Zélia duncan*
Desde criança encantada com a mágica das palavras
Escrever é uma farsa. Todos sabem e assumem seus papéis,
como tem que ser. Desconfiei disso ao desabar pra dentro de um livro de Clarice
Lispector e me deparar com uma vírgula, antes de qualquer palavra. Como assim? A
história começou, antes que eu abrisse o livro? Ninguém me esperou? Depois
entendi que era uma quebra fundamental na minha inocência de leitora. Tudo já
estava acontecendo, antes de se revelar. Claro, claríssimo, Clarice? Mas houve
ainda o golpe fatal. Na última página do mesmo livro, depois da última palavra,
lá estavam eles, dois pontos! Mas o começo me ensinou a aceitar o fim. Eis a
minha participação. O deleite daquela leitura, enquanto ela durou, contida entre
pontuações, que indicavam continuidade e nunca conclusão, me levou por caminhos
que aceito e procuro. Caminhos sem fim.
Quando criança, orgulhosa de ter aprendido a formar palavras, desvendava umas placas de rua que diziam “Quem não lê, mal fala, mal ouve, mal vê”. E fui entendendo que ler é decifrar os dias, é ter pra sempre companhia, é guardar o melhor pro final, é descobrir e inventar entrelinhas, é esquecer o medo de avião, é sorrir para amigos invisíveis. É relevar o atraso nos consultórios, o desconforto dos aeroportos. É pedir altas. É um puxadinho improvisado na alma. Ler, pra mim, é cantar em silêncio.
Quando já em Brasília, ganhei um livrinho com rimas e animais, parti para decorá-lo. Eu falava aqueles versinhos que pareciam ter caído do céu assim, prontos pra mim. Era “A arca de Noé”, de Vinicius de Moraes. Ainda hoje sei alguns de cor: “O mundo é tão esquisito, tem mosquito”.
No primário (eu sei, palavra obsoleta!), reservei um caderno inteiro só para ditados, de preferência lindos e românticos. E saí pedindo pras pessoas que me dissessem os que sabiam de cor, que eu anotava concentrada, com minha letra sempre feinha. Um dia, caí na asneira de pedir na sala de aula, para um grupo de colegas que estava reunido, algum versinho fofo. Um menino mais distante, portanto, falando bem alto, mandou, pra arrasar com minha coleta: “Zélia, anota esse, beijo é que nem ferro elétrico, liga em cima e esquenta embaixo!” Todos riram, eu esbocei algo parecido, abaixei a cabeça, mas nunca anotei o deboche. Não me deixei abater e meu caderno teve, enfim, relativo sucesso em seu conteúdo. Muitas alegrias inventadas e até um acróstico, a partir do meu nome, que ganhei de Dedete, meu tio dos olhos verdes d’água, olhos que contavam histórias. Ele era um leitor voraz, talvez o mais voraz que eu tenha conhecido. Estava sempre com um livro nas mãos e, mesmo que fosse trash, era trash clássico. Dedete era nosso herói, tudo com ele virava grandeza. Estava sempre atrás do épico, hoje eu sei. A primeira vez que ouvi falar em ficção científica foi através dele. Descreveu a cena em que um personagem futurista, privado de tudo, consegue tomar um banho frio. Apenas isso, a felicidade de um banho frio. Ele amava histórias fantásticas e, quando me alertou dizendo “Zelinha, um dia, pra irmos até a esquina comprar pão, teremos que nos juntar e um dar cobertura pro outro”, aquilo me assustou, mas entrou na conta de uma fantasia, coisas de quem lia demais. Dedete se foi, e cada vez mais estamos vendo a ficção virar profecia. Estávamos distantes quando partiu, ele nem sabia o quanto dele e de suas leituras estariam em mim até hoje, enquanto vasculho o tempo e o que ficou de tudo que andamos vivendo sem saber. “De tudo, sempre fica um pouco”. E tinha ainda a poesia, vagando pela casa... na voz principalmente de minha mãe, com saudade do meu avô e da casa onde fora adolescente. Para eles, Olavo Bilac era o cara. Os modernistas que nos perdoem, até hoje sei vários de seus versos de cor. Manuel Bandeira, Augusto dos Anjos, Cecília Meireles, Drummond, Florbela Espanca. Por conta própria, virei Pessoa, só tinha olhos pra ele. Mas olhar é coisa que se estica, se inventa, se aprende. João Cabral, Quintana, Hilda Hilst, Ana Cristina Cesar, Leminski, Manoel de Barros, Prévert e tantos mais. Nem vou, por enquanto, falar de música, que é pra mim instrumento de rastrear poesia.
