Os poucos meses que já se passaram nesse segundo mandato da presidente Dilma Rousseff, o quarto sob o comando do Partido dos Trabalhadores, podem trazer
sensações tão díspares quanto intensas. De um lado, a briga de facções
que se instalou entre o governismo, envergonhado e tacanho, e forças
oposicionistas, oportunistas e golpistas. De outro, a apatia de setores
médios da população e a revolta entre forças políticas e sociais
progressistas.
O cenário não poderia ser muito diferente para um governo que se
elegeu sob marketing eleitoral mentiroso e que, nem bem iniciado o
segundo mandato, parecia velho. Para complicar, um governo que, nesse
exato momento, dá mostras de nem mesmo estar governando de fato.
Para ajudar a compreender essa intrincada conjuntura política
nacional, o Correio da Cidadania entrevistou André Singer, professor da
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e autor de
importantes obras de interpretação sócio-política da realidade nacional,
dentre elas, aquelas que se destinam ao entendimento do fenômeno
chamado de ‘lulismo’.
Singer ressalta a fraqueza política do atual governo – algo que teria
suas sementes já em 2012, desde que as pressões por um ajuste recessivo
se reforçaram, ameaçando o ensaio desenvolvimentista do começo do
primeiro mandato da presidente Dilma. “Olhando pelo ângulo da pressão do
capital, era praticamente certo que seria feito o que estamos vendo
agora. Surpreendente é que, durante a campanha para a reeleição, a
presidente optou por um discurso à esquerda, o que mobilizou setores da
sociedade para um engajamento em sua campanha, decisivo para a vitória.
Dessa forma, quando ela, 24 horas depois, deixou vazar que iria escolher
alguém do mercado para o Ministério da Fazenda, e confirmou, criou-se
uma decepção muito grande. Isso começou, assim, a desenhar um quadro de
enfraquecimento político”.
Ainda que a ideia do impeachment tenha atualmente expressão
institucional no país, já que encampada por segmentos poderosos do maior
partido de oposição, o PSDB, Singer acredita que a presidente irá
cumprir seu mandato. Quanto ao lulismo e o petismo, o cientista político
enxerga seus futuros em aberto. Mas é enfático em afirmar que o
primeiro atravessa o seu momento mais difícil e que o PT é hoje um
partido que gravita fundamentalmente em torno do lulismo. Isso, em sua
visão, significa que deixou de ser um “partido de classe”.
Singer discorre, finalmente, sobre os atuais protestos e
manifestações, pró e contra o governo, que ocorrem país afora e sobre as
possibilidades que se abrem para a atuação da esquerda. Como colunista
de um dos jornais de maior circulação no país, a Folha de S. Paulo, e
uma das raras vozes na mídia corporativa a trazer um debate alternativo e
progressista, dá sua opinião sobre a mídia hoje no Brasil.
Por Valéria Nader e Gabriel Brito, da Redação
Colaborou Raphael Sanz
Correio da Cidadania: Aumentos tarifários, desaceleração
econômica, crise hídrica e elétrica, escândalos de corrupção. Como vê
hoje o país e o seu governo, que pareceu velho nem bem iniciado o
segundo mandato e que agora dá mostras de quase nem mesmo estar
governando de fato?
André Singer: No que diz respeito à economia, meu
enfoque é político, já que não sou economista. Mas, pelo que vejo, a
situação de hoje precisa ser compreendida à luz do que vem ocorrendo
desde 2012. Creio que a presidente Dilma tentou, entre 2011 e 2012,
fazer uma suave, porém importante, inflexão da política econômica, no
sentido de tentar modificar o chamado tripé macroeconômico neoliberal.
Ela produziu uma importante redução da taxa de juros, chegamos perto de
uma taxa real de 1,5% em sua fase mais baixa, o que é muito
significativo na economia brasileira. Produziu uma pequena
desvalorização do real e algumas ações no sentido de controle cambial,
fundamentais para a retomada da indústria brasileira. E,
simultaneamente, manteve o investimento público, que já vinha desde o
segundo governo Lula.
Portanto, esse conjunto de ações apontava na direção de uma retomada
do crescimento, com reindustrialização e aceleração da distribuição de
renda. Entre 2011 e 2012, poder-se-ia dizer que as melhores promessas da
campanha de 2010 eram cumpridas. O problema é que o projeto, ao qual
chamo de ensaio desenvolvimentista, deu errado. No sentido de que o
investimento, em lugar de crescer, caiu, já em 2012, e a inflação deu
uma pequena subida. A soma dessas duas coisas criou uma situação bem
difícil para o governo Dilma.
