Marcio Tavares do Amaral, professor da Escola de Comunicação da UFRJ há 44
anos, lança livro
sobre a história dos paradigmas filosóficos
- Gustavo Stephan
Professor emérito da UFRJ marca o início da cultura ocidental no século I, na patrística, e não na Grécia dos pré-socrático
RIO - Marcio Tavares d’Amaral não gosta muito de escrever.
Pelo menos é o que ele garante, apesar dos 22 livros já publicados. Seu
lugar preferido é a sala de aula, mais especificamente as da Escola de
Comunicação da UFRJ, onde é professor desde a sua fundação, foi
discípulo do filósofo Emmanuel Carneiro Leão, e chegou a professor
emérito. Contudo, cobrado pelos alunos, iniciou um projeto ambicioso:
escrever a história de 26 séculos dos paradigmas filosóficos, organizada
em oito volumes. O primeiro, que inaugura a série e chega em maio às
livrarias, aborda a patrística, escola de pensamento que vai do século I
ao século VIII.
A história contada em “Os assassinos do sol — Uma história
dos paradigmas filosóficos” (Editora UFRJ) é resultado de cursos de
pós-graduação ministrados entre 2002 e 2010, englobando dos
pré-socráticos a Nietzsche. Os estudantes o questionavam sobre como
citar o que era falado ali em seus artigos e teses e disseram que Amaral
estava devendo um livro. O professor considerou a demanda justa, já que
seus alunos foram as “cobaias” das suas reflexões, e se debruçou sobre
as transcrições de todos os cursos (ele mantém o hábito de gravá-los há
mais de 30 anos), a base para a escrita da obra. Assim, cada livro é
organizado não em capítulos, mas em aulas, e trazem a data em que cada
uma ocorreu.
Seu argumento é que a cultura ocidental nasceu no século I,
do cruzamento, nas suas palavras, “inimaginável” entre a cultura grega
do Ser, da razão e da filosofia com a cultura judaica de Deus, da fé e
da religião. Na origem desta cultura que ali surgia está a relação entre
razão e fé, que constitui então sua questão fundamental.
‘Não se trata de uma história da
filosofia porque a religião está junto, não é uma história da religião
porque a filosofia está junto, e também não é uma filosofia da história.
É uma outra coisa, um campo novo, algo que eu não vejo sendo feito por
aí.’
- Marcio Tavares d'AmaralProfessor e autor do livro "Assassinos do sol"
—
Essa relação é hipertensa e se mexe, se move, teve várias
configurações. Portanto, pode ser contada a história entre essas
diversas formas de relação entre razão e fé. E contar essa história é
contar a história da constituição dos paradigmas mentais da nossa
cultura, os quais a filosofia expressa melhor, desde o seu início até
agora, quando os pós-modernos dizem que ela acabou, que a História
acabou, que o Real não importa mais, a Verdade nem pensar, porque o que
há são simulações que funcionam, a eficácia e a funcionalidade
determinam a nossa sociedade globalizada pelo consumo — explica ele. —
Não se trata de uma história da filosofia porque a religião está junto,
não é uma história da religião porque a filosofia está junto, e também
não é uma filosofia da história. É uma outra coisa, um campo novo, algo
que eu não vejo sendo feito por aí.
PAIXÃO DE INFÂNCIA
Amaral
tinha 12 anos quando travou o primeiro contato com a filosofia. De
férias em Blumenau, sua cidade natal, começou a ler um livro que
encontrou na biblioteca do pai, “A história da filosofia”, de Will
Durant. Houve um encantamento radical e imediato. A partir daí, ele
conta, sempre olhou a filosofia através da sua história.
— Isso me resgatou de um grande perigo, o de me tornar
dogmático. Porque se eu adotasse determinado sistema de pensamento,
teria que ser coerente com ele. Aquilo se tornaria um rochedo que eu
defenderia contra todos os outros.
O título do livro é uma referência ao fato que, se os
pós-modernos estão certos e a cultura ocidental acabou, o sol se pôs
pela última vez, foi morto “nas nossas e pelas nossas mãos”. O professor
reconhece que a obra é um projeto ousado, uma história de longa duração
numa época de hiperespecialização do conhecimento, com um argumento
original e que começa pela desvalorizada patrística, e não pelos gregos
no século VI a.C., que só retornarão no segundo volume da série. Em
2006, ao apresentar o relatório de sua pesquisa para um órgão de
fomento, não teve a bolsa renovada depois de mais de 30 anos. No livro,
ele optou por não incluir notas de rodapé ou referências para facilitar a
leitura e listou, ao final, a bibliografia:
— Livros são para serem lidos, não “estudados”. São para dar
prazer, se possível. Uma montanha de notas e referências tornaria um
tema em si árido irremediavelmente chato. Eu espero que estes livros
sejam lidos. Se forem, vai dar uma polêmica grande. Tomara. Aí as coisas
se esclarecem.
