COM A PALAVRA - RICHARD DAWKINS
Em princípio, o conceito de “cientista pop” pode parecer uma das invencionices estranhas da contemporaneidade, mas nem por isso é um termo menos apropriado para definir a figura do biólogo inglês Richard Dawkins, de 74 anos. Consagrado em seu campo, Dawkins é autor de O Gene Egoísta, livro publicado em 1976 que revolucionou a interpretação científica da Teoria da Evolução de Darwin. Depois de construir uma sólida carreira acadêmica como pesquisador, Dawkins tornou-se, desde a virada do século, um palestrante polêmico na qualidade de mais famoso porta-voz de um movimento ateísta que ganhou força nos últimos anos pela projeção de seus defensores, intelectuais de peso como o próprio Dawkins,o também inglês Christopher Hitchens (1949 – 2011) e o americano Sam Harris. Um dos marcos da ascensão desse novo ateísmo é justamente Deus: Um Delírio, livro que Dawkins publicou em 2006, apontando os aspectos prejudiciais da religião como força capaz de influenciar a política. Dawkins estará em Porto Alegre no próximo dia 25 como o palestrante inaugural do ciclo de palestras Fronteiras do Pensamento. Nas páginas seguintes, a entrevista que o biólogo concedeu por e-mail.
Qual sua primeira lembrança ligada à descoberta da ciência como uma paixão e um caminho a trilhar?
Acho que foi quando compreendi pela primeira vez, claramente, o poder da seleção natural darwiniana para explicar tudo a respeito da vida. A seleção natural é uma ideia surpreendentemente simples depois que você a compreende, mas ainda assim tem a capacidade de explicar questões muito complexas. Além disso, a humanidade demorou até o século 19 para conseguir entendê-la – o que também é muito surpreendente, dada a simplicidade da ideia.
O senhor acredita que hoje é mais fácil ou mais difícil despertar o interesse do público leigo em geral para a ciência?
Quanto mais se compreende a ciência, mais fácil se torna interessar-se por ela. Porque quando entendemos alguma coisa só temos que explicar o princípio. Antes que compreendamos o princípio, os fatos que o explicam parecem ser todos desconexos, difíceis de transmitir e difíceis de guardar na memória. Por outro lado, nos dias de hoje, existem hostilidades e resistências à ciência aumentando em certos grupos de pessoas.
Desde a publicação do livro Deus: Um Delírio, o senhor tem sido cada vez mais convidado a falar sobre ateísmo, tornando-se quase um porta-voz da causa ateísta no mundo todo. Como o senhor divide seu tempo entre esses dois papéis, o de cientista e o de orador público?
Passo mais tempo escrevendo do que falando em público. Hoje em dia, quando falo em público, frequentemente sou entrevistado no palco, então eu vou até onde as perguntas me levam. O que parece ser o caso é que as perguntas, inclusive aquelas feitas pelo público em geral, são muito frequentemente sobre religião. Muitas vezes me sinto aliviado quando recebo uma pergunta sobre ciência.
O senhor acredita que o ateísmo é a extensão lógica da crença na evolução?
Acredito, mas devo dizer que nem todo mundo concorda. O engraçado é que são os cristãos fundamentalistas os que concordam comigo. Teólogos sofisticados não têm nenhum problema em conciliar a religião com a evolução. Os fundamentalistas têm, e eu concordo com eles, embora por motivos diferentes. A razão deles é que a evolução entra em conflito com seu livro sagrado. A minha razão é: o ponto fundamental da evolução é que ela explica como você pode ir de uma simplicidade primordial (que não precisa de explicação, ou precisa muito pouco) até alturas de prodigiosas complexidade (que, definitivamente, precisam de uma explicação). E a evolução fornece essa explicação. Deuses criadores teriam que ser entes muito complexos e, portanto, requerem, por direito próprio, uma explicação – uma explicação que os religiosos não têm.
O senhor pensa que o aumento da popularidade do novo ateísmo em anos recentes está diretamente ligado à ascensão do fanatismo pós-11 de Setembro? Ou as pessoas estão simplesmente mais confortáveis em se declarar ateias?
Acho que um pouco de ambas as coisas. Elas caminham juntas.
Por que o fanatismo religioso ainda é um assunto tão sensível em muitas partes do mundo em pleno século 21?
