Américo Pereira*
Vivemos num mundo em que o sentido da mediação como absoluta
necessidade para que possa haver movimento, diferenciação, está em
risco de desaparecer.
Nas pessoas com maior poder económico, as várias engenhocas
disponíveis para facilitar a realização de tarefas, associadas ao facto
de poderem contar com o esforço alheio – devidamente recompensado ou
não – para o mesmo fim, leva-as a pensar que os atos necessários para a
vida e os demais ocorrem como que por magia, isto é, como eles
próprios não são parte da mediação que realiza o que lhes surge como
pronto, vivem como se a vida não implicasse uma necessária presença em
ato, ato próprio de cada pessoa, em que esta é meio do movimento que
produz a diferença necessária para que possa haver precisamente vida e
vida humana.
Para viver de acordo com o que se considera ser o ótimo próprio,
basta acenar com a cabeça ou estalar os dedos, ou, ainda melhor,
apenas desejar: outros se esforçarão para que quem assim deseja tenha o
que anula tal desejo, preenchendo-o, realizando o seu objeto.
Sem o devido esforço mediacional próprio, isto é, exercido pelo
próprio, a realidade desmaterializa-se: tudo é fácil como se o sujeito
de tal pensar, de tal desejar, fosse uma entidade puramente espiritual
que habitasse um mundo de semelhante estofo ontológico.
O mundo em que tais pessoas vivem – e que para elas é real
enquanto dura neste modo – depende das mediações de terceiros.
Aparentemente mágico, não o é. De facto, o que parece ser alcançável
simplesmente através de um desejo implica, para que possa surgir e para
que surja, que uma qualquer mediação atue. Estas mediações são de dois
tipos, fundamentalmente, em termos da real realidade mundana: seres
humanos ou substitutos biológicos ou sintéticos destes, como as
máquinas. Mas, ainda estes últimos dependem da ação humana, pois quer
os elementos biológicos quer as máquinas têm de ser produto da ação
humana a nível da sua criação ou treino e condução.
Quer isto dizer que, não havendo magia, isto é, não havendo
realização de coisa alguma sem uma qualquer mediação que a opere, o que
para uns é produto vivido como mágico, é, para outros, os que, através
do seu trabalho substituem a inexistente magia, fruto de seu esforço.
Mesmo as relações com o divino, quando conscientemente as há,
sofrem desta perversão, pois, toma-se Deus por um fazedor de magia, que
tem a obrigação de usar os seus poderes de absoluta prestidigitação
para resolver todos os problemas que quer os seres humanos quer os seus
auxiliares biológicos ou mecânicos não conseguem. Deus, para tais
pessoas, é o servo mais precioso, pois é aquele a que se recorre quando
todos os outros meios que magicamente nos servem falham.
Se acontece, por coincidência, ao movimento mediacional dos atos
que constituem o mundo servir os intentos de tais pessoas, Deus é
apreciado positivamente, como se valoriza o fantástico faz-tudo que
repara as avarias ou o fornecedor que aporta os bens de que se carece,
de que cada vez mais se carece, porque a vida vivida de modo mágico,
sem esforço próprio, esgota-se na evanescência da imponderabilidade do
que nos acontece sem que sejamos nós a razão real por que tal acontece.
A vida vivida segundo um modo mágico reduz-se a uma contínua
paixão, sucessivamente atualizada por isso que nos afeta a partir de
uma necessária exterioridade, porque, depois de tanto tempo sem servir
de mediação a meu próprio ato, desapareço como tal, como ato, para ser
apenas uma consequência das mediações exteriores que me vão mantendo
passionalmente como algo que ainda é, mas que já não é algo
irredutivelmente próprio, antes uma mera função passiva e passional de
atos terceiros.
Findos estes, acabadas todas as paixões, cesso de existir
verdadeiramente, sou indistinguível de um cadáver, no que ao sentido
diz respeito. Tanto dependi magicamente das mediações de terceiros que a
elas me alienei, me reduzi e, quando fico só, porque deixei de ter
como poder de algum modo pagar tais mediações, encontro-me reduzido a
um nada semântico.
