Luiz Felipe Pondé*
Berramos que 'é proibido crianças trabalharem como escravas', mas gostamos de preços baixos no shopping
Muitas vezes escutamos frases como "o mundo está pegando fogo" ou "nunca houve tanta violência".
Outra vezes, algumas pessoas, querendo ser mais precisas, levantam
questões como "não está pior, apenas tem mais mídia e, por isso, sabemos
de tudo mais rápido".
Ou ainda: "agora tem mais gente no mundo, por isso, mais violência".
Alguns, mais "místicos", arriscam ideias de que mesmo terremotos se
acumulam na Terra agora.
Enfim, comparações assim tendem a ser inconsistentes porque simplesmente
não temos como saber como era a violência há cem mil anos ou quantos
terremotos aconteceram há 500 mil anos (provavelmente, bem mais do que
agora, aliás).
Se contássemos as pessoas que os marxistas mataram no século 20
deixaríamos qualquer jihadista inseguro com relação a sua eficácia
assassina. Quanto à fome, bem, sempre houve pobreza no mundo, porque a
pobreza é como a gravidade --quem parar de bater as asas cai nela de
volta. A riqueza é que é a coisa nova na face da Terra.
Mas, ainda assim, muitos continuam a ficar perplexos com o mundo
contemporâneo. O número de mortes causadas pelo terrorismo! Africanos
mortos tentando chegar a Europa! Fome na África! A Rússia engolindo a
Ucrânia! Os Estados Unidos do Obama mais perdidos do que cego em
tiroteio com o projeto nuclear do Irã! A Europa, coitada, se esforçando
para manter a dignidade em cima do salto alto!
A China continua indiferente ao papo que Marx chamava de "humanismo
burguês", ou seja, nossa hipocrisia ao fingirmos que nos preocupamos com
o sofrimento alheio para jantarmos com a consciência limpa no sábado a
noite com amigos.
Quer ver? Apesar de berrarmos "é proibido crianças trabalharem em
condição de escravidão", continuamos a gostar de preços baixos no
shopping.
No Oriente Médio, os países insistem em não dialogar e resistem à máxima
"ame ao próximo como a ti mesmo" (como se ela tivesse algo de óbvio). O
Islã continua a dividir o mundo entre "o reino do Islã" (ou da paz e da
submissão) e "o reino da guerra" (todo o resto a ser combatido e
convertido). Os israelenses continuam a fazer a conta e chegar à
conclusão de que os árabes tem muito mais terra e, por isso, deveriam
cuidar dos seus (os palestinos).
Afinal, o que toda essa gente tem na cabeça? "Como assim?!", grita o
tolinho de plantão. O mundo continua deixando um rastro de sangue por
onde passa? Afinal, o mundo teria perdido seu rumo?
Não, o mundo nunca teve rumo. E nunca terá. Mesmo quando vive séculos
sob a força de um ou mais poderes "globais", toda ordem mundial é, no
fim, uma forma de ilusão ou provincianismo geográfico.
A única coisa que permanece na "ordem global" é o processo interminável
de povos devorando outros povos, como dizia o crítico americano Edmund
Wilson.
Mas, por uns poucos séculos, achamos que tínhamos uma ordem global --pelo menos pensavam assim os europeus e os americanos.
Segundo o que nos diz Henry Kissinger (que ocupou cargos importantes em
geopolítica nos governos de Richard Nixon e Gerald Ford nos anos 1970)
no seu brilhante "Ordem Mundial" (ed. Objetiva, R$ 54,90, 432 págs.), do
século 17 ao final do 20, vivemos mais ou menos sob a crença na
existência de Estados independentes como unidade mínima geopolítica.
Essa ideia, herdada da Paz de Vestfália (1648), assinada entre católicos
e protestantes para por fim à guerra dos trinta anos no que hoje
chamamos de Alemanha, a grosso modo.
Segundo o tratado, pouco importa no que se acredita em cada Estado,
contanto que a violência entre os Estados seja reduzida ao seu mínimo
possível. Logo, ninguém se mete na vida interna do outro Estado e se
respeita as fronteiras.
Essas unidades geopolíticas agiriam segundo o princípio de redução da
violência entre todos, presumindo uma paz pragmática como o melhor dos
mundos possível. E, neste mundo, os negócios progrediriam, assim como
nos comerciais da CNN.
Infelizmente, o mundo nunca teve rumo. Um dos maiores equívocos de nós
modernos, filhos da ordem burguesa de Vestfália, é pensarmos que todos
"só querem ganhar dinheiro e viver na monotonia da paz".
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* Filósofo. Escritor. Prof. Universitário
Fonte: Folha online, 04/05/2015
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