Moisés Sbardelotto*
No
âmbito social, falar em família traz consigo inúmeros clichês e
estereótipos, que encerram esse conceito nos padrões éticos e estéticos
dos comerciais de margarina. Mas Francisco nos desafia a imaginar outras famílias possíveis. Sua mensagem para o 49º Dia Mundial das Comunicações Sociais,
celebrado neste domingo, nasce de um contexto: a “profunda reflexão
eclesial” e o “processo sinodal” que a Igreja está vivendo.
Neste domingo, 17 de maio, celebra-se o 49º Dia Mundial das Comunicações Sociais. Na sua Mensagem divulgada para a ocasião, o Papa Francisco
relê a comunicação contemporânea a partir da família, “primeiro lugar
onde aprendemos a comunicar” e em que começamos a construir os nossos
contatos com o mundo. Somos comunicação. Mais do que um fazer, do que um
ter, do que um poder, comunicar é ser: nascemos em comunicação,
crescemos porque nos comunicamos, comunicamo-nos para viver. É uma
dimensão existencial, vital ao próprio ser humano em relação.
Se, no ano passado, o papa destacava a proximidade como o poder da comunicação, na mensagem deste ano, intitulada Comunicar a família: ambiente privilegiado do encontro na gratuidade do amor, ele ressalta o processo de “descoberta e construção” dessa proximidade, a partir do relato evangélico da visita de Maria a Isabel
(Lc 1, 39-56). O encontro dessas duas primas grávidas e de seus bebês,
segundo o pontífice, apresenta a família como um “momento original” do
processo comunicativo.
Assim, Francisco faz um gesto copernicano do ponto
de vista dos estudos de comunicação. Ele tira do centro do processo
comunicacional os “meios”, entendidos – muitas vezes também no
pensamento eclesial – meramente como as tecnologias, a “grande mídia”,
as indústrias culturais. Em seu lugar, coloca os “corpos” que se tocam,
que exultam pelo encontro, entendendo a comunicação como “um diálogo que
se entrelaça com a linguagem do corpo”.
Escola
Ao sugerir a família como foco de reflexão sobre a comunicação, partindo da alegria do bebê no ventre de Isabel ao se encontrar com Maria grávida de Jesus, Francisco
radicaliza, vai às raízes do processo comunicativo, ao seu núcleo
original, e dá um salto “dos meios aos corpos”: ao vínculo, ao contato,
ao toque, à “cola” das relações humanas e sociais. A comunicação, diz o
papa, tem um “início vivo”, que é o encontro interpessoal. “Exultar pela
alegria do encontro é o arquétipo e o símbolo de qualquer outra
comunicação”. Dessa relação entre corpos, nasce um encontro alegre e
exultante, uma comunicação encarnada, que brota de uma experiência e de
uma vivência profundas do que há de mais central no cristianismo: a
encarnação de Deus, o “Verbo que se faz carne”, que se faz “corpo”.
Refletindo sobre o movimento de alegria do menino na barriga de Isabel ao ouvir a saudação de Maria, Francisco indica que a “primeira escola
de comunicação” é o próprio ventre materno. Nele, a relação com a mãe é
a primeira experiência comunicativa do bebê. O método pedagógico dessa
escola familiar é, justamente, a “escuta e o contato corporal”.
Francisco não entende a comunicação como uma técnica
fria, puramente informacional. Comunicar, segundo o papa, não é uma
mera ação de “produzir e consumir informação”. Também não é uma
habilidade que possa ser aprendida autonomamente, nem um “dom de
nascença”, reservado aos escolhidos. Se assim fosse, isso acabaria
privilegiando alguns e excluindo outros: os que teriam o dom não
precisariam fazer mais nada, e os que não o teriam nada poderiam fazer.
Trama
Entretanto, ninguém nasce comunicador. Comunicação é algo que vem das
entranhas, do calor materno e humano. É uma arte de vida que se aprende
na relação. Para comunicar, é necessário um caminho pedagógico, um
ambiente de aprendizagem, que começa na família. Não por acaso, o verbo
“aprender” é quase um refrão de toda a mensagem de Francisco. Mas aprender o quê? O significado de “comunicar no amor recebido e dado”. É assim também nos nossos lares?
Ao sermos inseridos em uma família, nosso leque de relações se amplia em “gênero e geração”, escreve Francisco.
Passamos a habitar um “ambiente de vida mais rico”, “um ventre feito de
pessoas diferentes, em relação”, um “espaço onde se aprende a conviver
na diferença”, diante dos “limites próprios e alheios”. Nesse ambiente
de relação que é a família, damo-nos conta de que só vivemos e
sobrevivemos se estivermos ligados, vinculados, conectados a outros.
Compreendemos que “nossas vidas estão entrelaçadas numa trama
unitária, que as vozes são múltiplas e cada uma é insubstituível”.