Uma razão presumida é que as pessoas se identificam com a sua religião quase como se fosse parte de sua personalidade. Elas se sentem pessoalmente insultadas se você insultar sua religião, como se você dissesse que elas têm um rosto feio! Eu simpatizo com o sentido de identidade, e entendo por que as pessoas gostam de celebrar rituais que pertencem à sua cultura, sejam festividades cristãs como o Natal, judaicas, como o Pessach, ou muçulmanas, como o Eid al-Fitr. Mas enquanto posso facilmente aceitar a identidade cultural nesse sentido, não posso respeitar as crenças que vêm agarradas a ela a respeito do mundo real quando são manifestamente falsas (como o criacionismo), ou para as quais não há nenhuma boa evidência (tais como milagres), simplesmente porque elas também são parte de uma cultura. Você pode dizer: “Sou um cristão que gosta de celebrar o Natal” ou “Sou um judeu que gosta de celebrar o Pessach”, e isso é bom. Mas se você diz: “Creio que Jesus nasceu de uma virgem, e não tenho nenhuma razão melhor do que o fato de que é isso que diz a minha tradição cultural”, aí é ir longe demais. Crenças sobre fatos deveriam ser baseadas apenas em provas e evidências, não em tradição, livros sagrados ou autoridade sacerdotal.
A religião tem sido uma ideia muito persistente na história humana. Há uma possibilidade de que haja algum tipo de programação genética para a fé, como alguns pesquisadores, como Paul Bloom, por exemplo, parecem acreditar?
Sim, mas eu prefiro dizer programação genética para uma predisposição psicológica à religião, em vez de para a própria religião.
Qual sua opinião sobre a ideia de “espiritualidade sem Deus”, expressa em livros de autores como Sam Harris e Alain de Botton?
Não tenho nenhum problema com ela, embora não seja uma ideia que ressoe comigo pessoalmente.
Em uma entrevista em 2013, quando esteve em Porto Alegre no Fronteiras do Pensamento, a historiadora Karen Armstrong declarou que se sentia desconfortável com o “destempero” de seus “ataques contra a religião e contra aqueles que acreditam em uma”. Para ela, o senhor “denuncia a intolerância religiosa, mas corre o risco de se tornar intolerante”. No mesmo ano, o senhor deu uma entrevista ao jornal inglês The Guardian, no qual dizia que não pensava em si mesmo como alguém “estridente ou agressivo”. O senhor se considera mal interpretado?
Se você ler Deus: Um Delírio, vai descobrir que não é, realmente, um livro destemperado. Ele tem essa reputação porque, na nossa cultura, nos tornamos tão acostumados a tratar a religião com “respeito” exagerado que mesmo um exame crítico suave e sóbrio de ideias religiosas soa destemperado. É verdade que o significado do que escrevo está expresso claramente, e para algumas pessoas a própria clareza soa ameaçadora. A própria Karen Armstrong faz tudo o que pode para ser tão obscura quanto possível, por isso não me surpreendo ao saber que ela considera a clareza “destemperada”. Ela escreve de modo tão pouco claro que provavelmente pensa que qualquer pessoa que diz claramente o que pensa representa uma ameaça.
Um conceito criado originalmente pelo senhor em O Gene Egoísta, o “meme”, ganhou vida nos últimos anos na internet, com um sentido um pouco diferente. O que o senhor pensa disso?
Eu apresentei o meme como uma analogia para o gene, para ilustrar o argumento de que a seleção natural de Darwin pode, em princípio, funcionar com qualquer informação codificada autorreplicante. Memes são unidades de hereditariedade cultural – unidades que são copiadas de mente para mente –, e elas têm a capacidade de funcionar como genes em uma forma de seleção natural darwiniana. Jovens na internet adotaram a palavra para um subconjunto específico de memes, ou seja, imagens com uma mensagem simples escrita por cima. Não tenho nenhuma grande objeção, só digo que eles estão perdendo muito em ficar só nisso.
Reportagem por CARLOS ANDRÉ MOREIRA | carlos.moreira@zerohora.com.br
Acho que foi quando compreendi pela primeira vez, claramente, o poder da seleção natural darwiniana para explicar tudo a respeito da vida. A seleção natural é uma ideia surpreendentemente simples depois que você a compreende, mas ainda assim tem a capacidade de explicar questões muito complexas. Além disso, a humanidade demorou até o século 19 para conseguir entendê-la – o que também é muito surpreendente, dada a simplicidade da ideia.
O senhor acredita que hoje é mais fácil ou mais difícil despertar o interesse do público leigo em geral para a ciência?
Quanto mais se compreende a ciência, mais fácil se torna interessar-se por ela. Porque quando entendemos alguma coisa só temos que explicar o princípio. Antes que compreendamos o princípio, os fatos que o explicam parecem ser todos desconexos, difíceis de transmitir e difíceis de guardar na memória. Por outro lado, nos dias de hoje, existem hostilidades e resistências à ciência aumentando em certos grupos de pessoas.
