domingo, 10 de maio de 2015

ÓCIO NÃO CRIATIVO

 Diana Lichtenstein Corso*
 
Na minha infância, ficar doente não era tão mau negócio assim. A convalescença era um tempo de regalias e uma boa dose de atenção extra. Claro, não valia se fosse algo grave, que significasse preocupação, hospital ou, o pior de tudo: injeção. Tínhamos sarampo, varicela, coqueluche, caxumba, pegávamos tudo, pois não havia vacina para a maior parte delas. Quando um irmão, parente ou amigo aparecia doente, éramos levados para “pegar de uma vez”. Nas famíias numerosas, essas doençs faziam tantas víimas quantas criançs houvesse na casa. Um amigo meu conta que uma das suas maiores tristezas era de que ele nunca pegava n a d a , s e n t i a - s e privado das vantagens dos doentes.

A prescrição de repouso era coisa séria, tínhamos que ficar deitados, de pijama, durante dias a fio. Para nos distrair, além da permissão para ver um pouco mais de tevê, havia as revistinhas e os livros para colorir. A comida, embora em geral parente da canja, tinha a enorme vantagem de ser na cama. Enfim, ficar doente era ser rei por uns dias, as coceiras e febres até que compensavam. Naquela época, esse tratamento era excepcional: ser criança não era tão importante como hoje, em que se pensa na diversão delas o tempo todo e elas têm mais brinquedos e estímulos do que conseguem inventariar e aproveitar.

A lembrança desses tempos de ócio e mimos está fortemente associada aos livros de colorir que, para minha surpresa, tornaram-se uma coqueluche (para manter-se no tema) entre os adultos. São publicações com títulos como Jardim Secreto, Floresta Encantada ou Jardim Encantado, com gravuras lindas, detalhistas, que exigem muita atenção, dias de trabalho e mão firme para serem preenchidas. Tentei comprar um desses e fui informada de que os milhares de exemplares estavam esgotados, aguardava-se uma nova edição de 200 mil.

Os livros de colorir não são criativos, não servem para nada e não é preciso pensar. A escolha da cor é o máximo de desafio que eles requerem. Alguém criou esses jardins de traços para que pudéssemos habitar seus espaços vazios com nossas cores da infância. Talvez estejamos mesmo meio doentinhos, precisando de uma canja na cama, de ficar parados sem culpa. O bom daquelas doenças, em que éramos objeto de cuidados especiais, era o fato de que não havia culpa, pegava-se sarampo porque era o certo a se fazer naquele momento da vida. Agora, quando adoecemos, nos penitenciamos por estar cuidando pouco do nosso corpo, há de se fazer mais exercícios, prestar mais atenção na alimentação, organizar melhor nosso tempo, devemos dormir mais e melhor. Estamos exaustos de tanto mais, sempre mais. Não estranha que tanta gente esteja optando por ficar com os lápis de cor na mão por dias, completando espaços em branco. Também quero.
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*Psicanalista dianamcorso@gmail.com
Fonte: ZH online, 10/05/2015
foto da Internet

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