Unidade na multiplicidade: mãe, pai, esposa, esposo, filha, filho, irmã,
irmão... Papéis e funções múltiplos que não escolhemos, mas que
constroem relações insubstituíveis. Cada família é única.
Para favorecer essa convivência, o papa apresenta três “dinâmicas de
comunicação”. A primeira delas é a oração, “forma fundamental de
comunicação”. Cada família – mas também cada comunicador – deve pôr em
prática a “dimensão religiosa da comunicação”, que, segundo Francisco,
“é toda impregnada de amor, o amor de Deus que se dá a nós e que nós
oferecemos aos outros”. Outra dinâmica é o perdão, que nos ajuda a
reatar o vínculo rompido e que, em família, é pedagogia concreta para
ensinar os filhos a serem “construtores de diálogo e reconciliação na
sociedade”. Por fim, a dinâmica da bênção, que “quebra a espiral do
mal”, do ódio, da violência, da fofoca, da discórdia, do preconceito, do
ressentimento. Bem-dizer em vez de mal-dizer: esse é o método em
família para “educar os filhos à fraternidade”, ensina Francisco.
Sujeito
A família não se encerra – e não pode se encerrar – em si mesma. A
partir do núcleo familiar, somos inseridos na grande família humana. Francisco
deseja para mundo de hoje uma Igreja “em saída”, que “sai da própria
comodidade e tem a coragem de alcançar todas as periferias que precisam
da luz do Evangelho” (EG 20). Sendo “Igreja doméstica”, como definiu o Concílio Ecumênico Vaticano II, e pequena Igreja (ecclēsiola), a família também deve ser “em saída”. E o relato evangélico escolhido por Francisco para esta mensagem – a visita de Maria a Isabel – nos ajuda a refletir sobre essa saída missionária em família.
“Visitar – afirma o papa – supõe abrir as portas, não encerrar-se no
próprio apartamento; sair, ir ao encontro do outro. A própria família é
viva se respira, abrindo-se para além de si mesma”. Atento à realidade
contemporânea, Francisco convida a família a ser um
ambiente em relação, aberto. Na sua comunicação com o ambiente social
mais amplo (que “supõe abrir as portas”), a família pode encontrar um
equilíbrio vital (um “respiro”) entre a sua conservação e a sua
atualização diante dos sinais dos tempos. Dessa forma, Igreja e família
“em saída” encarnam as mesmas iniciativas: acompanhar, festejar,
frutificar, verbos que o papa cita na Evangelii gaudium (EG 24) e também
repete nesta mensagem.
Nesse sentido, além de escola e de trama de relações, a família também é um “sujeito
que comunica, uma ‘comunidade comunicadora’”, afirma o papa. Contudo,
no âmbito eclesial, muitas vezes, a família é vista apenas como um
“objeto” da evangelização, que deve ser guiado pelo episcopado e pelo
clero. Especialmente no Brasil, entretanto, inúmeras
comunidades eclesiais sobrevivem ao longo dos anos sem uma presença
clerical ou religiosa consagrada. Na base, são as famílias o principal
sujeito dessa evangelização local. A presença cristã nas estradas da
história tem a sua força dinâmica graças aos milhares de casais e de
famílias que impulsionam a Igreja a ser realmente uma “família de
famílias”, como define Francisco na mensagem. Por isso,
“a comunicação que emerge das comunidades em que as leigas e os leigos
são os protagonistas necessita ganhar reconhecimento por parte dos
pastores”, afirma o Diretório de Comunicação da Igreja no Brasil (DCIB
9). Porque no “ecossistema comunicativo” das comunidades eclesiais, “a
criança, o jovem, a mulher, o pai, a mãe, todos são agentes da
comunicação” (DCIB 131). E o que eu, minha família, nossas relações
familiares estamos comunicando ao mundo de hoje?
No âmbito social, falar em família traz consigo inúmeros clichês e
estereótipos, que encerram esse conceito nos padrões éticos e estéticos
dos comerciais de margarina. Mas Francisco nos desafia a
imaginar outras famílias possíveis. Seu texto nasce de um contexto: a
“profunda reflexão eclesial” e o “processo sinodal” que a Igreja está
vivendo, como ele mesmo diz. Por isso, a mensagem também é um indicador
da imagem de família cristã que o papa deseja ver encarnada no século
XXI.
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*A opinião é do jornalista Moisés Sbardelotto, doutorando em Ciências das Comunicação pela Unisinos e autor do livro E o Verbo se fez bit: A comunicação e a experiência religiosas na internet (Ed. Santuário, 2012). Foi membro da Comissão Especial para o Diretório de Comunicação para a Igreja no Brasil, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).
Fonte: IHU online, 18/05/2015
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