O que seria uma história dos paradigmas filosóficos e qual a diferença para uma história da filosofia?
As
histórias da filosofia são histórias dos conteúdos, algo abundantemente
e maravilhosamente feito. Eu tive dois grandes mestres: Heidegger e
Foucault. De Foucault, o que mais retive foi a ideia de que o que
interessa é entender sob que condições as pessoas de determinada época
disseram e pensaram aquilo que disseram e pensaram. Chamo isso de
paradigmas, definidos como um conjunto de valores e regras que decide,
numa determinada época, o que pode ser dito, pensado, escrito.
‘Essa história precisava ser
contada porque, no momento atual, os pós-modernos, Lyotard à frente,
dizem que todas as metanarrativas de legitimação do Real que
o século
XIX produziu perderam credibilidade.’
- Marcio Tavares d'AmaralProfessor e autor do livro "Os assassinos do sol"
Essa história precisava ser contada porque, no momento atual, os
pós-modernos, Lyotard à frente, dizem que todas as metanarrativas de
legitimação do Real que o século XIX produziu perderam credibilidade. O
que está sendo dito aí é que não são os conteúdos que devem ser levados
em conta, mas as formas de pensar que produziram esses conteúdos. Os
pós-modernos dizem que esses paradigmas caducaram por si mesmos, não é
uma vitória pós-moderna. Se fosse, haveria um paradigma pós-moderno
lutando contra o moderno e tendo vencido. Não há. Então, ficar debatendo
com os pós-modernos se ainda há Verdade, ou se tudo é versão,
narrativa, no plano dos conteúdos, assume uma forma péssima de
ressentimento, de reatividade. Mas se eu puder entender qual é o
paradigma pós-moderno, porque ele existe por mais que eles não assumam,
posso entender como é possível ser propositivo. Porque nós somos
pós-modernos e modernos. Nas nossas vidas comuns funcionamos bem entre
real e virtual, fundamento e eficácia, verdade e simulacro. Trata-se de
conhecer os modelos mentais que conduziram a nossa história até o
momento em que o discurso pós-moderno diz que ela acabou. É preciso ter
em vista o fato de que esse discurso cola como uma pele ao mundo
globalizado, que caminha para os mercados, para a financeirização na
ordem do virtual, para o consumo de bens e serviços, mas também de
pessoas, corpos, subjetividades. Essa é a hipereficácia do sistema
globalizado. Mas há quatro bilhões de pessoas que vivem com até US$ 2
por dia, segundo o Banco Mundial. Elas não estão na ordem do consumo,
portanto não estão no mundo, como definido pelo processo de globalização
e pelo discurso pós-moderno. Se a História acabou, mais da metade da
humanidade está congelada no passado. Isso é um grande espanto. E a
filosofia sempre se moveu pelo espanto.
Por que sua história começa no século I, pela patrística, e não nos pré-socráticos, no VI a.C.?
Era
preciso definir um começo dessa história em função do meu tempo e
lugar, ou seja, o do discurso pós-moderno que diz que a História acabou.
Olhando para trás, fui determinar em que momento a nossa História, que
pode ter acabado, começou. Encontrei no Ocidente latino, na chegada da
cultura grega do Ser, que naquela altura tinha sido orientalmente
conservada em Bizâncio (hoje a Turquia). Alexandre já tinha helenizado o
mundo até a Índia e trazido de volta uma religiosidade que não existia.
Platão e Aristóteles estavam no Oriente. No Ocidente latino estavam
escolas consideradas menores, como o estoicismo, o epicurismo, o
ceticismo, o cinismo, pequenas escolas de origem grega, mas que não
foram para o Oriente, não eram bizantinas.
‘No século I o que veio foi mais o
espírito religioso do Oriente, fortemente representado pela cultura
judaica. Esse amálgama greco-judaico feito em território latino criou
uma cultura que não era nem grega nem judaica, porque era grega e
judaica.’
- Marcio Tavares d'Amaral Professor e autor do livro "Os assassinos do sol"
Quando se fez a translação de Bizâncio para Roma, no fim da República e
início do Império Romano, esses filósofos que vieram foram recebidos
pelos que ali estavam. E não vieram todos. Aristóteles, por exemplo, só
veio no século XI. No século I o que veio foi mais o espírito religioso
do Oriente, fortemente representado pela cultura judaica. Esse amálgama
greco-judaico feito em território latino criou uma cultura que não era
nem grega nem judaica, porque era grega e judaica. Isso é bem visível
nos primeiros escritos patrísticos, dos chamados padres apologetas, que
defendiam e propagavam a nova cultura, clamando a sua originalidade.