Do ponto de vista político, o assunto que mais interessa, ou que
melhor conheço, houve uma recomposição do empresariado e da burguesia
brasileira, que tinha se dividido entre duas frações: uma rentista e
outra produtivista. Essa divisão ficou mais clara no segundo governo
Lula, mas vinha se mostrando desde o primeiro.
Paradoxalmente, em 2012 houve uma recomposição em torno das bandeiras
neoliberais. E ninguém sabe muito bem por que isso aconteceu. Minha
hipótese é de que tenha sido por razões políticas, mas não é o que
interessa discutir aqui. O fato é que aconteceu.
Dilma chegou no final de 2012 numa situação econômica um pouco
difícil e com uma frente burguesa inteira contra ela, cobrando aquilo
que está sendo feito agora. Entre 2012 e 2014, na verdade, a presidente
de certa forma adiou o processo, o fez pela metade, porque autorizou o
BC a aumentar juros novamente, o que, em certa medida, tem a ver com a
inflação, mas, por outro lado, impede o processo desenvolvimentista.
Ao mesmo tempo, ela seguiu algumas das políticas desenvolvimentistas
polêmicas do ponto de vista da esquerda: através das desonerações da
folha de pagamentos, uma reivindicação importante dos industriais para
aumentar a competitividade da indústria brasileira, mas que, no médio e
longo prazo, se dá às custas da previdência dos trabalhadores. No
primeiro momento, o Tesouro segura, mas depois haverá cobrança sobre a
previdência.
Assim, digamos que 2013 e 2014 foram anos de política híbrida, pois
não se teve mais condição de continuar desvalorizando o real por conta
do impacto sobre a inflação e da subida de preços dos produtos
importados. Dessa forma, seria preciso começar a produzir aqui,
imediatamente. Se não tem investimento pra isso, não tem produção e a
equação não fecha.
Resultado: a pressão pelo ajuste recessivo veio crescendo ao longo
dos anos, de tal forma que, olhando pelo ângulo da pressão do capital,
era praticamente certo que seria feito o que estamos vendo agora.
Surpreendente é que, durante a campanha para a reeleição, a presidente
optou por um discurso à esquerda, o que mobilizou setores da sociedade
para um engajamento em sua campanha, decisivo para a vitória.
Dessa forma, quando ela, 24 horas depois, deixou vazar que iria
escolher alguém do mercado para o Ministério da Fazenda, e confirmou,
criou-se uma decepção muito grande. E um sentimento de engano muito
forte. Isso começou, assim, a desenhar um quadro de enfraquecimento
político, que foi se acentuar na medida em que essa política de ajuste
recessivo já pegou a economia em uma condição ruim. A economia já tinha
parado em 2014, já tínhamos uma espécie de prenúncios vagos de
desemprego, que vieram a se concretizar. E o ajuste acentua a paralisia e
o retrocesso econômico.
Esse cenário potencializa rapidamente decepção em setores mais
progressistas. E há um segundo elemento de fraqueza política, bastante
grave, e que se combina aos fatores de crise: de um lado, a investigação
da operação Lava Jato, que, não obstante podermos discutir diversos
aspectos de como interpretar o assunto, bem complexo, é, evidentemente,
um grande escândalo de corrupção, e pega a base do governo. Há políticos
do PSDB aqui e ali envolvidos, mas a base de governo está no centro e é
o alvo de um importante desgaste. De outro lado, ocorreu o erro tático
de se disputar a presidência da Câmara contra o Eduardo Cunha e sofrer
uma derrota visível, que deu muita liberdade ao Cunha de se colocar numa
posição que, na realidade, é de oposição ao governo.
Combinados esses elementos, temos um governo que começa muito fraco e
com um ajuste recessivo que ninguém sabe bem até onde vai. Lendo os
economistas, vemos um grau de incerteza. Há aqueles que dizem que será
um ajuste mais rápido e suave, tem quem diga que será longo e
catastrófico, e tem quem fica no meio termo. No fundo, ninguém sabe o
que vai acontecer e onde o processo vai parar. É o panorama em que nos
encontramos hoje.
