"Se a felicidade é uma obrigação,
ela é
uma ordem do superego,
então perde qualquer possibilidade
de ser
espontânea."
- Psicanalista Maria Rita Kehl -
Certa vez, fui preparar um almoço e pensei ter adquirido uma
inusitada lição de vida e de perspectiva plácido-otimista ao despejar
umas batatas sorridentes e redondas
numa frigideira com óleo. Veja bem, aquela gordura estava
hiperbolicamente quente, mas isso não impedia aqueles pedaços de amido
amarelado de sorrirem e dançarem em volta do próprio destino trágico.
Você até pode se queimar e sofrer as esturricadas da vida, mas é preciso
ter força, raça, grana e, acima de tudo, sorriso. Joga peteca? Então,
não a deixe cair. Porque desânimo é coisa de fracote, e a felicidade é
um dever de casa cotidiano resolvido com dificuldade por toda a
população global.
Não
basta o parabéns pra você desejar UMA felicidade: ele desperta em você a
expectativa de MUITAS felicidades. Assim, várias, coletivas, plurais,
para quando uma acabar, você ter condições de repô-la com outra e jamais
ficar sem. A felicidade, já discutida pela filosofia antes mesmo de
Cristo, tornou-se direito do homem em 1787, com a Constituição dos
Estados Unidos, e caminha, no século 21, de mãos dadas com a OBRIGAÇÃO,
especialmente propagada após a Revolução Francesa. A gota de orvalho,
quem diria, se tornou uma penosa imposição que classifica os seres
humanos em vencedores e fracassados, ignorando as nuances dessa estrada
altamente customizável e imprevisível chamada VIDA. "No século 21,
parece que há um empuxo radical para que sempre, e em todo o momento, o
sujeito tenha que se mostrar feliz", denuncia Claudio César Montoto,
psicanalista e professor do Curso de Especialização em Semiótica
Psicanalítica da PUC-SP.
Mostrar-se feliz, de fato, é
imperativo tanto presencialmente quanto nas fotos do Instagram ou nos
posts nas redes, fazendo com que real e virtual se embaralhem. Esbanjar
felicidade online e off-line é uma lei. "A característica desta
contemporaneidade pode ser estudada a partir das redes sociais, como por
exemplo o Facebook, onde fica claro que o imaginário que é a rede é
tomado como o real, como a vida. Até a pornografia está funcionando,
para o sujeito contemporâneo, como um modelo a ser atingido", completa
Montoto.
"A obrigação vem de quase todo o mundo. A sua
família e seus amigos querem te ver sorrindo e cheia de vida 24 horas
por dia. Isso porque as pessoas que se importam conosco ficam aliviadas
em ver alguém que ama feliz. A questão é que elas não percebem que essa
cobrança pode te deixar ainda mais infeliz", lamenta a jornalista
Fabiana Schiavon, 36 anos.
A psicanalista e diretora
Geral da CLIPP (Clínica Lacaniana de Atendimento e Pesquisas em
Psicanálise) Carmen Silvia Cervelatti lembra que esse imperativo de
felicidade é determinado pelo discurso capitalista, na medida em que
incessantemente oferece objetos e a satisfação que seu consumo gera é
mais fugaz a cada dia. "Isso favorece a ilusão de que ter aquilo que,
supostamente, todos poderiam ter, é sinônimo de felicidade. Porém,
constata-se que o 'todos iguais' no gozo conduz a um consumo desenfreado
e a patologias bastante específicas, como as compulsões."
Essa
pressão pela felicidade automaticamente exclui o sofrimento, a
decepção, a limitação e o conflito, condições inseparáveis do ser
humano. Onde, nesse pacote de bondades, entraria a tristeza?
Simplesmente não entra, é reprimida, já que ela é tratada como depressão
e, portanto, para ser medicada, basta um passo.
É
grande a tentação para culparmos o Voltaire e seu paraíso terrestre, o
supermercado de gente feliz, a batata que sorri, a gelatina com bocona,
as propagandas de perfume, o décimo terceiro salário, as pastas de dente
tão revolucionárias que até fazem canal. Tomem aqui essa pílula de
felicidade, acessível e fácil. Porém, com choro ou não, o papo real é
que não vamos atingi-la. Simplesmente não vamos. "O mal-estar é inerente
à civilização", Carmen recorda, citando Freud.
Aí está o
problema: essa pressão pela felicidade automaticamente exclui o
sofrimento, a decepção, a limitação e o conflito, condições inseparáveis
do ser humano. Onde, nesse pacote de bondades, entraria a tristeza?
Simplesmente não entra, é reprimida, já que ela é tratada como depressão
e, portanto, para ser medicada, basta um passo. "A obrigação de simular
uma felicidade constante é uma lei dos nossos dias. Mas esse fazer de
conta não soluciona nada; pelo contrário, piora, porque retorna, como
nas doenças somáticas e nos acidentes cotidianos", alerta Montoto. Não à
toa, ansiedade, depressão, fobias e compulsões aparecem, fazendo com
que a busca mandatória pela tal felicidade seja, perversamente, um
caminho para a infelicidade. E não podemos esquecer a toxicomania,
utilizada para se chegar ao êxtase.
Quis fazer e ser tantas coisas ao mesmo tempo que acabei dando uma travada total, o que acabou me levando para o hospital.
E
o que nos levaria a cair nesse discurso? Possivelmente, a crença de que
ser feliz seja uma conquista plenamente acessível – só depende de você
fazer tudo certinho. Esse discurso, tão presente no capitalismo, gera
uma infinidade de "receitas", o que nos leva a renunciar ao nosso
próprio desejo e, perguntar, ao outro, o que devemos fazer. Se esse
outro tem a resposta, essa tal felicidade fica ainda mais próxima. "O
mercado, em termos gerais, nos aponta que tipo de alimentos devemos
ingerir, que corpo devemos ter, a lista de requisitos para enlouquecer
nosso parceiro na cama etc", exemplifica Montoto.