Desde a publicação do livro Deus: Um Delírio, o senhor tem sido cada vez mais convidado a falar sobre ateísmo, tornando-se quase um porta-voz da causa ateísta no mundo todo. Como o senhor divide seu tempo entre esses dois papéis, o de cientista e o de orador público?
Passo mais tempo escrevendo do que falando em público. Hoje em dia, quando falo em público, frequentemente sou entrevistado no palco, então eu vou até onde as perguntas me levam. O que parece ser o caso é que as perguntas, inclusive aquelas feitas pelo público em geral, são muito frequentemente sobre religião. Muitas vezes me sinto aliviado quando recebo uma pergunta sobre ciência.
O senhor acredita que o ateísmo é a extensão lógica da crença na evolução?
Acredito, mas devo dizer que nem todo mundo concorda. O engraçado é que são os cristãos fundamentalistas os que concordam comigo. Teólogos sofisticados não têm nenhum problema em conciliar a religião com a evolução. Os fundamentalistas têm, e eu concordo com eles, embora por motivos diferentes. A razão deles é que a evolução entra em conflito com seu livro sagrado. A minha razão é: o ponto fundamental da evolução é que ela explica como você pode ir de uma simplicidade primordial (que não precisa de explicação, ou precisa muito pouco) até alturas de prodigiosas complexidade (que, definitivamente, precisam de uma explicação). E a evolução fornece essa explicação. Deuses criadores teriam que ser entes muito complexos e, portanto, requerem, por direito próprio, uma explicação – uma explicação que os religiosos não têm.
O senhor pensa que o aumento da popularidade do novo ateísmo em anos recentes está diretamente ligado à ascensão do fanatismo pós-11 de Setembro? Ou as pessoas estão simplesmente mais confortáveis em se declarar ateias?
Acho que um pouco de ambas as coisas. Elas caminham juntas.
Por que o fanatismo religioso ainda é um assunto tão sensível em muitas partes do mundo em pleno século 21?
Uma razão presumida é que as pessoas se identificam com a sua religião quase como se fosse parte de sua personalidade. Elas se sentem pessoalmente insultadas se você insultar sua religião, como se você dissesse que elas têm um rosto feio! Eu simpatizo com o sentido de identidade, e entendo por que as pessoas gostam de celebrar rituais que pertencem à sua cultura, sejam festividades cristãs como o Natal, judaicas, como o Pessach, ou muçulmanas, como o Eid al-Fitr. Mas enquanto posso facilmente aceitar a identidade cultural nesse sentido, não posso respeitar as crenças que vêm agarradas a ela a respeito do mundo real quando são manifestamente falsas (como o criacionismo), ou para as quais não há nenhuma boa evidência (tais como milagres), simplesmente porque elas também são parte de uma cultura. Você pode dizer: “Sou um cristão que gosta de celebrar o Natal” ou “Sou um judeu que gosta de celebrar o Pessach”, e isso é bom. Mas se você diz: “Creio que Jesus nasceu de uma virgem, e não tenho nenhuma razão melhor do que o fato de que é isso que diz a minha tradição cultural”, aí é ir longe demais. Crenças sobre fatos deveriam ser baseadas apenas em provas e evidências, não em tradição, livros sagrados ou autoridade sacerdotal.
A religião tem sido uma ideia muito persistente na história humana. Há uma possibilidade de que haja algum tipo de programação genética para a fé, como alguns pesquisadores, como Paul Bloom, por exemplo, parecem acreditar?
Sim, mas eu prefiro dizer programação genética para uma predisposição psicológica à religião, em vez de para a própria religião.
Qual sua opinião sobre a ideia de “espiritualidade sem Deus”, expressa em livros de autores como Sam Harris e Alain de Botton?
Não tenho nenhum problema com ela, embora não seja uma ideia que ressoe comigo pessoalmente.
Em uma entrevista em 2013, quando esteve em Porto Alegre no Fronteiras do Pensamento, a historiadora Karen Armstrong declarou que se sentia desconfortável com o “destempero” de seus “ataques contra a religião e contra aqueles que acreditam em uma”. Para ela, o senhor “denuncia a intolerância religiosa, mas corre o risco de se tornar intolerante”. No mesmo ano, o senhor deu uma entrevista ao jornal inglês The Guardian, no qual dizia que não pensava em si mesmo como alguém “estridente ou agressivo”. O senhor se considera mal interpretado?
