da sociedade e suas instituições às quais o
indivíduo deve se submeter, como nos séculos passados, mas é do
indivíduo, a quem a sociedade precisa se adaptar, em vista da felicidade
e realização do mesmo. Antes os indivíduos se curvavam às instituições,
agora são as instituições que se curvam aos indivíduos, até mesmo
mudando a Constituição, como ocorreu Irlanda.
O valor em jogo aqui é o direito de cada ser humano ter um amor
integral. Até recentemente, nos países mais avançados do mundo (embora
na Itália até hoje), se uma pessoa nascesse com uma orientação de tipo homossexual,
era-lhe negado o direito ao amor integral, que não se limita ao espaço
de uma paixão privada, mas que deseja um estatuto público, no sentido de
definir a identidade social da pessoa, não mais solteiro, mas ligado a
outra pessoa, em permanente comunidade de vida. E o desejo do amor de
adquirir uma dimensão pública, leva as pessoas ao casamento, e não
simplesmente à coabitar. Quem deseja casar não consegue mais pensar em
si mesmo prescindindo do outro, e pede à sociedade o reconhecimento público
do seu novo estado, mudando, por assim dizer, sua carteira de
identidade social, dizendo ao mundo: "Não sou mais somente eu, estou
unido outro". Isto é o que chamo de "amor cheio" e que penso ser um
direito constitutivo de todo ser humano. A aspiração ao amor integral
deve ser reconhecido como direito inalienável, adquirido no momento do
nascimento, um direto nativo, radical, do qual ninguém pode ser privado.
Chegou o momento também para nós de sustentar, de forma explícita,
que todos têm o direito à plena realização no amor integral, sem
distinção. O atraso italiano não deve ser preenchido somente pelo
reconhecimento de uniões civis, sem falar de casamento,
mas é necessário seguir adiante com o casamento para casais gays,
porque nisto estão em jogo a igualdade e o direito nativo ao amor
integral.
O sentido abrangente deste movimento é altamente evangélico, porque
sempre, quando triunfa a singularidade da pessoa em relação à lógica de
Estado das instituições e das tradições, afirma-se o ponto de vista de
Jesus, de que o sábado era para o homem e não o homem para o sábado. Mas
por isso ele foi eliminado pelo poder institucional. A Igreja
hierárquica, no entanto, ainda não o compreendeu. Não compreendeu em
1789, quando o movimento começou, e não compreendeu nestes dias, na Irlanda,
com os bispos lançando um apelo pelo "respeito dos valores da família
tradicional ". Os fieis individualmente, sim. A não ser que se considere
que os cristãos, numa nação entre as mais Católicas do mundo, sejam
apenas 37,9%, deve-se admitir que, para a maioria dos fiéis, as posições
da hierarquia católica não têm qualquer relevância quando estão em jogo
questões éticas e de direitos humanos. O arcebispo de Dublin
disse que agora "a Igreja terá de fazer as contas com realidade". É
verdade, e espero que alguma coisa aconteça. Mas, ainda mais importante é
que as contas com a realidade sejam feitas pela política italiana,
dando ao país uma lei que permita a todos os cidadãos viver, na
plenitude do casamento, o direito nativo ao amor integral.
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* Vito Mancuso, professor da Universidade de Pádua, em artigo publicado pelo jornal La Repubblica, 25-05-2015. A tradução é de Ramiro Mincato.
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