Tentar
seguir modelos de felicidade acabou detonando um surto na estudante
paulistana M.M., de 21 anos. Ela ficou 11 dias internada e foi
diagnosticada com depressão, que hoje trata com homeopatia, atendimento
psiquiátrico e duas sessões semanais de análise. "Eu tentei fazer tantas
coisas ao mesmo tempo, seguir tantos exemplos. Tenho uma tia que é um
grande exemplo pra mim de pessoa feliz. Ela faz teatro, fez Ciências
Sociais, assim como eu tava fazendo, e eu tentei trazer isso pra mim.
Era um ritmo que eu não aguentava. Quis fazer e ser tantas coisas ao
mesmo tempo que acabei dando uma travada total, o que acabou me levando
para o hospital."
Após o surto, M. trancou o curso de
Ciências Sociais na USP (Universidade de São Paulo) e foi trabalhar em
um shopping da zona oeste da capital. A decisão foi criticada, e ela
mais uma vez se sentiu pressionada a ser feliz a qualquer custo. "Eu
consegui me reerguer com muita ajuda da terapia, e só consegui essa
reviravolta na minha vida com coisas que não foram muito bem aceitas. Eu
trancar a melhor faculdade do Brasil e virar operadora de caixa fez com
que dissessem 'você está fazendo tudo errado'."
Se a felicidade é uma obrigação, ela é uma ordem do superego, então perde qualquer possibilidade de ser espontânea.
Paradoxalmente,
o deprimido é aquele que recusa e não se deixa enganar por essa
promessa de felicidade. A designer M.B., 29 anos, de São Paulo, precisou
se enxergar deprimida para perceber as cobranças que fazia de si mesma
para ser feliz, especialmente depois de ter um sonho realizado: ser
pedida em casamento. Como assim, ela, que vivia sorrindo para tudo,
deprimida? O alerta só chegou quando buscou ajuda com um psiquiatra
ortomolecular.
"Eu vivo dando risada, mas no fundo, eu
não estou. Eu não sei explicar se é porque eu quero agradar aos outros. A
tristeza vem quando eu estou sozinha, que aí não tem a obrigação moral
de me mostrar bem. Isso começa a agravar outros lados da vida, como eu
ficar muito doente. Eu vivo em médico, sou extremamente hipocondríaca.
Sinto que é um reflexo dessa cobrança gigantesca. Eu quero o meio termo,
não a euforia extrema e a tristeza extrema", afirma.
Desencana que é melhor
O
francês Jacques Lacan certa vez deu uma dica polêmica: não procure a
felicidade, essa busca vai te trazer mal. Calma, tem um motivo, aqui
explicado pelo psicanalista Montoto: a procura pela dita-cuja como se
ela fosse um lugar de chegada sempre será fadada ao fracasso porque se
trata de momentos de prazer, e não de um estado permanente. "Se
realmente pudesse ser um estado permanente seria, simplesmente, um tédio
insuportável. O que dá tempero à vida são a flutuação, os conflitos e
os desafios", ele frisa.
Ainda assim, as pessoas que
procuram os psicanalistas querem ser mais felizes, observa Carmen.
"Seria uma impostura prometer a felicidade, já que uma análise deve
conduzir um sujeito a ficar mais livre do peso dos ideais, a reinventar
sua vida e a se arranjar de uma nova maneira com o mal-estar."
A
jornalista Fabiana foi buscar ajuda para lidar com o mal-estar. "Uma
vez senti que a tristeza tinha saído do controle. Procurei uma
psicóloga, com quem me consulto até hoje, e na época também tomei
remédios com a orientação de um psiquiatra. É importante ter ajuda de
fora. É fácil acreditar que não é preciso ser feliz, ter outras
convicções, mas nem todos somos fortes para nos manter em equilíbrio o
tempo todo, e isso não deve ser um problema. Sou feliz por ter aprendido
muito com essa fase. Quem não sofre, também não sabe o que é não sofrer
ou estar em paz. A ideia é entender que a vida é uma grande
experiência."
M., que trancou a faculdade, está
respeitando o próprio tempo e a própria noção de felicidade, tentando
não dar ouvidos à pressão para que ela se reerga logo e seja feliz.
"Você se sente mal por estar mal. É uma sensação muito ruim. As pessoas
encaram como 'é muito fácil você sair daí e se reerguer' num momento em
que realmente não é, porque não depende tanto de você querer. Os seus
quereres estão muito confusos", ela conclui.
Seja nos
tempos anteriores a Cristo, seja no século 21, não há nada de errado em
desejar ser feliz. Desde que isso não seja uma imposição, como frisa a
psicanalista Maria Rita Kehl. "Se a felicidade é uma obrigação, ela é
uma ordem do superego, então perde qualquer possibilidade de ser
espontânea."
Eu já vinha questionando a legitimidade da
lição de vida aprendida com a batata que sorri na gordura quente, e a
rotina prática – adoro cozinhar – acabou ajudando a derrubar essa
auto-ajuda-carboidrática. Percebi que cortar e fritar minhas próprias
batatas, tortinhas mesmo, imperfeitas com seus pedaços de casca e sem
reações de sorriso, tava me rendendo uma baita experiência gastronômica e
de alegria subjetiva. Vai ver, essas foram preciosas horinhas de
descuido.
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Por Amanda Mont’Alvão Veloso
Fonte:http://www.brasilpost.com.br/2015/05/24/felicidade-e-obrigacao_n_7430004.html?ir=Brazil
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