Correio da Cidadania: Diante de todo esse quadro, acredita
que vivemos, de alguma forma, uma crise institucional no país, inclusive
com a possibilidade de eventual abertura de um processo de impeachment,
ou mesmo de uma renúncia de fato da presidente, até pela celeuma criada
até aqui? O que resultaria para o país em um tal cenário?
André Singer: Estamos em uma situação em que tais
cenários se colocam. Portanto, há a possibilidade de uma crise
institucional – que não está dada. Um elemento muito importante é que os
militares mostram interesse zero em intervir na cena política. Estamos
diante de uma situação que favorece saídas democráticas para a crise.
Por esse ponto de vista, o quadro é muito diferente de 1964. Por outro
lado, um governo muito fraco dá ensejo a movimentos de impeachment, os
quais considero movimentos de golpe branco. Por mais que setores da
sociedade não gostem do governo, e têm esse direito democrático, o
impeachment não pode ser usado como forma de sub-parlamentarismo.
Ou seja, não se pode destituir um governo simplesmente por estar
fraco, este não pode ser o pretexto de impeachment. O instrumento não
foi feito pra isso. Foi feito para que, em casos extremos, nos quais
ficarem comprovados crimes de responsabilidade, se abra um processo.
Impeachment serve para interromper uma situação na qual a presidência da
República está visivelmente comprometida com crimes de
responsabilidade. E não é o caso. Todo mundo sabe que a Dilma é uma
mandatária honesta, comprometida com valores republicanos. Pode-se fazer
todo tipo de crítica, mas um impeachment nessas condições seria um
golpe branco.
No entanto, não podemos deixar de enxergar que tal movimento existe
na sociedade. Creio que, até este momento, ainda é um movimento isolado.
Porém, já há setores significativos do PSDB que se manifestaram em
favor. Por enquanto, o PSDB, como partido, não aprovou tal proposta e
conteve os que são favoráveis. Mas, na bancada de deputados federais,
essa é uma posição significativa. E se o principal partido de oposição
compra a ideia, ela deixa de ser movimento isolado na sociedade, e passa
a ter expressão institucional.
Eu realmente faço votos de que isso não aconteça. E acho que todos
aqueles empenhados na solução democrática, onde me incluo, precisam
reconhecer que até agora o PSDB não tomou esse rumo. Precisamos trazer o
PSDB para a solução democrática, e não empurrá-lo para o lado de um
golpe branco. Com relação à renúncia, sempre haverá pressão nesse
sentido, hoje pequena. Acredito que a presidente tem uma biografia que
mostra capacidade de resistência suficiente pra não chegar a tal.
Estamos diante de um governo fraco. Tal fraqueza deverá continuar por
um período não pequeno, o que depende da economia, ainda que não
exclusivamente, sendo que ninguém sabe quanto tempo vai durar o processo
recessivo e o quão profundo será. Mas acredito que a presidente tem
condições de cumprir o mandato, que é o que devemos apoiar, mesmo
fazendo as críticas, como eu as faço, a respeito do ajuste recessivo,
que considero equivocado.
Correio da Cidadania: Você mencionou o sub-parlamentarismo.
Ainda que afastado por ora o espectro de uma renúncia ou impeachment,
não estamos, de um certo modo, já vivendo sob uma espécie de
sub-parlamentarismo, uma vez diante de um governo fraco, sem um comando
pleno da economia e da política nacionais? Teremos pela frente um tempo
sob esse sub-parlamentarismo que você mencionou?
André Singer: Não podemos nos confundir com as
palavras. Sem dúvida, é um governo fraco, começou fraco. De fato, Dilma
teve de delegar funções. Na economia, houve uma terceirização, o
Ministério da Fazenda aplica a política do PSDB. Na política, teve de
chamar o vice Michel Temer e entregar-lhe a articulação política, que
agora está na mão do PMDB. Existe essa espécie de delegação. Mas não
chamaria de sub-parlamentarismo, e sim de um governo presidencialista
fraco, num país hiper-presidencialista como o Brasil, não apenas no
sentido de que o presidente tem todas as atribuições de um presidente
dos EUA: ele também possui a atribuição de, até certo ponto legislar,
por meio de Medidas Provisórias e Decretos.
Portanto, é muito forte o presidencialismo aqui, a figura do
presidente dá o norte do país, é o centro em torno do qual gira a
política nacional. Na medida em que a presidência se enfraquece, temos
um teor de confusão e, até certo ponto, irracionalidade, porque as
forças começam a agir por si próprias, às vezes de acordo com interesses
apenas locais, mas com importantes repercussões na vida do país.