Tais mediações mágicas, compradas e pagas de modos vários – com
dinheiro, com o corpo, com a honra, etc. – são sempre formas de
alienação da minha substância e da minha essência próprias. Podem ser
constituídas por drogas várias, pelo poder político, qualquer, por
formas mágicas de relação religiosa. Mas, sendo formas de alienação do
fundamental que há em mim e que me constitui propriamente como pessoa,
quando cessam, eu, no que de fundamental tenho – e que era falso –
cesso também, passando de uma sobrevivente falsidade a uma sobrevivente
nulidade. É o preço necessário a pagar pela escolha do fácil caminho
da magia, da fuga ao necessário esforço do ato de meu ser, único que
pode criar a minha entidade própria, pois, salvo tal esforço, eu não
existo e não posso existir. Se o inferno é a medida do afastamento
relativamente a Deus, analogamente, esta é a realidade do inferno como
afastamento do ser humano relativamente a si próprio. Inferno este que,
ao invés do outro, não conta com a infinita misericórdia do objeto de
que se está afastado, simplesmente porque o ser humano afastado de si
próprio não é capaz de tal infinita misericórdia.
Mas há uma outra forma de magia, esta já não a dos possidentes,
mas a dos destituídos: a magia não como forma de parasitismo das
mediações de terceiros, mas como forma de substituição de uma realidade
que se reduz a servir de mediação para o bem dos outros. A magia assume
a forma de instrumentos de alienação, que permitem escapar
psicossemanticamente à condição de mera mediação de bens alheios. O
mundo enche-se de aparelhómetros, pois os outros seres humanos como
mediação mágica são demasiado dispendiosos, que permitem transpor sem
outras mediações os escravos para pseudo-mundos, em que já não são
meros escravos e instrumentos de bem alheio, mas outros senhores.
Vive-se na alienação do mundo dos jogos, das novelas, da
pornografia variada e facilmente acessível, em que a escrava pode ser
princesa, o cobarde conquistar mundos sucessivos, o impotente possuir a
imagem de fêmeas cuja beleza fabricada nunca encontrará disponível no
mundo da carne em que, como escravo, habita.
E a carne sofre a verdadeira trans-substanciação moderna: não a
passagem de uma densidade opaca a uma subtil formalização espiritual,
mas a passagem, segundo a magia que anula a dimensão material do corpo
como necessária mediação para a possibilidade da autonomia, isto é, para
a libertação da escravatura, de ser historicamente denso a coisa
duplamente des-substantivada – mera função do bem alheio e sobrevivente
alienado num nundo anistórico.
No paroxismo desta forma mágica de viver, a humanidade desaparece.
O mundo é o lugar das mediações e não há mundo sem mediações.
Quer na versão religiosa do mito da criação genesíaco quer na versão
laica científica, não há mundo sem mediações. O mundo é mediação,
relação efetiva e atual entre tudo o que o constitui, em permanente
movimento e evolução. Mas também, em ambas as narrativas, como o
princípio primeiro de que depende, extra ou intramundano.
Deixamos de parte a versão necessariamente intramundana da
ciência (que, se não fosse assim, passaria imediatamente a ser uma
qualquer forma de religião) e atentamos na versão genesíaca: o ato
lógico de Deus, a sua palavra criadora, é a primeira e a grande,
absoluta mediação. Esta mediação, que é um ato não-mágico – aliás, o
autor sagrado saboreia lentamente os seis longos dias de labor
mediacional – instaura, não uma coisa inerte e dada como pronta, mas
uma atualmente virtual infinitude de mediações possíveis e atuais, quer
dizer, o próprio mundo como conjunto imenso de relações possíveis e
atuais, que são o estofo próprio de sua possibilidade.