Essa cultura que começou ali é a cultura à qual nós pertencemos. Eu
tinha que começar a contar essa história a partir do seu nascimento. E
foi no século I, na patrística, no trabalho de filósofos-teólogos como
Tertuliano, Orígenes, autores que em geral não entram na história da
filosofia dos conteúdos, mas que deslocaram formas de pensar, criaram
paradigmas. Como posso dispor de toda a história, pois sei o que
aconteceu, é possível ver as repercussões desses deslocamentos em Santo
Agostinho, cinco séculos depois. Mas como temos que conhecer os nossos
avós, no segundo volume eu volto para os gregos, começo nos
pré-socráticos e termino às portas da patrística.
O livro traz personagens como Beda, o Venerável, que humanizam essa história. Era esse o seu objetivo?
Queria
que o leitor percebesse que essa história foi feita por pessoas. O ano
da morte de Beda, em 735, marca o fim da patrística. Beda não era um
criador, era um entesourador, estava guardando tudo sem saber para que
fim, mas encarava aquilo como um dever sagrado. Tem uma emoção nessa
atividade pequena, que depois se tornou imensa quando Carlos Magno, no
século IX, começou a recristianizar a Europa. Ele trouxe os monges da
Irlanda e da Inglaterra, onde as tribos germânicas não tinham chegado, e
eles recristianizaram e reculturalizaram a Europa da maneira antiga.
Beda não fazia a menor ideia de que fosse fazer parte disso. Assim,
creio que posso humanizar a história da filosofia. No primeiro volume,
falo da noite da morte de Beda, o Venerável, que é um ritornelo. No
segundo, tem um ritornelo também, que é o dia da morte de Sócrates
olhando para a manhã de Tales. Tales foi o primeiro filósofo, mas
Sócrates é o fundador oficial da filosofia.
O senhor argumenta que a questão fundamental da nossa cultura é a relação hipertensa entre razão e fé. Como ela se coloca hoje?
Uma
das originalidades dos livros todos, que fica mais evidente na
patrística e na escolástica, é que na nossa cultura não se entende o
trabalho da filosofia sem o da religião, o da razão sem o da fé, mesmo
que isso não se dê na ordem dos discursos, mas sim na organização
social. Quando na passagem do século XVI para o XVII se fez a separação
do espaço público para a esfera privada, foi para pôr no espaço público a
razão e deixar na esfera privada, protegida por lei, Deus, a fé, a
religião. Isso foi um rearranjo das relações entre razão e fé. Só dá
para pensar a modernidade, paradigmaticamente, chamando atenção para
isso.
‘Uma das originalidades dos
livros todos, que fica mais evidente na patrística e na escolástica, é
que na nossa cultura não se entende o trabalho da filosofia sem o da
religião,
o da razão sem o da fé’
o da razão sem o da fé’
- Marcio Tavares d'AmaralProfessor e autor do livro "Os assassinos do sol"
Embora eu não seja capaz de contar a história de hoje, pelos sintomas,
você percebe que a ciência, que no século XIX tomou da filosofia o lugar
de enunciadora da Verdade, no século XX, com a explosão das novas
tecnologias informacionais, biotecnológicas, a ciência abriu mão da
Verdade pela eficácia. Fez-se tecnociência, a Verdade foi jogada para o
alto, e onde ela foi cair? Nos fundamentalismos, que são de ordem
religiosa. Os fundamentalismos sabem a Verdade, é assim que eles se
consideram, e portanto todos que não sabem a mesma Verdade não só estão
errados, como são o mal, e precisam ser eliminados. Então, se você
pensar na explosão tecnológica da ciência numa direção, e nas guerras de
religião, nos fundamentalismos, na espetacularização da fé, posta na
dimensão de mercado para ser consumida, na outra, você tem na nossa
época os ingredientes para continuar a contar uma história das relações
entre razão e fé.
O livro tem um forte sentido ético, de uma história necessária. Por quê?
Isso
é uma herança nietzscheana. Nietzsche quis entender por que e para que
os valores da nossa cultura vieram a ser o que eles são. Isso tira a
filosofia, relativamente, de um patamar epistemológico — em que se trata
de como se conhece e quais são os objetos privilegiados do conhecimento
— e a coloca numa dimensão ética. Qual é a tarefa do filósofo?
Estranhar que seja assim, que tenha vindo a ser assim, reconhecer para
que veio a ser assim, defender a Humanidade contra os malefícios
produzidos por esses paradigmas filosóficos e combatê-los. É a filosofia
como um instrumento de combate. Ela foi criada por Sócrates e Platão
como um modo de viver, e daí decorre um modo de conhecer melhor. A
filosofia colada na vida é antes de mais nada uma ética. É da vida, o
que eu chamo de vida comum, que tudo decorre. Pensar está ancorado em
viver, portanto está ancorado numa dimensão ética que se pode não
adotar, não seguir. É efetivamente uma escolha, e nesse sentido tem uma
dimensão política também. Eu fiz essa escolha e por isso estou contando
essa história.
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