Veja-se, por exemplo, a questão da terceirização. Temos, assim, uma
situação instável, mas não chamaria de sub-parlamentarismo. Chamaria de
regime presidencialista de presidência fraca. Quão fraca e por quanto
tempo não sabemos, mas a situação é essa.
Penso que o Brasil precisa aprender a conviver com isso: em alguns
momentos, a presidência vai estar mais fraca, em outros, mais forte, mas
não deixa de ser a presidência da República. Esse é o nosso sistema de
governo. Precisamos, no conjunto da sociedade, não só nos acostumar a
esse contexto, como construir mecanismos para operar os conflitos, que
podem acontecer por diversos motivos. Presidência fraca não é
presidência inexistente.
Correio da Cidadania: Como um ideólogo e estudioso do que se
convencionou chamar de 'lulismo’, o que significa este conceito, em sua
origem e nas atuais circunstâncias históricas do país? E
o que responderia a outros estudiosos que veem hoje um esfacelamento da
“hegemonia lulista”, em função de se terem esgotado as condições
econômicas que deram base a um de seus sustentáculos essenciais, a
conciliação de classes - o que, na acepção de alguns estudiosos, como
Ruy Braga, está também associado ao fim do consentimento passivo das
massas populares?
André Singer: Só faço um reparo: eu não sou ideólogo
do lulismo. E aproveito a oportunidade de falar disso. Sou um analista
que tenta entender o processo político brasileiro. O conceito de lulismo
me pareceu útil pra compreender um determinado período. Mas a pergunta é
fundamental. É o momento mais difícil do lulismo, desde que começou – e
creio que começou a se gestar em 2003, não antes. Neste processo de 12
anos, é o momento mais difícil.
Pego a pergunta em termos literais, não para dar uma resposta
fechada, mas pra focar na questão da hegemonia. O que é hegemonia? Na
minha opinião, é a capacidade de direção, de dar uma orientação à
sociedade, a partir de determinadas frações ou coalizões de classe.
Diria que o lulismo vive seu momento mais difícil porque sua capacidade
de direção está em xeque. Fundamentalmente, pela razão de que, se este
ajuste recessivo tiver a profundidade que pensam os analistas mais
pessimistas – um quadro de alto desemprego, seguro-desemprego restrito
pela aprovação das novas regras, lei de terceirizações aprovada –,
teremos um conjunto de medidas que vão rebaixar o custo da mão de obra,
em outras palavras, o valor do trabalho. Trata-se de algo que põe sob
questão o modelo lulista.
O modelo lulista é uma política de redução da pobreza extrema, porém,
com repercussões favoráveis junto à classe trabalhadora organizada. À
medida que se reduz o desemprego, criam-se condições de luta pra classe
trabalhadora organizada. E foi isso que aconteceu nos últimos 12 anos.
Tanto que houve ganhos salariais. Se formos ver, não foram enormes, mas
no conjunto foram. Tanto no salário mínimo, que cresceu 70%, como nos
ganhos salariais das categorias que negociaram nos últimos 12 anos. Toda
negociação salarial tinha um ganho de 1%, 2%, 3%, o que na soma é
significativo.
Portanto, houve uma melhora da condição de vida dos trabalhadores em
geral. Não só dos muito pobres, que chamo de sub-proletariado, como
também dos trabalhadores organizados. Se agora passarmos a uma política
que diminua o valor da mão de obra, teremos uma novidade dentro do
lulismo que questiona o próprio modelo.
A segunda coisa que menciono: a base principal do lulismo não é a
classe trabalhadora organizada, embora ela seja indiretamente favorecida
por tais medidas. É o sub-proletariado. Acredito que, se a recessão for
muito profunda, afetará esse setor também, que até agora está
protegido, porque as medidas mais diretamente dirigidas a ele, como o
Bolsa família, continuam. Mas repare, por exemplo, que o Financiamento
Estudantil (FIES – não diretamente dirigido a esse setor, mas uma das
políticas de caráter importante desenhadas no período) está sendo
cortado. Claro, porque o tamanho do contingenciamento de recursos do
ajuste obriga tais cortes.