Se você ler Deus: Um Delírio, vai descobrir que não é, realmente, um livro destemperado. Ele tem essa reputação porque, na nossa cultura, nos tornamos tão acostumados a tratar a religião com “respeito” exagerado que mesmo um exame crítico suave e sóbrio de ideias religiosas soa destemperado. É verdade que o significado do que escrevo está expresso claramente, e para algumas pessoas a própria clareza soa ameaçadora. A própria Karen Armstrong faz tudo o que pode para ser tão obscura quanto possível, por isso não me surpreendo ao saber que ela considera a clareza “destemperada”. Ela escreve de modo tão pouco claro que provavelmente pensa que qualquer pessoa que diz claramente o que pensa representa uma ameaça.
Um conceito criado originalmente pelo senhor em O Gene Egoísta, o “meme”, ganhou vida nos últimos anos na internet, com um sentido um pouco diferente. O que o senhor pensa disso?
Eu apresentei o meme como uma analogia para o gene, para ilustrar o argumento de que a seleção natural de Darwin pode, em princípio, funcionar com qualquer informação codificada autorreplicante. Memes são unidades de hereditariedade cultural – unidades que são copiadas de mente para mente –, e elas têm a capacidade de funcionar como genes em uma forma de seleção natural darwiniana. Jovens na internet adotaram a palavra para um subconjunto específico de memes, ou seja, imagens com uma mensagem simples escrita por cima. Não tenho nenhuma grande objeção, só digo que eles estão perdendo muito em ficar só nisso.
COM A PALAVRA
“O propósito da aula não é transmitir dados”
Convidado
de abertura do Fronteiras do Pensamento, Richard Dawkins fará em sua
passagem pelo Brasil a divulgação da edição brasileira de suas memórias,
que estão sendo publicadas pela Companhia das Letras com o título Fome
de Saber. Leia abaixo trecho no qual o cientista relembra seus tempos de
estudante em Oxford.
“Eu disse que foi Oxford que me fez, mas na verdade foi o sistema tutorial, que por acaso é característico de Oxford e de Cambridge. É claro que o curso de zoologia de Oxford também tinha aulas em sala e em laboratório, mas não eram nada tão mais especial que as de outras universidades. Algumas aulas eram boas, outras ruins, mas quase nunca fazia alguma diferença para mim, pois eu ainda não havia descoberto o valor de assistir a uma aula. O propósito não é se embeber em dados, e portanto não há sentido em fazer o que eu fazia (e que praticamente todos os graduandos fazem): tomar notas de modo tão servil e azafamado que não sobra espaço para a reflexão. A única vez que deixei de lado esse hábito foi quando esqueci de levar uma caneta. Era tímido demais para pedir uma emprestada à menina sentada ao meu lado (tendo passado por um colégio masculino, e ainda tímido por natureza, tinha na época um temor pueril de meninas, e, se eu já era medroso demais para pedir uma caneta, você pode imaginar com que frequência eu ousava me enveredar para algo um pouco mais interessante que isso). De maneira que naquela aula não fiz anotações, só ouvi – e refleti sobre o que ouvi. Não foi das melhores aulas, mas aproveitei mais do que outras – algumas bem melhores – porque a falta de uma caneta me autorizou a ouvir e refletir. Mas não tive a sensatez de aprender a lição e suspender as anotações em aulas subsequentes.
Em teoria, a ideia era que as anotações fossem usadas para revisão, mas eu nunca mais olhei as minhas e suspeito que a maioria dos meus colegas também não. O propósito da aula não deveria ser transmitir dados. Para isso existem os livros, as bibliotecas, atualmente a internet. A aula deveria inspirar e provocar reflexão. Você está lá para assistir a um bom professor pensando em voz alta, tentando alcançar um pensamento, às vezes agarrando-o ao vento, como fazia o célebre historiador A. J. P. Taylor. O bom professor – aquele que pensa em voz alta, reflete, matuta, reelabora com mais clareza, hesita e então capta, varia o ritmo, para e pensa – pode ser um modelo de como refletir sobre o assunto e transmitir sua paixão por ele. Se é para o professor zumbir informações em tom monocórdico de leitura, que mande o público ir ler de uma vez – quem sabe o livro do próprio professor.