Dada esta mediação de mediações, Deus, significativamente,
descansa. Compete, agora, ao mundo, como mediação de si próprio, ser,
em absoluto. O ser do mundo é a sua atualidade mediacional agente. Deus
só atua rarissimamente e não o faz por magia, mas através da
utilização dos próprios meios com que dotou o mundo.
A grande exceção é mesmo a incarnação do Filho, que não é um ato
mágico, mas necessita da mediação do ventre de uma Mulher, sem o que
não haveria incarnação alguma. Assim também para tudo o que é
considerado milagroso, que não é mágico, mas implica apenas a
utilização inusual de meios já existentes. Lembre-se que a inflexão de
algo necessita de algo que se possa infletir. A não necessidade de algo
com que operar intramundanamente, isso, sim, seria magia. Mas tal
nunca acontece.
Ora, a figura do Incarnado é também a figura daquele que se
cumpre como ser humano porque não vive de modo mágico, porque não
substitui o ato próprio por qualquer forma de alienação: é o seu ato que
cumpre a sua máxima possibilidade. Cristo não manda a Mãe ou Pedro
morrer por ele na cruz; também não deixa de beber o cálice, isto é, não
substitui a realidade da cruz por uma farsa qualquer. É pregado e
morto e nem sequer aceita ser drogado para que lhe doa menos.
Este é o senhor que não tem escravos e que não é escravo, nem
sequer de seu escravo, porque o não tem. Cristo é a mediação
paradigmática. Cristo é a anulação da vida como magia parasitária ou
alienante.
Ora, já em Isaías, 6,8 se encontra o
paradigma do que é quer a ação modelar de Cristo quer o modo único de o
ser humano comum poder ser livre e autónomo. Diz assim o texto, sendo a
interrogação pertencente a Deus: «A quem enviarei, e quem há de ir por
nós? Disse eu: eis-me aqui, envia-me a mim.» (1)
Deus criou os meios. Todos. Imediatamente, no ato primeiro da
criação. Mediatamente, por ação dos primeiros em relação e movimento
evolutivo. Quando é necessário fazer, ir ou enviar, compete ao meio
fazer, ir, ser enviado.
Eu sou o meio, eu o enviado, eu o que vai, eu o que faz. Se não
for, porque o meio adequado sou eu, mais nada irá, não de forma
adequada. Nada substitui a mediação exata, precisa que é aquele que
depende de mim. Se a não operar, é um bem possível que se perde para
sempre. É isto é o princípio do mal e a sua realização. O mal sou eu
quando deixo de ser o meio, único, necessário para realizar o bem que
mais pessoa nenhuma pode realizar por mim. Afastando o bem do mundo do
melhor bem possível do mundo, que, no limite, é o próprio Deus, opero,
por definição, um ato infernal.
Afinal, deste ponto de vista, Sartre enganou-se: o inferno não
são os outros, sou eu, quando os traio e me traio como mediação
necessária. São os outros, sim, quando fazem precisamente isto mesmo
relativamente a mim.
Que inferno bem terreno foi esse proporcionado por aqueles que,
contemporâneos de Sartre, poderiam ter esmagado o nazismo no seu berço e
não o fizeram. Como exemplo, basta.
A versão dos Setenta do texto citado usa como forma verbal para o
«envio» «aposteilon me». Faz de mim apóstolo. Reside aqui a forma da
possibilidade da liberdade autónoma do ser humano: ser apóstolo do bem,
ser sempre e indefetivelmente mediação do bem. Ou ser apenas vão metal
que empurra moléculas de ar.
(1) Antigo Testamento Poliglota. Hebraico, grego, português inglês,
São Paulo, Sociedade Bíblica do Brasil, p. 1427; p. 1426 para a versão
grega. Neste sentido, a vida humana é um apostolado mediacional,
cumprimento da própria criação como possibilidade máxima de bem. O mal é
toda a falha neste apostolado.
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* Universidade Católica Portuguesa, Faculdade de Ciências Humanas
Publicado em 25.05.2015
Publicado em 25.05.2015
Fonte: http://www.snpcultura.org/eis_me_aqui_envia_me_a_mim.html
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