Assim, elementos importantes do lulismo estão sendo ameaçados. Talvez
a diferença na minha análise em relação a certos colegas é que não digo
que o processo chegou ao fim. O jogo está sendo jogado, e nesse sentido
temos de considerar a potencialidade do lulismo e a liderança,
especificamente, do ex-presidente Lula, que já parece mais disposto a
disputar em 2018. Portanto, dentro do jogo. Para estar no jogo, ele
precisa conter essas medidas, senão não estará dentro. Há uma razão
política, portanto, pela qual digo: não vamos decretar o fim do lulismo
antes que ele acabe, mas vamos reconhecer que existem problemas muito
sérios em jogo.
O que tenho dito repetidamente, e ainda vejo motivos pra sustentar, é
que há margens de manobras para o lulismo e o ex-presidente. Por isso
não adotei a ideia de sub-parlamentarismo. A presidente está acuada, mas
tem margens que pode utilizar, a depender de como a situação evoluir.
Volto a dizer: há setores de indeterminação, ninguém sabe.
Eu diria: ameaçado o lulismo está. A eleição de 2014 já abateu
setores lulistas, que decidiram votar no PSDB e se converteram a este
lado. Há, assim, realmente, grandes perigos, mas não decretaria o fim do
lulismo.
Correio da Cidadania: Quanto ao PT, partido há 12 anos no
comando do país, Chico de Oliveira, em entrevista ao Correio, narrou não
o enxergar hoje mais como um partido, mas como uma liderança
personificada, como uma expressão das forças que o lulismo agrega. O que
você tem a dizer sobre o partido e o seu futuro?
André Singer: Eu vi essas observações do professor
Chico de Oliveira, a quem respeito muito. Discordaria dele no seguinte:
mesmo que sejam um conjunto de forças lulistas, que giram em torno do
ex-presidente Lula, ainda é um partido. Com essas características. É,
digamos, uma marca não só do atual PT, mas da história dos partidos
populares brasileiros. E este não é um tipo de experiência que não se
veja em outros lugares do mundo, isto é, lideranças destacadas de alguma
maneira se tornarem dominantes no partido.
Na época da primeira guerra, o Weber dizia algo semelhante sobre a
Alemanha. Que o presidencialismo gera esse tipo de situação, porque os
candidatos a presidente com muita capacidade eleitoral subordinam o
partido. Num certo sentido, é até bom, dizia ele, porque tais lideranças
têm capacidade de dar orientação, enquanto, em partidos dominados por
uma burocracia, não se sabe por onde se orientar.
Quero dizer apenas o seguinte: eu concordo que hoje o PT gira em torno do lulismo. Foi o que tentei dizer no meu livro Os Sentidos do Lulismo, no capítulo 2, intitulado A segunda alma do Partido dos Trabalhadores.
Essa segunda alma é lulista. Não é mais o PT com a alma do Sion.
Portanto, mudaria um pouco mais a formulação: não é mais aquele partido.
Não é mesmo, e não é de hoje, não se trata de um fenômeno atual. Mas
ainda é um partido.
O que é atual é o seguinte: a Operação Lava Jato, na sequência do
Mensalão, é um golpe terrível e o PT tem de se haver com isso de algum
jeito, porque a autoridade moral do partido está sendo minada. E não há
partido que possa passar ligeiramente por algo do tipo. Terá de
enfrentar o problema. E agora surgem os primeiros sinais de que o fará.
Como exatamente, não sei, mas terá de enfrentar a questão.
Por outro lado, o partido está comprometido, pois decidiu fazer a
política da oposição no campo econômico, o que gera um desgaste enorme. O
partido está tendo de pagar, porque é o partido do governo, ele está
amarrado a este governo e, em certa medida, o governo não o consultou -
segundo declarações que li de figuras como o ex-governador Tarso Genro.
Portanto, acho que essas duas circunstâncias combinadas caracterizam um
momento extremamente difícil para o PT, o que é diferente das questões
que se aplicam ao lulismo, embora estejam relacionadas.
Correio da Cidadania: Há uma diversidade de vozes críticas
que trabalham com a noção do efeito perverso que o PT, com sua
trajetória posterior aos anos de maior combatividade, teve para o campo
progressista de esquerda. O que diria quanto ao que significou e
significa o PT para a esquerda e para sua eventual reconstrução?
André Singer: O PT se deslocou da posição de um
partido, outrora, nitidamente de esquerda, o que foi algo extraordinário
para o Brasil, pois, com a ilegalidade do Partido Comunista, nunca
tínhamos tido a experiência de um partido de classe legal. E durante 20
anos, entre 1980 e 2002, o PT foi um projeto bem sucedido de um partido
de classe no Brasil. Isso marcou a política brasileira do período. Com o
deslocamento para o lulismo, o PT continua sendo um partido do campo da
esquerda, é extremamente sólido, muito enraizado e capilarizado no
Brasil. E com o lulismo, tornou-se um partido popular.
