Fred Coelho*
A liberdade que buscamos pode trazer também consequências que não queremos
Por conta de pesquisas no trabalho, li recentemente o famoso texto de Sartre, “O existencialismo é um humanismo”. Escrito em 1947, dois anos após a Europa e o mundo saírem da carnificina ocorrida durante a Segunda Guerra, trata-se de uma defesa das ideias que o filósofo professava na época. Lá, ele nos afirma que, ao tomarmos decisões, cairemos sempre em um estado de desamparo.
Ser uma pessoa livre (vamos lá, imaginemos que isso existe em um mundo perfeito) nos obrigaria a fazer da angústia uma amiga íntima. Escolher o que dizer, o que fazer, o que pensar, o que odiar, o que amar, só dependeria de você, sem nada o precedendo, sem ninguém o garantindo, sem poder dizer entre sorrisos cínicos frases famosas na História como “eu só cumpro ordens” ou “está além do meu controle”.
Abstraindo as implicações e limites morais e filosóficas do existencialismo — cuja história já foi devidamente exumada por gerações de filósofos franceses —, a reflexão sobre opinião, escolha e angústia é um tema bastante presente para o nossos dias. Quem vive cotidianamente o embate de ideias e opiniões no Rio, no Brasil ou no mundo, enfrenta profundos impasses. Não serei rasteiro a ponto de fazer em uma coluna de jornal a análise da geopolítica mundial, mas posso dizer sem dúvida que o caldo do Ocidente continua entornando e que, como falamos nas quebradas, “a parada tá sinistra”. Às vezes é quase palpável a sensação de mal-estar em muitas conversas.
Pausa: isso NÃO É um texto da escola da lamentação, da prática do avestruz ou do mundo outrora “cor de rosa” que está sendo manchado por quem não concorda comigo (talvez a metáfora colorida soe bem nos atuais tempos editorias). A incerteza como motor, não como cais.
O ponto (e aqui é que este texto se torna uma imensa interrogação sem respostas) é que estamos aprendendo, ao menos na nossa jovem democracia local, que mudanças profundas detonam ajustes profundos. Placas tectônicas, quando se movem, nos tiram o chão. A sensação de que vivemos em desequilíbrio (mental, fiscal, verbal, emocional, tonal, moral) não é fácil. Afinal, saber o que é o equilíbrio é uma coisa, se equilibrar é outra. O que estou tentando pensar é que certas ideias, lugares sociais pré-definidos, preconceitos, conceitos e trejeitos que sempre foram “coisas nossas” hoje estão em xeque. Sim, estou falando de todos os conflitos que estão emergindo no dia a dia ao redor de assuntos sempre estranhos ao debate público brasileiro do século XX: gênero, etnia, religião. Três temas espinhosos que fazem parte (negativa) de nossos silêncios históricos e que vimos sempre de camarote o mundo se matar por eles. Até agora. Chegou a hora de olharmos para nós mesmos. E se não somos narcisos, tampouco nos achamos bonitos.
Aqui as coisas mudaram por conta de um fator decisivo: quem não falava, agora fala. Quem não existia enquanto discurso público, agora existe. Quem não podia sair de situações de gueto, agora pode. E aí é que começamos a entender que se a democracia é o regime da convivência entre diferentes, devemos admitir que sim, somos diferentes. Somos e não somos mestiços. Somos e não somos índios. Somos e não somos ocidentais. Somos e não somos subdesenvolvidos. É tudo uma questão de perspectiva — e do lugar ocupado por quem enuncia os discursos sobre si e sobre os outros. As perspectivas sobre esses lugares de poder da fala se multiplicaram no país nas últimas décadas. Transformações estruturais despertaram novas vozes que estão, no momento, interessadas não em continuar a integração frágil e desigual que vivíamos, mas sim em aprofundar as diferenças.
É duro, é difícil, o processo corta, geme, treme, mata, mas é necessário. O aprendizado, talvez (nem sempre há uma pedagogia nos fatos), é exercitar a empatia. E não se trata de autoajuda. Se trata de radicalizar a alteridade. Colocar-se no lugar do outro e entender sua dor e seus desejos. Não se trata de relativizar ou tergiversar. Se trata de expandirmos a compreensão dos múltiplos motivos, das múltiplas histórias de vida, antes de opinar ou tomar decisões que afetam os outros. É claro que cada um de nós opta por lados nas coisas. Mas o fato é que não podemos mais transferir para o outro a nossa angústia da escolha e que, se devemos lutar pela liberdade de dizer o que queremos, temos de entender que isso pode, também, trazer consequências que não queremos.
No momento, vivemos uma espécie radical de sístole e diástole em nosso país. Provavelmente vamos precisar cada vez mais reconhecer a diferença, aprender com a diferença, tolerar a diferença e demarcar os limites da diferença para ela não se tornar opressão generalizada de todos contra todos. Não é fácil, não é rápido. A História é tijolo a tijolo, as mudanças são lentas, mas se quisermos acabar com recalques e silêncios, se quisermos um futuro mais justo para TODOS, eis aí a nossa chance.
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* Colunista do jornal O Globo
Fonte: O Globo online, 20/05/2015
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