Exagero um pouco quando aconselho a jamais tomar notas. Se o professor chega a um pensamento original, a algo revelador que nos faz pensar, aí é certo que devemos deixar um lembrete para refletir mais depois, ou para pesquisar algo a respeito. Mas esforçar-se para registrar cada palavra de cada frase proferida pelo professor – que era o que eu tentava fazer – é inútil para o aluno e desmoralizante para o docente. Hoje em dia, quando palestro diante de uma plateia de alunos, tudo que eu noto é um mar de cabeças atrás de notebooks. Prefiro públicos leigos, festivais literários, palestras em homenagem a figuras de destaque, aulas como convidado numa universidade, aonde os estudantes vão porque querem e não porque está na grade curricular. Nessas aulas públicas, o professor não vê cabeças abaixadas e mãos rabiscantes, mas rostos alertas, que sorriem, registram a compreensão – ou o inverso. Quando vou dar palestras nos Estados Unidos, fico uma fera se ouço que um professor obrigou os alunos a comparecer à minha palestra para ganhar ‘crédito’. Não gosto da ideia de ‘crédito’ nem quando estou de bom humor, e sinto intenso ódio quando penso que os alunos estão recebendo crédito por me ouvir.”
----------------------“Eu disse que foi Oxford que me fez, mas na verdade foi o sistema tutorial, que por acaso é característico de Oxford e de Cambridge. É claro que o curso de zoologia de Oxford também tinha aulas em sala e em laboratório, mas não eram nada tão mais especial que as de outras universidades. Algumas aulas eram boas, outras ruins, mas quase nunca fazia alguma diferença para mim, pois eu ainda não havia descoberto o valor de assistir a uma aula. O propósito não é se embeber em dados, e portanto não há sentido em fazer o que eu fazia (e que praticamente todos os graduandos fazem): tomar notas de modo tão servil e azafamado que não sobra espaço para a reflexão. A única vez que deixei de lado esse hábito foi quando esqueci de levar uma caneta. Era tímido demais para pedir uma emprestada à menina sentada ao meu lado (tendo passado por um colégio masculino, e ainda tímido por natureza, tinha na época um temor pueril de meninas, e, se eu já era medroso demais para pedir uma caneta, você pode imaginar com que frequência eu ousava me enveredar para algo um pouco mais interessante que isso). De maneira que naquela aula não fiz anotações, só ouvi – e refleti sobre o que ouvi. Não foi das melhores aulas, mas aproveitei mais do que outras – algumas bem melhores – porque a falta de uma caneta me autorizou a ouvir e refletir. Mas não tive a sensatez de aprender a lição e suspender as anotações em aulas subsequentes.
Em teoria, a ideia era que as anotações fossem usadas para revisão, mas eu nunca mais olhei as minhas e suspeito que a maioria dos meus colegas também não. O propósito da aula não deveria ser transmitir dados. Para isso existem os livros, as bibliotecas, atualmente a internet. A aula deveria inspirar e provocar reflexão. Você está lá para assistir a um bom professor pensando em voz alta, tentando alcançar um pensamento, às vezes agarrando-o ao vento, como fazia o célebre historiador A. J. P. Taylor. O bom professor – aquele que pensa em voz alta, reflete, matuta, reelabora com mais clareza, hesita e então capta, varia o ritmo, para e pensa – pode ser um modelo de como refletir sobre o assunto e transmitir sua paixão por ele. Se é para o professor zumbir informações em tom monocórdico de leitura, que mande o público ir ler de uma vez – quem sabe o livro do próprio professor.
Exagero um pouco quando aconselho a jamais tomar notas. Se o professor chega a um pensamento original, a algo revelador que nos faz pensar, aí é certo que devemos deixar um lembrete para refletir mais depois, ou para pesquisar algo a respeito. Mas esforçar-se para registrar cada palavra de cada frase proferida pelo professor – que era o que eu tentava fazer – é inútil para o aluno e desmoralizante para o docente. Hoje em dia, quando palestro diante de uma plateia de alunos, tudo que eu noto é um mar de cabeças atrás de notebooks. Prefiro públicos leigos, festivais literários, palestras em homenagem a figuras de destaque, aulas como convidado numa universidade, aonde os estudantes vão porque querem e não porque está na grade curricular. Nessas aulas públicas, o professor não vê cabeças abaixadas e mãos rabiscantes, mas rostos alertas, que sorriem, registram a compreensão – ou o inverso. Quando vou dar palestras nos Estados Unidos, fico uma fera se ouço que um professor obrigou os alunos a comparecer à minha palestra para ganhar ‘crédito’. Não gosto da ideia de ‘crédito’ nem quando estou de bom humor, e sinto intenso ódio quando penso que os alunos estão recebendo crédito por me ouvir.”
Reportagem por CARLOS ANDRÉ MOREIRA | carlos.moreira@zerohora.com.br
Fonte: ZH online, 10/05/2015
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