Isso deu uma chance à esquerda que não foi aproveitada: houve um
momento em que setores que sempre votaram com os conservadores, e
estiveram sempre sob sua sombra, estavam, digamos, acessíveis para uma
visão mais à esquerda. O que não foi aproveitado, não houve a
politização que poderia ter havido, razão pela qual chegamos hoje a uma
situação complicada. Porque não há dúvida de que o PT é o principal
partido do campo da esquerda, no entanto, como se deslocou, não é mais
um partido de classe. Portanto, não tem mais o trabalho de politização
que fez durante seus primeiros 20 anos e que foi muito útil pra classe
trabalhadora brasileira.
Agora, como a esquerda brasileira vai se reorganizar? Uma parte dela
continua no PT, outra não está mais e há outros partidos que sempre
existiram fora do PT. Eu acho que o momento indicaria a formação de uma
frente de esquerda, que pudesse dar uma orientação para o conjunto das
forças progressistas numa hora tão delicada como essa. Porém, tal frente
passa por diversas questões, os interesses particulares de cada
partido, as diferenças dentro dos movimentos... Também existe a
tradicional e permanente tendência de a esquerda se dividir...
Sempre penso, mas talvez seja um pensamento desejoso, que a esquerda
talvez conseguisse repetir neste momento justamente o que foi o PT nos
anos 80: o grande guarda-chuva sob o qual inúmeros setores de esquerda,
que tinham muitas diferenças, conseguiram se aglutinar e manter unidos.
Seria preciso repetir uma operação desse grau de inteligência política.
Se será possível ou não, só o tempo dirá.
Correio da Cidadania: O que pensa da ‘divisão’ do país, com
manifestações sendo convocadas contra e a favor do governo, de modo a se
aproximarem muitas vezes a uma briga de facções? Como você enxerga tais
manifestações, as mais marcantes nos dias 13 e 15 de março?
André Singer: Por um certo ponto de vista, são
normais. Desde 2013, nas manifestações de junho, vivemos um processo de
agudização da luta de classes no país, de conflitos distributivos e
acirramento político. Portanto, é normal que num momento político como
esse as forças entrem nas ruas e façam manifestações públicas. Mas uma
novidade importante foi a potência das manifestações convocadas pela
oposição, ou por setores de oposição, em 15 de março e 12 de abril.
Foram muito grandes, sendo a primeira bem maior, mas a segunda ainda foi
grande, principalmente em São Paulo.
Elas expressam, a meu ver, uma novidade. Não é só a direita que foi
para a rua. É um fenômeno importante, no caso, o espraiamento do
antipetismo, um fenômeno social de relevo, que pegou a chamada classe
média tradicional em cheio. Com certas conotações de ódio que são muito
deletérias. Uma coisa é ter divergência política, disputar a orientação
do país; outra coisa é querer eliminar o adversário. E vejo uma
conotação antipopular nessa reação. Chego a qualificá-la quase como uma
reação contra o povo brasileiro, porque é uma reação contra a melhora
das condições de vida dos setores populares. Isso é muito ruim.
Porém, acho que também há muita gente de centro nas manifestações.
Tais pessoas, de centro, estão insatisfeitas com a situação do país, por
razões compreensíveis, e estão procurando uma saída, de tal modo que,
justamente pra voltar a falar de hegemonia e direção, é preciso
disputá-las e dar-lhes uma orientação. Minha expectativa seria que se
formasse uma frente de esquerda ampla o suficiente pra poder oferecer
uma alternativa ao que está sendo feito, em relação à saída recessiva
que vemos, e ver se construímos uma maioria em torno dessa opção, que
considero muito boa para o Brasil.
Correio da Cidadania: Qual a sua opinião sobre tantas
movimentações, greves e protestos sociais que têm acontecido país afora,
e que correm por fora daquelas que ocorrem com ‘dia marcado? Indicam a
possibilidade de incremento de massividade, quiçá um novo junho de 2013?
André Singer: Não. Junho de 2013 não vai se repetir.