Tudo pra começar dizendo que não sou escritora. Sou leitora, esta é a minha farsa. Por isso estou aqui e bem feliz com essa possibilidade de exercitar o que não sou, ou não tenho sido, tão descaradamente. “Te explicando, pra te confundir”. E eu não sei mesmo nada o suficiente pra sair explicando, ou me levando tão a sério. Porém, a viagem me interessa e tem espaço de sobra. Sobe aí, vai!
--------------------
* Colunista do jornal O Globo
Fonte: O Globo online, 01/05/2015
Imagem da Internet: Pintura: Jean-Honoré Fragonard - A leitora - 1776
Galeria Nacional - Washington
Quando criança, orgulhosa de ter aprendido a formar palavras, desvendava umas placas de rua que diziam “Quem não lê, mal fala, mal ouve, mal vê”. E fui entendendo que ler é decifrar os dias, é ter pra sempre companhia, é guardar o melhor pro final, é descobrir e inventar entrelinhas, é esquecer o medo de avião, é sorrir para amigos invisíveis. É relevar o atraso nos consultórios, o desconforto dos aeroportos. É pedir altas. É um puxadinho improvisado na alma. Ler, pra mim, é cantar em silêncio.
Quando já em Brasília, ganhei um livrinho com rimas e animais, parti para decorá-lo. Eu falava aqueles versinhos que pareciam ter caído do céu assim, prontos pra mim. Era “A arca de Noé”, de Vinicius de Moraes. Ainda hoje sei alguns de cor: “O mundo é tão esquisito, tem mosquito”.
No primário (eu sei, palavra obsoleta!), reservei um caderno inteiro só para ditados, de preferência lindos e românticos. E saí pedindo pras pessoas que me dissessem os que sabiam de cor, que eu anotava concentrada, com minha letra sempre feinha. Um dia, caí na asneira de pedir na sala de aula, para um grupo de colegas que estava reunido, algum versinho fofo. Um menino mais distante, portanto, falando bem alto, mandou, pra arrasar com minha coleta: “Zélia, anota esse, beijo é que nem ferro elétrico, liga em cima e esquenta embaixo!” Todos riram, eu esbocei algo parecido, abaixei a cabeça, mas nunca anotei o deboche. Não me deixei abater e meu caderno teve, enfim, relativo sucesso em seu conteúdo. Muitas alegrias inventadas e até um acróstico, a partir do meu nome, que ganhei de Dedete, meu tio dos olhos verdes d’água, olhos que contavam histórias. Ele era um leitor voraz, talvez o mais voraz que eu tenha conhecido. Estava sempre com um livro nas mãos e, mesmo que fosse trash, era trash clássico. Dedete era nosso herói, tudo com ele virava grandeza. Estava sempre atrás do épico, hoje eu sei. A primeira vez que ouvi falar em ficção científica foi através dele. Descreveu a cena em que um personagem futurista, privado de tudo, consegue tomar um banho frio. Apenas isso, a felicidade de um banho frio. Ele amava histórias fantásticas e, quando me alertou dizendo “Zelinha, um dia, pra irmos até a esquina comprar pão, teremos que nos juntar e um dar cobertura pro outro”, aquilo me assustou, mas entrou na conta de uma fantasia, coisas de quem lia demais. Dedete se foi, e cada vez mais estamos vendo a ficção virar profecia. Estávamos distantes quando partiu, ele nem sabia o quanto dele e de suas leituras estariam em mim até hoje, enquanto vasculho o tempo e o que ficou de tudo que andamos vivendo sem saber. “De tudo, sempre fica um pouco”. E tinha ainda a poesia, vagando pela casa... na voz principalmente de minha mãe, com saudade do meu avô e da casa onde fora adolescente. Para eles, Olavo Bilac era o cara. Os modernistas que nos perdoem, até hoje sei vários de seus versos de cor. Manuel Bandeira, Augusto dos Anjos, Cecília Meireles, Drummond, Florbela Espanca. Por conta própria, virei Pessoa, só tinha olhos pra ele. Mas olhar é coisa que se estica, se inventa, se aprende. João Cabral, Quintana, Hilda Hilst, Ana Cristina Cesar, Leminski, Manoel de Barros, Prévert e tantos mais. Nem vou, por enquanto, falar de música, que é pra mim instrumento de rastrear poesia.
Tudo pra começar dizendo que não sou escritora. Sou leitora, esta é a minha farsa. Por isso estou aqui e bem feliz com essa possibilidade de exercitar o que não sou, ou não tenho sido, tão descaradamente. “Te explicando, pra te confundir”. E eu não sei mesmo nada o suficiente pra sair explicando, ou me levando tão a sério. Porém, a viagem me interessa e tem espaço de sobra. Sobe aí, vai!
--------------------
* Colunista do jornal O Globo
Fonte: O Globo online, 01/05/2015
Imagem da Internet: Pintura: Jean-Honoré Fragonard - A leitora - 1776
Galeria Nacional - Washington
Nenhum comentário:
Postar um comentário