Foi um processo confuso e muito misturado, de tendências políticas
antagônicas. E elas não têm por que estarem juntas novamente. Aquele
tipo de conformação não se repetirá. Não estou vendo nenhuma saída desse
tipo no curto prazo. Acho que viveremos um período longo de disputa, o
qual exigirá muita paciência e inteligência. Paciência no sentido de que
democracia é assim mesmo, quando a situação fica mais difícil e
disputada, os conflitos se acirram.
Acho importante dizer, e vale pra direita, esquerda e centro, que é
preciso apostar em saídas democráticas. Vamos disputar, mas
democraticamente. Isso faz bastante diferença. E inteligência, do ângulo
da esquerda, porque não será possível construir uma saída econômica
para o Brasil sem conformar uma grande maioria. Porque as saídas que a
esquerda gostaria envolvem confrontos com o capital internacional. Não
se faz esse confronto com chance de vitória se não houver uma ampla
maioria por trás. O problema todo é a construção dessa maioria. Por isso
insisto na questão de se construir a frente.
Correio da Cidadania: Mas olhando tantas greves e protestos,
sem muita conexão em nível nacional, mas em número crescente nos últimos
anos (a exemplo dos garis do Rio ou dos professores em São Paulo e
Paraná), acredita que possa surgir alguma força alternativa organizada
para além dos setores pró ou contra o governo, uma espécie de “terceira
via”?
André Singer: Esses movimentos mencionados, de fato,
existem, e são expressão da luta que está posta. Do mesmo modo que
temos setores de direita e centro indo para a rua em torno de um projeto
que considero regressivo, temos setores que começam a se mobilizar em
torno de seus interesses específicos, mas apontando a um projeto mais
progressista. A questão, novamente, é juntar tudo em torno de uma opção
que aponte para o conjunto.
Não falamos muito disso aqui, porque analisamos o ajuste recessivo,
mas, numa próxima oportunidade, talvez devamos falar das alternativas.
Não podemos só criticar. Não se trata apenas de resistir ao ajuste
recessivo, mas também de oferecer uma alternativa de direção. Assim, o
problema está em como conformar, ao mesmo tempo, uma grande frente que
envolva tais movimentos em voga, muito importantes, e também a
construção de um projeto factível de desenvolvimento do país.
Os problemas reais estão colocados. E não são simples de resolver.
Digamos que seria a combinação das duas coisas que permitiria pensar em
uma alternativa. Não falaria em terceira via, mas na elaboração de uma
alternativa progressista para esta crise.
Correio da Cidadania: Finalmente, como uma das raras vozes
com espaço na grande imprensa a trazer a visão de um campo mais
progressista, como tem visto a postura dessa mídia, tão criticada por
espectros políticos de esquerda, e chamada de golpista por
representantes do governo?
André Singer: Temos de ter uma posição de princípio a
favor da pluralidade dos meios de comunicação e sua absoluta liberdade.
E precisamos reconhecer que, com todos os problemas que têm os meios de
comunicação, eles são decisivos na fiscalização do poder dentro das
democracias. Podemos dizer que só se dá atenção a algumas denúncias, e
não a outras, o que deve ser considerado. Porém, não podemos deixar de
dizer que uma parte das denúncias tem revelado casos reais, não são
fatos inventadas. Portanto, é preciso partir do reconhecimento do papel
fiscalizador que os meios de comunicação exercem.
Posto isso, é verdade também que os meios de comunicação maiores
tendem a ter uma posição política, social e econômica conservadora.
Alguns deles preservam certa pluralidade dentro da qual é possível
abrigar pensamentos opostos. Mas, se olharmos a média, a tendência é uma
posição conservadora nos aspectos mencionados.
Portanto, cria-se um desequilíbrio no debate democrático, que pode
gerar uma distorção. Porque, se os pontos de vista principais não têm um
peso mais ou menos equivalente, de alguma maneira está se falseando a
realidade. E, num momento de crise, isso é o mais preocupante.
Porém, acho que as principais saídas estão naquilo que vocês fazem:
construir veículos que consigam se firmar e apresentar livremente pontos
de vista alternativos, também se apresentando ao debate. Não podemos
deixar que a bandeira da liberdade de imprensa e do respeito absoluto à
liberdade de expressão fique na mão dos liberais. Essa também é uma
bandeira socialista.
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Escrito por Valéria Nader e Gabriel Brito, da Redação Colaborou Raphael Sanz
Fonte: http://www.correiocidadania.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=10759:manchete130515&catid=34:manchete
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